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Ouça uma melodia através do som do violoncelo. O som suave e selvagem daquele instrumento possui a capacidade de levar o individuo para outra realidade e parar o tempo. O som acalma as batidas do coração e permite que a vida dance ao seu ritmo. Ainda que não conheça de música, ainda que não se importe, os sentimentos colocados na melodia pelo violoncelista são perceptíveis. Ou talvez o que percebemos são os sentimentos ocultos em nossa alma. De qualquer modo, não deixam de ser magníficos. A vida no verão daquele ano muito se assemelhou ao som que procuro descrever: o som da dança das flores que são arrastadas pela ventania e o som das correntes de ar que se esquivam entre mares de morros em uma manhã nebulosa.

O tempo parava com a melodia, convidando cada mente presente a observar a vida e permanecer quieto um instante. Assim, observávamos. Eram em momentos de plena quietude que nos perguntávamos o que observávamos e o que passava por nossos pensamentos e nossa alma. Deste modo, foi um verão de extremo autoconhecimento, não que tenhamos percebido no momento. Creio que nunca estivemos exatamente presente naqueles preciosos segundos, caso contrário teríamos memórias mais claras acerca do céu ou do pássaro que voou sobre nossas cabeças enquanto olhávamos a expressão sorridente do outro a nossa frente. De qualquer modo, lá estávamos.

O calor escaldante nos deu, entretanto, uma sensação nítida de estagnação e espera. Enquanto o tempo parava, ficávamos a espera que algo nos acontecesse, que uma luz brilhasse sobre nossos corpos e descobríssemos algo maior. No fim, descobrimos apenas a nós mesmos.

Como estudante, a rotina exaustiva colaborava para a impressão de inércia. Levantava-me todos os dias antes do sol nascer com o cheiro do café percorrendo meu corpo, descia a escada sonolenta e me encontrava com meus pais, preparando torradas. Saia de casa para me encontrar com minhas amigas, subíamos as escadas infinitas até a sala de aula e abríamos as grandes janelas para entrar a brisa fria da manhã. Ali, permanecíamos sentadas sobre as cadeiras até a chegada dos professores, que enchiam o quadro com esquemas e apresentações. No fundo da sala, olhava para as janelas pensando no vento que batia na praça logo ao lado. Em breve estaria lá, e livre.

Naquele verão, diferentemente dos outros, fui chamada pelo meu professor para ajudar na preparação de uma cerimônia em um retiro religioso. Agradecida, aceitei. Minha jornada na escola católica e meu envolvimento com grupos após o horário da aula me preparavam para uma missão maior, que seria uma viagem com pessoas de todo o país e mais tarde, se assim concordasse, meu comprometimento com a ordem.

Fui deixada em frente a um lote com uma extensão verde surpreendente para um local situado na cidade. Os muros de uma casa no fundo subiam altos, com antigas janelas azuis e jardineiras penduradas exibindo coloridas flores. Ouço o sino tocando e vejo que, pontualmente, cheguei na hora da missa.

A Igreja estava surpreendentemente quente. Usava uma calça de malha marrom e uma blusa antiga de tricô preta de minha mãe, o cabelo caia grande e cheio sobre meus ombros. Parada a frente de uma cadeira branca de plástico, entoava as canções católicas com toda minha voz no salão principal e sorria para aqueles ao meu redor. Do lado de fora, o sol raiava e o céu azul destoava acima das grandes árvores. Esperava ansiosamente pelo momento final da missa, no qual iria conversar com o professor de religião, que me daria instruções sob como comandaria as orações e reflexões do grupo.

Quando a palavra final foi dita, caminhei pelos cantos do salão, observando o olhar sereno dos crentes ali presentes. Recebi instruções, um caderno e uma caneta. Tinha ainda algumas horas para poder decidir o que falaria e como faria. Olhando para o chão, caminhei lentamente até o jardim do instituto, sentando inclinada contra a parede e abrindo a bíblia.

O vento bateu leve sob as árvores, me chamando para olhar ao meu redor. Folhas voavam e via de longe as crianças brincando na quadra, longe o suficiente para que não as escutasse gritando com os colegas para que mandassem a bola. Via as formigas andando em linha reta sobre o chão, a águia voando sobre o céu e uma menina caminhando em minha direção. Quando chegou mais perto, pude ver que se tratava da novata, Luísa. Usava uma blusa de tricô branca e uma saia longa com estampas de elefante. Em seu pescoço, milhares de colares de cristais, das mais variadas cores. Sentou ao meu lado e perguntou se poderia se juntar.

O Acorde do VentoWhere stories live. Discover now