Capítulo Único

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Não faço a menor ideia de como o mundo apodreceu. Quando nasci, o ar já era tóxico e os céus cheios de cobre. João, o homem que me criou, quando enchia a cara fazia discursos pomposos sobre o passado. "A gente tinha muitos dias de sol! Não se pagava um tostão para se respirar! E as árvores? As plantas? Você sabe o que é uma orquídea, pivete?". Ele ficava insuportável falando de um mundo que não existia mais. Teimava em querer me dizer o que era certo e errado segundo sua lógica esquisita. Mas aquele velho barrigudo era tudo que eu tinha.

Um belo dia meus pais perderam o emprego. Não tiveram mais como pagar pelo aluguel e pelo oxigênio. Eu era um pirralho que não entendia porra nenhuma, mas sabia que algo estava errado. Eles andavam tensos, pegavam qualquer bico que garantisse um mínimo de grana. A última coisa que perdemos foi o sistema de oxigênio da PureLife. Sem ele, passamos a viver de cilindros de ar.

Após o despejo, mudamos para o Condenópolis, um aglomerado de favelas que virou um bairro-cidade. Nossa casa era um contêiner selado com a ajuda da comunidade. No início as coisas não estavam tão ruins, mas aí os bicos sumiram e a miséria aumentou. Rosa, minha mãe, tinha que cuidar de mim e passar muitas horas na fila da Igreja para encher os cilindros de ar.

Um dia papai acordou cedo e se despediu com um sorriso no rosto. Disse que tudo melhoria. Nunca mais voltou. Um tempo depois descobrimos que ele se envolveu com as pessoas erradas. A polícia só jogou o corpo na nossa porta e cobrou uma taxa pela entrega. Mamãe vendeu o neurochip dele para pagar o enterro. Ela ficou destruída. Tornou-se apática, mal falava comigo. Não demorou para o vício em karmalina tomar conta. Tal como meu pai, Rosa saiu de casa e desapareceu. Procurei por ela em todo canto até perder as esperanças.

Eu estava entregue a minha própria sorte. Mamãe deixou alguns cilindros de ar. Eu teria que ir até a Igreja para recarregá-los. Também precisava comer e beber, mas não tinha dinheiro. Uma ideia surgiu: vender alguns cilindros no mercado popular. Fiz isso, mas calculei mal. Na volta para casa, uma tempestade pegou a cidade de jeito. O serviço de geolocalização caiu e eu me perdi. Só me restava dez por cento de ar.

Acho que você pode imaginar o desespero. Veio a noite e com ela a angústia aumentou. Havia muita gente na rua e implorei por ajuda, mas as pessoas me evitavam como se eu fosse um fantasma. O flutuador da polícia passou e eu gritei para eles. Mas naquele mundaréu de gente não tinha como me ouvirem. A respiração ficou ofegante, o corpo cansado. Os bips de alerta não paravam. Era cada vez mais difícil pensar. Então vi o neon cintilante piscando em azul. "Compre aqui seu Oxigênio!". Era uma lojinha de ar na entrada de um beco encardido.

Corri arfando e cheguei ao beco. Esse foi meu erro, pois o ar acabou. O pânico me fez arrancar o respirador. Caí de joelhos apoiando as mãos no chão imundo. O ar pesado entrou queimando as narinas. Primeiro veio o odor sufocante da fuligem, depois minha boca secou. A visão embaçou e o coração disparava. O pulmão desesperado não ligava para a toxidade. Ergui a cabeça e inspirei por vários minutos. A tosse destruía minha garganta. Meus olhos ardiam e um gosto de carvão tomava conta. Eu não conseguia mais respirar. Um vulto se aproximou, era um homem grande, coberto dos pés a cabeça. Seu visor digital brilhava com luzes verdes fosforescentes. Por algum motivo desconhecido, ele me levantou e correu comigo para a lojinha. Assim que entramos, o ar purificado me trouxe de volta.

— Guenta aí que vou te levar pro o hospital.

Aquele homem era o João.

Sobrevivi, mas meu corpo foi sequelado para sempre. Tive sérios problemas de desenvolvimento que me deixaram com um aspecto horrível: magreza extrema, ausência de pelos, musculatura atrofiada, pele ressecada. Eu parecia uma caveira e essa alcunha funesta virou meu apelido. Mas quer saber? Eu não ligava. Inclusive, eu era o perfeito retrato da realidade à minha volta.

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⏰ Last updated: Dec 16, 2023 ⏰

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Oxigênio - Edição 2023Where stories live. Discover now