Venha!, sente-se, vamos! Se demorar, o chá vai esfriar!
Perdoe a anamnese diante dos fatos, não há quem culpar se não eu mesmo pela escassez de informação e pode ser que venha entender mais tarde os motivos pela qual não consigo pontuar algumas situações. Meu nome é Felix, Lee Felix, e, bem, essa não é uma história feliz.
O bule de chá se curva suavemente e o líquido é despejado com a mesma delicadeza dentro da xícara, a fumaça é admirável e ele fecha os olhos, apreciando o cheiro doce.
Uma coisa deve saber: não há nada mais fino do que a lâmina de uma faca para separar a felicidade da melancolia. Observe ao seu redor e ela estará em cada canto, em toda curva que dobra uma esquina e até embaixo das pontes, nos lugares mais inusitados como um parquinho para crianças em uma praça. Não escolhemos a melancolia, ela nos escolhe.
Você sabe, eu costumava ter uma mãe e um pai, até um dia acordar e ter apenas um pai e no dia seguinte, uma parte do que era meu pai.
Sorveu do chá após assoprar a fumaça para longe, não que fosse possível separar uma coisa da outra e, pelas expressões que se seguiram, ele sentia um carinho por aquele líquido, não só isso, ele gostava genuinamente.
Ele nunca se deixou atrasar, sabe? O chá sempre servido antes das 09h, e depois às 16h, e às 21h, mas se ficasse acordado até as 02h, lá estaria ele, fervendo mais água. Meu pai era chapeleiro, e ele gostava muito do que fazia e tinha muita vontade de viver. Mas ele também amava muito minha mãe.
Naquela manhã ele não levantou, não; ele dormia em profundo sono, jazia em transe. Precisei ser responsável pela primeira vez; o mais velho de seis órfãos de mãe ─ e meio pai ─, com uma casa inteira para cuidar.
Sua xícara esvaziava como se estivesse furada, ele bebia o chá sozinho e era de se notar as pupilas cada vez mais dilatadas.
Eu não acredito em Deus, sabe? Pelo menos não no Deus convencional do cristianismo, mas se Ele existe?, céus!, só Ele sabe o quanto eu desejei acreditar em sua existência.
Na costa leste, há uma casa maltrapilha e é lá onde moro. Ninguém crê quando eu digo, mas ela fala. Ela canta e eu escuto! Juro!, vem dos assoalhos, vincos das portas, do teto empestado de fisga e, se prestar bem atenção, da madeira puída das paredes. E ela não se importa, ta? Se é dia ou noite, ou se há alguém ou não, basta olhar com cuidado e lá estará: invisível, mas eu ainda vejo, eu sinto. É uma casa pequena para oito, ─ agora sete ─, definitivamente, mas ainda é uma casa, certo?
Dois quartos, eu me lembro, e um único banheiro. É engraçado pensar sobre isso, cresci achando normal ter um sofá na cozinha, então já imagina qual foi minha reação ao descobrir que a sala de estar e a cozinha, majoritariamente, são cômodos separados? É uma casa pequena, pequena e assombrada, e as paredes tremem quando chove, como se estivessem chorando. E, bem, foi nela que tudo ─ absolutamente tudo ─ aconteceu. Como eu disse: assombrada.
O chá já não existe mais, sequer em sua xícara e parecia um tanto quanto desapontado, embora não tenha feito nada a respeito.
Eu disse que tinha uma mãe, não disse? Ela tinha olhos muito grandes para uma mulher pequena e esguia, mas eram olhos muito bonitos. Ela me amava e, naquela época, meu pai também.
Não lembro exatamente o que aconteceu, há névoa nessas memórias, lembro que estávamos em casa e mamãe estava deitada sobre lençóis brancos, quer dizer, lençóis que um dia foram brancos e agora estavam manchados de sangue. O líquido viscoso ainda escorria de sua pele em grandes proporções, mas ela sorria, ela sorria quando partiu deste mundo.
Foi a cena mais linda que eu já vi.
Os dedos envolviam a xícara vazia e estavam com as pontas vermelhas, ele apertava o material de porcelana e olhava distante.