As Três perguntas

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Primeiro, ele sentiu uma pequena dor. Algo que poderia muito bem ser confundido com uma fisgada que irrompia bem no fundo de sua nuca. Logo depois, uma sensação morna e aguda irradiou-se por todo o pescoço, quase como se fosse um arrepio que surge do nada e lembra o toque sobrenatural feito por um anjo mítico e misterioso. Então, como sempre acontecia, acordou no meio da noite sentindo a cabeça pesada.

Diante de seus olhos, a escuridão perdurou por alguns segundos. Só então começou a divisar as formas dos armários, bem como a porta entreaberta de seu quarto. Com cuidado, se sentou na cama, para assim não acordar a esposa que dormitava ao seu lado.

Passou a mão nos cabelos e sentiu que estava empapado em suor. Parecia que mais uma vez, ele havia percorrido quilômetros dentro de uma outra realidade, dentro de um outro sonho insano. Era quase como se percorresse, durante apenas uma noite, todo um universo à parte. Vivenciando anos inteiros em um lugar onírico, distante e diferente de tudo o que existia.

Mas agora, isso não importava mais. A sua existência prévia nas terras de Morpheus já ia sumindo e minguando à medida que ele acordava. Então, enquanto engolia a saliva seca e amarga, ele teve noção de que as três companheiras novamente se faziam presentes.

É claro que elas não existiam. Não da maneira como concebemos as coisas, não da maneira como embalamos o sonho que chamamos de realidade. Elas não eram nem criaturas corpóreas ou mesmo aparições fantasmagóricas. Por isso mesmo, elas eram assustadoras. Elas eram as três perguntas que sempre o visitavam quando ele despertava naquela hora da madrugada.

A primeira, conviveu com ele por toda a sua infância. E só por isso, ele a imaginava como uma garota bela, diferente de tudo o que ele conheceu, que sempre o remetia à lembrança de sua primeira namoradinha e da primeira vez que sentiu a estranheza de ter um beijo roubado. Por isso, ele gostava de imaginar que ela teria cabelos vermelhos e se vestiria toda de preto. Como se fosse uma pessoa cheia de energia, sorrisos e segredos misteriosos.

Então ele sorriu quando escutou, como se fosse um sussurro, a sua indagação:

— Porque você está aqui?

Ele poderia muito bem responder que estava em seu quarto, acordando mais uma vez em um bairro de São Paulo. Mas essa era uma resposta localizada. Então, ele pensou em responder que estava vivo por um acaso, só porque Deus não o levou no acidente de carro que matou seus avós. Mas essa também era apenas uma resposta de fé. Então, como resposta, ele só abriu um sorriso para ela e se levantou para tomar um copo d'água.

Sem luz, o corredor do apartamento era um conjunto de sombras sobrepostas. Uma imagem abstrata que sempre o aterrorizou quando pequeno pois, para ele, observar a escuridão era como abrir uma porta para estranhos e assustadores universos, lugares habitados por monstros com grandes olhos e dentes pontiagudos. No entanto, com o passar dos anos e à medida que sua barba crescia e seus cabelos ganhavam algum cinza, o medo foi sumindo. Agora só restava a curiosidade sobre o que poderia existir além da escuridão.

Assim, ele agora sempre flertava com a imaginação e brincava com a possibilidade de que realmente em alguma sombra mais profunda ele pudesse simplesmente esbarrar com alguma criatura extraordinária. Ou quem sabe, encontrar algum segredo enigmático ao abrir uma porta misteriosa que o levasse a conhecer outros mundos além deste. Mas nada aconteceu em seu curto trajeto do quarto até a cozinha.

Foi só quando bebia devagar o copo de água, é que ele sentiu os pelos de sua nuca se arrepiarem por um pequeno instante. Esse era o sinal, quase a sensação de um abraço, que a segunda pergunta causava quando se aproximava dele.

Ele sentia e sabia bem no fundo de seu coração, que ela era mais velha do que a primeira. Por isso, às vezes, ele a imaginava com as vestes e as faces de suas antigas professoras do colegial ou mesmo com a aparência de suas tias preferidas. Aquelas mesmas que sempre escolhiam livros como presente de aniversário ou natal. Enfim, ela era a sua companheira do dia a dia. Aquela que sempre estava presente quando ele decidia que roupa deveria vestir e que papel desempenharia perante as outras pessoas.

As três PerguntasWhere stories live. Discover now