Eu Não Existo

74 2 0
                                    

     T. saiu batendo o pé da agência bancária. Não conseguia acreditar que tudo aquilo estava acontecendo, ainda mais com ele. Se fosse com qualquer outro aceitaria facilmente que fosse verdade, mas dessa vez não era. Sentou-se nas escadas em frente ao banco, perdido em seus pensamentos em busca de uma solução, sem dar muita importância para o senhor que já estava lá.
     - Dia ruim, amigo? - o senhor perguntou.
     - Você nem imagina.
     - O dia sempre fica melhor depois de um café quente. Aceita?
     Ao erguer os olhos, T. viu um velho de vestes bege, sujas de terra, com um sorriso mais genuíno em seu rosto que conseguia lembrar. Agradeceu a oferta, pegou o copo que lhe foi estendido e bebeu o primeiro gole. O café era fraco e aguado, como se não tivesse pó suficiente, mas ainda assim quente e aconchegante. Talvez não só pelo líquido.
     - Me conte o que aconteceu. Conversar pode livrar sua alma do tormento - disse o velho, enchendo um copo para si.
     Um suspiro escapou dos lábios de T. Não estava sendo um dia fácil e talvez aquele senhor tivesse razão.
     - Já aviso que pode ser uma história um pouco complicada de entender.
     - Vou prestar o máximo de atenção, então pelo menos faça ela ser interessante - brincou o senhor.
     T. abriu um leve sorriso e respirou fundo.
     - Tudo começou um mês atrás, mais ou menos. Saí do escritório após o trabalho atrasado para um jantar, eu acho. Não consigo lembrar bem qual era o compromisso. Tudo fica muito confuso depois de um acidente, sabe? O que eu lembro é que estava com pressa, dirigindo bem acima do limite de velocidade da pista. Foi quando, movido pela minha impaciência, achei que conseguiria passar em um sinal vermelho na avenida principal. Foi apenas um, mas um grande erro que cometi.
     "Na hora, não entendi muito bem o que estava acontecendo. Senti o impacto e vi o chão se tornar o céu e vice-versa enquanto meu carro se arrastava pelo asfalto frio e áspero até se chocar contra uma parede. Estava bem tonto quando parou. Acho que bati a cabeça, já que desmaiei logo em seguida. Minha última lembrança é de um cheiro denso de fumaça. De algo queimando antes de tudo se apagar."
     "Acordei no hospital em seguida. Ao perguntar para um enfermeiro, descobri que passei cinco dias desacordado. Por si só, isso já era ruim, mas ainda não foi o pior. Olhei com uma dificuldade imensa, pois meu corpo ardia muito, para meus braços e minhas pernas. Estavam totalmente desfigurados. Assim como minha face, meu torso, tudo. Eu havia sido inteiramente queimado naquele acidente, foi o que o médico disse, e por um milagre ainda estava vivo."
     - Você não me parece queimado agora - comentou o senhor.
     - Bom, isso foi por causa da proposta que o médico fez. Ao longo das semanas que fiquei internado, rejeitei todas as visitas. Sempre fui elogiado por ser muito bonito e, bem, não queria que ninguém me visse naquele estado, que tivessem aquela visão em suas memórias.
     "Em uma das últimas visitas do médico, ele disse que meus exames estavam indo bem e que logo eu poderia ir para casa. Mas sabia que isso não era verdade. Minha aparência, que eu tanto prezava, não era mais a mesma. Perguntei se não tinha nada que ele poderia fazer. Foi aí que ele me propôs um método de tratamento. Ainda estava em fase de testes e, por isso, ele não poderia ter registros, mas me garantiu ser um método eficaz. Eu, com minha vaidade, aceitei na hora. No fim, acabou sendo mesmo um bom método. Era a acoplagem de pele sintética. A musculatura, os ossos, e tudo mais ainda continuam sendo meus, no entanto, essa pele que está vendo agora não é minha de verdade."
     - Isso parece muito bom.
     - Em grande parte foi, não dá para negar. Simples, rápido e indolor. Porém, por ser ainda em testes, não tinham como fazer algo muito personalizado. Me deram um novo rosto também. E aí que os problemas chegaram.
     "Quando saí do hospital estava sem dinheiro, já que meus cartões foram destruídos no acidente. Por isso vim até essa agência. Fui até o balcão de atendimento, onde a mulher pediu a digital para acessar a conta. Você já deve ter imaginado, não? Assim como a pele, as digitais também não eram as minhas. A leitura deu errada três vezes, então pediu um documento com foto. Entreguei e, bom, a expressão que ela fez não consigo nem mesmo descrever. Tive que lhe explicar sobre o acidente e o tratamento, mas não pareceu se convencer e me disse para falar com o gerente."
     "Não tive muito mais sorte com ele. Primeiro, me olhou como se eu estivesse tentando aplicar um golpe. Após ouvir a história, o gerente me pediu algumas informações de confirmação. Nome da mãe, últimos dígitos do CPF e mais vários outros, o que o deixou ainda mais confuso por eu conseguir acertar todos. Então me disse que poderia fazer algo caso eu entregasse uma comprovação do procedimento, me dando esperança. Isso vai ser fácil, pensei."
     "Liguei para o hospital na hora. Lembra que o médico havia me dito que não poderia ter registro do tratamento? Para encobrir tudo, ele também me apagou dos registros. Segundo as informações do sistema, eu nunca sofri um acidente, nem fui para lá. Quando ouvi isso fiquei arrasado. Desliguei e tentei uma última súplica ao gerente e, por causa disso, fui expulso da agência sob ameaças de chamar a polícia. Percebi, então, que não só não conseguiria mais o dinheiro da minha conta, como também não poderia ser eu mesmo, já que meus documentos não são meus. São de outra pessoa de mesmo nome. Eu, legalmente, não existo."
     Após ouvir a história, o senhor tomou o último gole de café e colocou a mão no ombro de T.
     - Então parece que o destino me mandou para eu lhe dar boas vindas - disse ele - eu também não existo legalmente, assim como milhões de nós, por diversos motivos. Vivemos em uma comunidade, onde não nos incomodam por isso.
     - Nunca ouvi falar disso.
     - É claro que não. Ninguém quer nos ver porque não querem ajudar. Isso mexe com o ego dos que existem, por isso preferem que desapareçamos - disse o velho, levantando e colocando a mochila nas costas - bem, tenho que ir embora agora. Se quiser, pode vir comigo. Eu lhe ensinarei como é viver sem existir.
     T. pensou por algum momento, vendo a figura que se afastava. Então, em um pulo, se levantou e foi atrás do senhor, abandonando sua antiga vida, a vida de alguém que não existe mais.

Eu não existoWhere stories live. Discover now