[AVISO: CONTÉM CENAS DE VIOLÊNCIA, SEQÜESTRO]
"Lucinha, passa o leite condensado faz favor?"
O sol já inundava a ampla sala de estar do luxuoso apartamento do Coronel Almeida, em Copacabana. A vista privilegiada da praia através das janelas panorâmicas era de tirar o fôlego. A mobília sofisticada e a decoração elegante mostravam o bom gosto de sua esposa, ou dos decoradores que ela adorava contratar de tempos em tempos para renovar a moradia.
A família saboreava o café-da-manhã como sempre fazia, ouvindo o jornal da manhã enquanto a filha Isabella se arrumava para ir à faculdade. A empregada acordava todo dia às cinco da manhã e comprava tudo que os patrões gostavam: frutas frescas, pães quentinhos, frios importados e geléias, tudo meticulosamente disposto sobre uma toalha de linho egípcio bordada em Portugal. O aroma do café recém-preparado envolvia o ambiente com seu perfume reconfortante.
A televisão estava ligada na Rede Globo e apresentava o jornal matinal, e normalmente servia apenas como ruído de fundo para quebrar o silêncio desconfortável que sempre havia quando o coronel estava presente em qualquer recinto do apartamento. Mas naquela manhã esse equilíbrio delicado foi interrompido quando o noticiário anunciou uma reportagem especial, que lentamente chamou a atenção do Coronel.
"Realmente chocante esta descoberta em Petrópolis, que vocês estão acompanhando aqui ao vivo", dizia o repórter "Segundo a Polícia Federal, era neste porão que os militares escondiam os corpos das vítimas das torturas. Aqui nesta casa durante a ditadura teriam ocorrido sessões brutais de tortura, e os corpos então eram enterrados debaixo do imóvel."
As palavras ecoaram pela sala enorme, fazendo com que o coronel Almeida engasgasse o último gole de seu café. Girou o corpo lentamente, colocou os óculos e tentou fixar seus olhos na tela da TV, enquanto seu coração já batia mais acelerado. Sentiu a respiração ficar pesada e o suor frio começava a escorrer pela testa.
"Esta é mais uma investigação exclusiva da nossa equipe de jornalismo", continuou a apresentadora do jornal "e já adianto a vocês que as imagens são fortes e chocantes. A casa em questão está localizada em um dos bairros mais nobres de Petrópolis, e polícia está confirmando que ela esconde um passado realmente perturbador."
Isabella percebeu a mudança na expressão do pai, e se manteve em silêncio o quanto podia. Mas o sangue começou a ferver. Então era verdade. Suas suspeitas mais íntimas e aterrorizantes eram mesmo verdade.
Lúcia parecia cada vez mais desconfortável diante da reação do marido. Isabella continua observando o pai, incrédula. O Coronel tentava disfarçar seu nervosismo, mas o olhar atento da filha atravessava sua carne e gelava os ossos.
"Então era tudo verdade. Aqueles longos períodos que você passava fora. Os aniversários que você perdia porque tinha que resolver alguma coisa em Petrópolis. Então era tudo verdade.", perguntou Isabella, com a voz trêmula e os olhos marejados de ódio.
"Eu não sei do que você está falando", respondeu o coronel, fingindo que ignorava o olhar da filha. Tentou servir mais café, mas a mão tremia.
"Não adianta mais mentir, pai! Eu não sou mais criança! Eu me lembro claramente de muitas conversas que o senhor tinha naquela época! Você estava envolvido nesse holocausto todo, não estava? Claro que estava! Puta que pariu..."
A mãe arregalou os olhos e deu um tapa no braço da filha.
"Olha o palavreado, Isabella! Parece uma favelada!"
A filha se levantou, exaltada.
"Palavreado, mãe? A senhora foi casada com um torturador esses anos todos mas o problema é o meu palavreado? Tomar no cu também! Puta que pariu, eu não tou acreditando que isso tá acontecendo..."

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Ossos do Ofício
TerrorNo início dos anos 1990, a Polícia Federal revela que o porão de uma casa em Petrópolis escondia restos mortais que comprovavam que aquele local havia sido utilizado por militares para torturar pessoas na época da Ditadura. A filha do Coronel Henri...