Pelos telhados

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O cheiro de sujeira e o som da chuva marcaram aquela noite, Silas Graywalk se encontrava em um beco escuro cujos paralelepípedos escorregadios se confundiam com as paredes. Na rua um burburinho era audível, passos apressados e metálicos passavam rente ao seu esconderijo:

- Para onde ele foi?

- Eu não sei capitão! Estava bem a nossa frente agora a pouco!

A escuridão era seu domínio, escondido ali Silas sabia que não seria encontrado, pôs a mão dentro de um bolso escondido em seu colete pegou seu prêmio e o olhou mais de perto. Parecia um olho, era um objeto globular feito de alguma pedra, provavelmente opala pela sua avaliação, no centro havia uma grande turquesa em forma de losango engastada e dentro desta uma pérola negra. Era uma peça rara, de extremo valor, ele não resistiu ao ver aquilo na sala do capitão da guarda...

Um som o chamou de volta à realidade e ele guardou a pedra novamente. Puxando o capuz sobre sua cabeça observou suas possibilidades de fuga ao mesmo tempo em que ouviu:

- Tem algo no beco!

Passos convergiram em direção a ele. Com destreza impressionante Silas apoiou um dos pés na parede e saltando de uma lateral até a outra conseguiu subir ao telhado da casa. ZUM! Um dardo passou raspando ao lado de seu ouvido.

- Ei!! Você pode machucar alguém com isso!

Volte aqui covarde fanfarrão! - Quem gritara era o capitão, um homem com quase dois metros de altura e um peito largo, usava uma armadura incompleta e um elmo aberto, em sua mão jazia uma espada e um escudo.

- Perdão mon senior minha frágil compleição física me impede de descer!

Com um aceno e desviando de mais um projétil silas pôs-se a correr pelos telhados.

- Peguem aquele desgraçado!

Apesar das provocações Silas sabia muito bem o que estava acontecendo ali, o capitão havia visto seu rosto, dentre os guardas provavelmente era o único. Escalara com ajuda de seu gancho a parede lateral da guarita dele, havia calculado o horário correto, porém como poderia imaginar que o brutamontes voltaria de surpresa? Agora tinha que fugir, o lado bom de tudo isso é que Silas vivera nessa situação desde que nascera.

Seus pais foram atacados por fanáticos traficantes de escravos, seu irmão abandonado à sorte em sua terra natal e no fim das contas o único sobrevivente do "resgate" que atacara a caravana escravagista havia sido ele. Desde então a guilda dos ladrões local o adotara, assim era em Arthon, nada se perdia naquele caos contínuo.

Qual seria o melhor lugar para se esconder? Após pensar um pouco voltou ao ponto de partida, aqueles guardas nunca seriam espertos o suficiente para encontrá-lo! Entrou pela janela superior enquanto ainda escutava ao longe o burburinho da busca, a sala era grande e escura, havia uma mesa com um candeeiro aceso na extremidade pela qual Simas entrou, próximo a porta estava uma grande estante de livros (Humpf! Aquele capitão tolo lá leria livros?) também um vão entre a porta e a mesma que lhe oferecia o esconderijo perfeito.

Ficou observando a sala por pouco mais de uma hora enquanto esperava os ânimos esfriarem lá fora. Havia uma mesa com vinho e duas taças, haviam frutas frescas ali também, atrás da mesa estava uma estante de armas quase vazia, tinha apenas uma espada esquecida previamente ali. Era estranho pensar que com tanta gente passando necessidade na cidade ainda havia comida deixada assim naquele local.

O capitão Crawler havia lutado muito para atingir aquela patente... bom, não que lutar fosse algo que não gostasse, mas envolvera muito trabalho até ali. Quando criança começara a treinar cedo, a espada e o escudo o acompanhavam desde que se lembrava, primeiro de madeira, depois de metal não afiado e por ultimo com o mais fino fio. Entrara para as forças armadas locais com o objetivo de galgar quantos degraus conseguisse.

Não que em sua vida tenha feito só coisas boas, talvez tenha dado uma surra ou outra nos moleques menos sortudos de nascer em uma família descente, mas que culpa tinha? A vida era assim mesmo.

Desde que chegara à posição de capitão já havia prendido muitos bandidos e executado outro tanto, nenhum crime havia passado incólume por ele, a única permissividade era proveniente das rinhas de escravos e de animais mantidas anonimamente, mas contra aquilo não dava pra lutar eram figurões do alto escalão que as mantinham. Decidira que pra todo o resto sobrara a espada ou a cela, era o capitão da guarda agora porque cumpria com sua função, e cumpria como ninguém!

O dia começava sempre as 4h da manhã, passava em todos os dormitórios conferindo se alguém estava queimando o turno, andava em volta da muralha inspecionando toda a circunferência da cidade, terminava o processo às 7h onde tomava o desejum, sempre um prato forte acompanhado de suco e frutas. Então ia fazer a ronda pelas feiras da cidade e passar na casa do governador que sempre o recebia pessoalmente para negociar coisas triviais, ao meio dia almoçava sempre uma carne e tomava uma caneca de hidromel, apenas uma para não nublar o julgamento, então ia até seu gabinete para ler as requisições e talvez, apenas talvez receber os favores de uma jovem manceba.

Ninguém era de ferro, quase todos os dias uma menina da casa rósea (bordel popular na cidade) o visitava, ser o capitão tinha muitas vantagens e ele fechava os olhos para os negócios delas, apenas porque o produto era bom e recompensava muito bem obviamente.

Crawler lutou muito na vida e por isso ele subiu, ganhara uma gema rara do governador, um ladrão, um maldito ladrãozinho a levara na calada da noite! O que aquele desgraçado não sabia era que o capitão já o reconhecera, afinal na sua infância já haviam sido amigos. Apenas hoje ele não diria o nome de Simas, daria um dia de vantagem e então o caçaria pelos becos da cidade, ninguém entrava em sua sala e o roubava, amigo ou não.

Já havia vasculhado toda a cidade atrás do antigo amigo e nada encontrara, frustrado e nervoso voltara até o gabinete e com a mão na maçaneta pensava sobre o que faria. Maldito Simas, agora ele teria que tomar uma atitude, não queria matar o amigo, mas no mínimo teria de surrá-lo e prendê-lo, humilhá-lo em praça pública para talvez o exilar em seguida, nesta cidade não havia espaço para ladrões.

Abriu a porta e entrou na sala, deu dois passos em direção à sua mesa e sentiu algo estranho na garganta, Crawler tentou falar, tentou perguntar o que havia acontecido e tentou chamar alguém, apenas um som borbulhante saíra de sua traqueia, dera conta tarde demais do que acontecera. Ali, olhando a figura esguia em sua frente com a adaga ensanguentada em mãos ouviu as ultimas palavras em vida:

- Desculpe meu amigo, mas você me viu.

Por: Vinicius Mendes Souza Carneiro

Pelos telhadosWhere stories live. Discover now