O Sexo dos Anjos

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João e Pedro eram os filhos. Isabel, Francisca, Isaura, Raquel, Geralda, Inácia e Das Dores, as filhas. Até um ano atrás, havia Isidro, cuja morte trágica e repentina Dona Arminda lamentava diariamente, ora contida e suspirosa ("Por que me levaram justo um filho, quando havia tantas filhas para levar?"), ora num pranto gritado, desesperado ("Deus levou o filho errado! Por que não levou uma das meninas?").

Isaurinha sempre desconfiou, ainda quando Isidro era vivo, que valia menos que os irmãos. Não porque lhe houvessem dito ― não se falava muito em casa dela. Depois que Isidro morreu, veio a certeza.

Mas não precisava ser assim. Ela não tinha que ser desimportante para sempre. Afinal, ela também poderia ser homem, como João, Pedro e Isidro, se passasse por baixo de um arco-íris. A professora do grupo escolar lera uma história assim para eles mês passado. Desde então, Isaura vinha se preparando, fazendo planos. O arco-íris, quando aparecia, era depois da chuva. Março se aproximava, e, no dia de São José, sempre caía uma chuvinha fraca, anunciando que era tempo de plantar o milho para o São João. Depois da chuva, um arco-íris, Isaurinha tinha certeza!

"Chegue, Isaurinha, vem debulhar o feijão!" Era Raquel quem chamava, a mão cheia de vagens que acabara de buscar na horta atrás da casa ― domínio dela. Isaura pegou a bacia para aparar os grãos e sentou-se ao lado da irmã.

"Raquel, mãe gosta da gente?"

"Hein? Gosta, Isaurinha!"

"Mas gosta mais de João e de Pedro, né?"

"É normal, Isaurinha, eles são homens!"

Isaura não compreendia, mas confiava em Raquel. Por um momento, quase chamou a irmã preferida para participar com ela da aventura, mas desistiu. Faria uma surpresa para todo o mundo! Ela ainda precisava escolher um outro nome, um nome de menino. Não poderia continuar se chamando "Isaura". Pensando bem, nem tinha que escolher. Iria se chamar Isidro, é claro! Mal podia esperar para ver a cara de felicidade de sua mãe!

De seu canto na sala de aula, Isaura percebeu com um frio na barriga que começava a chover. Era hoje! Sentiu os olhos se encherem de lágrimas, o coração tomar-se de pavor. Estava já tão acostumada a ser menina! Enxugou os cílios com as costas da mão. Tentou se encorajar pensando no prestígio que iria adquirir quando virasse homem. No quanto seria mais amada, mais apreciada. Se desse certo, organizaria uma excursão com as irmãs na próxima chuva e lotaria a casa de filhos para sua mãe.

Ao fim da aula, caminhou até sua casa com as pernas tremendo, e demorou no percurso o dobro do tempo habitual. Essa chuvarada não parava nunca? O arco-íris só surgiria quando ela cessasse, ou ao menos se tornasse apenas um chuvisco. Já em casa, passou a tarde inteira ao pé da janela, vigiando. Abandonava o posto para atender uma ou outra ordem da mãe ou das irmãs mais velhas, mas logo retomava a sentinela.

Lá pelas três horas, os pingos afinando cada vez mais, ela avistou a faixa colorida no céu.

"Mãe, posso sair para brincar um pouquinho?" pediu, o coração na boca.

"Vai, Isaurinha, vai!" a mãe concordou, fazendo pouco caso. Aquela menina nunca era de grande ajuda, mesmo!

Fazia mais de duas horas que Isaura vagava sem conseguir alcançar o arco-íris. Por mais que caminhasse, a distância entre eles parecia não diminuir nunca! Já adentrara o canavial (e só percebera minutos depois, o ardor nas pernas e braços nus denunciando os ferimentos causados pela palha dura e grosseira, tão absorta estava olhando o céu, seguindo o arco colorido, como o burro que só enxerga a cenoura presa à vara à sua frente). Começava a escurecer. Cercada de cana por todos os lados, tendo a vista livre apenas para cima, para o céu, e sem ter a menor ideia de para que lado ficava sua casa, ela estancou e começou a chorar.

A essa altura, a noite caíra por completo, e o arco-íris não existia mais. E agora, o que lhe restava fazer? Chorando cada vez mais alto, deitou-se no chão, exausta. A temperatura começava a cair com o avançar da noite, e ela, magrinha, usando um vestidinho curto e sem mangas, e trazendo os pés quase nus, mal protegidos pelos chinelos de dedo, sentia o corpo coçar pelas picadas de milhares de mosquitos, os braços e pernas lanhados arderem, e muito frio. Ruídos de algo rastejando na palha do chão lembravam-na de que o canavial estava cheio de ratos e cobras (por isso mesmo, João e Pedro usavam calças e botas quando iam trabalhar ali), o que só serviu para assustá-la mais. Fechou os olhos, entregue. Lutar para quê?

"Isaaaauraaaa!" duas vozes gritavam ao mesmo tempo no canavial. Era difícil enxergar através da vegetação alta, ainda mais à noite. Mas eles iriam achá-la, iriam, sim! João e Pedro tinham experiência em percorrer aquela plantação, era lá que trabalhavam.

Quando Isaurinha não chegara a tempo para o jantar, as irmãs foram procurá-la nas casas vizinhas ("Aquela menina só me faz passar vergonha," D. Arminda resmungava. "Deve estar aboletada à mesa de alguma vizinha, jantando, como se a gente não tivesse o que comer em casa!"). Mas nem sinal de Isaura. João e Pedro então pegaram seus candeeiros e também se lançaram à busca, tão infrutífera quanto a das irmãs. Restara apenas o canavial ainda por vasculhar.

"João, corre aqui!" Pedro chamou. João acorreu, e, por uns instantes, os irmãos quedaram estáticos, cada um segurando o candeeiro na altura da cabeça, a observar um corpo de menina largado no chão, à frente deles. Tinha os braços e pernas manchados de sangue seco, os lábios roxos, e uma pequena cobra coral aninhada em seu peito.

Diante do corpinho da filha caçula, ainda no colo do irmão mais velho, D. Arminda fez o sinal da cruz, enquanto murmurava: "Ainda bem que vocês estão vivos, meus filhos!"

O Sexo dos AnjosWhere stories live. Discover now