"Todo mundo é capaz de dominar uma dor, exceto quem a sente."
- Muito Barulho Por Nada, William Shakespeare⋆
Existem momentos na vida, em que o espírito parece se acomodar, verdadeiramente, no corpo.
Uma sensação estranha atinge o ser, que, à partir daquele momento, passa a compreender sua existência como uma outra qualquer.
Quando o espírito se acomoda na carne, o homem se torna bicho e por se tornar bicho, sente, ao mesmo tempo, cada um de seus sentidos.
O tato arrepia a pele.
O som, mesmo mínimo, quase estoura os tímpanos.
A visão é clara e, mesmo no escuro, os detalhes das sombras se fazem ver.
Os cheiros são mais intensos, fazem arder o nariz, às vezes, até sangrar.
O amargo no paladar é mais amargo, o doce é tão doce que enjoa.
É tudo muito, muito ao mesmo tempo.
Quando o espírito se acomoda no corpo, o bicho sente o mundo todo ao seu redor.
Para que o corpo se acomode na carne, é necessário que algo engatilhe o sexto sentido. E o sexto sentido, nada mais é do que a racionalização de todos os outros.
Amaury se tornou naquela manhã, ainda antes de despertar por completo daquele sono tão leve, um bicho.
Seu espírito se acomodou tão bem na carne, nos ossos, no sangue, que perturbá-lo lhe causaria profunda melancolia.
Ele até tentou se convencer de que sentia tudo e tanto porque bebeu muito Whisky barato na noite anterior.
Porém, tanto seu corpo quanto seu espírito sabiam que o destilado era o último dos causadores daquele estabelecer transcendental e raro.
Se fosse por um Whisky barato, o espírito de Amaury teria encontrado sua carne mais de mil vezes, somente nessa vida.
A verdade é que, o gatilho para a arma que o dilacerou ao ponto de sentir tudo, estava no cômodo ao lado. Deitado em sua cama, usando suas roupas, após comer de sua comida, tomar de sua água, se banhar em seu chuveiro.
De alguma forma, a presença alheia naquela casa outrora tão vazia, tão escura, lhe causava sensação de segurança e paz muito mais intensa do que a solidão.
Fazia silêncio reverberar por cada quina, de cada móvel.
Silêncio.
Nunca antes, entre as paredes daquela casa, fez tanto silêncio.
Não silêncio que faz eco quando uma colher cai no apogeu da madrugada. Ou que grita, se rebatendo em um esperneio de agonia por se fazer presente.
Não.
Fazia silêncio.
Daquele completo, seco, forte, simples.
Nada, nem mesmo seu coração, o cortava.
Nada.
Muitos pensam que a paz se encontra na solitude, no vazio, mas para um artista como Amaury, essa sensação se encontra no muito.
O artista só sente paz quando dá ouvidos à tudo que sente, que toca, que vê. Quando externaliza a agonia, transforma o grunhido em canção, o pensamento em palavra.
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XVIII
FanfictionMas em ti o verão será eterno, E a beleza que tens não perderás; Nem chegarás da morte ao triste inverno: Nestas linhas com o tempo crescerás. - William Shakespeare Pessoa certa, hora errada. Quantos versos serão formados através desse encontro? p...