Capítulo Único

Começar do início
                                    

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Com o mês de janeiro chegando ao fim, a minha volta ao trabalho se aproximava cada vez mais, e com ela vinha também a data em que eu deveria entregar o meu primeiro artigo do ano. Nele, eu deveria fazer um retrospecto da última temporada e, com base naquilo, especular o que poderia-se esperar da próxima, para que pudesse comparar com os resultados no final daquele ano. Escrever qualquer coisa a respeito da temporada passada sem mencionar Charles seria impossível, eu sabia, e meu cérebro travava completamente cada vez que eu precisava escrever seu nome, fazendo a frustração tomar conta de mim ao ter que fazer diversas interrupções, diferente de antes, quando eu era capaz de escrever um texto de mais de mil palavras de uma só vez, em menos de meia hora.

Tentei aplicar as técnicas da meditação naquela tarefa, apesar de ser menos do que uma iniciante na prática, fechando os olhos e respirando fundo dez, vinte, trinta vezes, procurando encarar aquilo somente como o meu trabalho e tentando não me afundar na espiral confusa da minha relação pessoal com a coisa toda. Depois de um dia inteiro em que consegui escrever somente frases soltas e parágrafos desconexos, acabei me rendendo ao fracasso e ao esgotamento, sentindo o cérebro lentamente virando gelatina.

Uma garrafa de vinho branco vinha sussurrando meu nome constantemente pelos últimos dias, e eu tinha sido forte e resistido aos seus chamados. Até agora. Eu estava cansada e frustrada, e merecia um drink para relaxar naquela noite. Me servi uma taça e suspirei com o frescor frutado que desceu pela minha garganta quando dei o primeiro gole, e então abri o aplicativo do celular para escolher alguma comida para pedir para o jantar. Eu já estava enchendo a taça pela segunda vez quando o interfone tocou para avisar da chegada do meu pedido, e ainda tomei mais duas enquanto saboreava uma pizza e assistia uma série de comédia qualquer na Netflix para me distrair.

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A luz do sol que entrava pela porta da varanda me despertou e, antes mesmo que eu abrisse os olhos, senti uma dor lancinante na cabeça, como se alguém estivesse enfiando um prego no meio da minha testa, e me dei conta de que tinha adormecido no sofá da sala. Abri os olhos apenas alguns milímetros, sentindo a cabeça latejar, e dei uma rápida olhada em volta. A tv provavelmente tinha desligado sozinha em algum momento no meio da noite, e a mesinha de centro estava uma bagunça de papéis e o notebook amontoados de um lado, e do outro o meu prato da noite anterior, a taça e a garrafa de vinho. Vazia.

"Meu Deus, eu realmente tinha tomado uma garrafa inteira de vinho sozinha?"

Aquele pensamento me fez sentar no sofá com um sobressalto, sentindo mais uma pontada na cabeça e o arrependimento imediato na boca do estômago. Eu nunca fora o tipo de pessoa que acaba com uma garrafa de vinho em uma noite, e já começava a sentir os efeitos da decisão equivocada da noite anterior, com a cabeça girando me fazendo enjoar e sentir um gosto ruim na boca. Era impossível não lembrar das últimas brigas com Charles, onde o álcool não tinha sido exatamente o responsável, mas definitivamente impulsionava as discussões e as tornava piores. Suspirei enquanto lentamente começava a recolher as coisas da mesinha, pensando que aquilo não podia ser o que eu tinha me tornado, eu não ia deixar.

Mais tarde naquela manhã, enquanto me esforçava para engolir um chá de gosto duvidoso mas que supostamente era ótimo para o estômago, me vi novamente na minha área de reflexão na varanda, fitando a copa das árvores. Eu não admitia ter me tornado o tipo de pessoa que bebe a ponto de falar coisas que não deve e ficar de ressaca na manhã seguinte. E foi por isso que, ao virar o último gole daquele chá horroroso, decretei para mim mesma que não iria mais deixar uma gota de álcool entrar na minha boca enquanto eu não conseguisse colocar a cabeça no lugar.

O chá era mesmo muito ruim, mas o efeito positivo dele no meu estômago era inegável e, poucas horas depois, eu já me sentia mais disposta. Isso somado à minha satisfação pela decisão que tomara mais cedo me deu a motivação que eu não sentia há dias para que eu conseguisse enfim terminar de escrever o meu artigo. Cheguei a cogitar a ideia de abrir as últimas três garrafas de vinho que tinham sobrado no meu armário e despejar o líquido todo no ralo da pia numa daquelas cenas bem dramáticas de filme, mas desisti quando lembrei de todo o dinheiro que tinha gastado nelas, decidindo então que elas seriam um ótimo presente para o porteiro do meu prédio, que era sempre tão bonzinho comigo e me ajudava com as compras de mercado.

𝘩𝑎𝑝𝑝𝑖𝑛𝑒𝑠𝑠 || ᴄʜᴀʀʟᴇs ʟᴇᴄʟᴇʀᴄOnde histórias criam vida. Descubra agora