Tudo estava em mais perfeita ordem e sincronia, mas pelo visto se "esforça demais" virou um crime maior que o Pico da Neblina aqui em Lençóis Paulista, desgraça! E detalhe, tenho exatos vinte e sete anos! A quantidade de carvão que posso queimar o Cristiano Ronaldo não tem de gol na carreira, enfim.
Há um tempo, que deve ter sido entre quatro a seis meses atrás, a prefeitura da minha cidade reconheceu o meu talento e me contratou para ser o arquiteto-chefe responsável pelo projeto "Nova Lençóis Unida", que prevê a criação do melhor e mais recente bairro do nosso município. Desconfio que eles "apostaram" em mim para assumir esse cargo devido aos meus fantásticos trabalhos e boa reputação, pois modéstia a parte, quando você fica conhecido como o "arquiteto fenômeno" ainda jovem é porque no mínimo tu é o novo Oscar Niemeyer. Claro, isso apenas na cabeça de quem não sabe o quão grande foi o Oscar Niemeyer, sendo sincero, nem eu sou capaz de quantificar em números ou elaborar em palavras a magnitude das suas obras. A questão inclusive, é que eles também não sabem!
Não sabem da genialidade do meu ídolo, são incapazes de compreender a minha paixão pela arquitetura e nunca saberão a maior dificuldade encontrada no planejamento urbano de um bairro inteiro, como elevar o nada a perfeição absoluta, independente dos custos monetários ou da minha saúde. Meu corpo magrelo e fraco no final de cada dia de trabalho fica parecendo uma vassoura vagabunda, quebrada, imunda que não consegue ficar em pé direito, se bem que nessa analogia eu seria uma vassoura de ponta cabeça, por conta do meu cabelo grande. De qualquer forma, a equipe de construção e a prefeitura são uns ignorantes quanto a isso, pensam que sou louco porque realizo o meu emprego por prazer, todavia, faço o que faço por necessidade e pelo meu dever de compensar... Não! Na verdade, essa última parte ninguém precisa saber. Porém, eu quero que o Brasil inteiro saiba dessa pachorra que a minha supervisora, Rosana Lispector, me disse logo após o almoço da terça-feira passada.
- Aluísio Henrique! Já te disse, sou uma mulher que fala as coisas uma única vez e depois não dou segundas chances. Então aconselho fortemente que o senhor procure um médico, descanse e só volte para o trabalho quando se sentir bem, caso contrário, irei relatar o seu comportamento autodestrutivo para o RH e nem tente, nem tente! Me enganar falando que "eu estou bem Rosana", você é um péssimo ator! Olha, você não precisa se esforçar tanto assim - ela falou essa mentirada igual uma mafiosa intimidando um cara, tipo a Mamãe Metralha da Disney, e para a sorte dela eu tenho medo de mulheres baixinhas, gordinhas e irritadas devido à Turma da Mônica, se não eu teria retrucado! Portanto, naquele dia fui obrigado a acatar a "sugestão" dela.
- Certo, certo. Já estou indo para um hospital porque talvez, só talvez, eu não esteja bem e a senhora neste momento está tomando uma atitude desnecessária, saiba disso! - em seguida tive que ir para um hospital, onde lá tomei soro na veia e peguei um atestado para ficar três dias de repouso. Afinal de contas eu estava desnutrido, doente e sofrendo de insônia já fazia algumas semanas.
E mesmo assim ninguém exceto a Rosana percebeu o meu estado, sabe por quê? Porque eu sou um excelente ator! Aquilo que a Rosana disse antes era caó puro, eu até... Esquece! Fato é, o ser humano é um bicho contraditória né? Como havia dito antes, intencionalmente, racionalizei o desgaste das minhas condições físicas como um pequeno custo a se pagar em troca de obter o resultado perfeito. Contudo, na primeira "apertada" da minha supervisora quase me expulsando para ir ao médico, na mesma hora eu meti o pé direto para o hospital! Talvez por um instinto de sobrevivência? E agora que estou em casa descansando, não quero mais estar aqui! Não posso lutar contra o meu "eu" racional e nem contra o meu "eu" natural, e eles são contraditórios, é um maldito paradoxo!
Preciso pensar melhor, saio de casa e vou para "Nova Lençóis Unida" ver a minha obra de arte em progresso. Hoje é quarta-feira a noite, estou de frente a entrada do bairro, todos os funcionários devem estar dormindo em seus lares a essa hora. Fico parado enquanto admiro essa bela vista realçada pela luz da lua, bonito, muito bonito! Mas de tanto olhar, juro por Deus que "Nova Lençóis Unida" olha para mim de volta e diz.
- Boa noite Aluísio! Estás aqui por culpa?
Um bairro senciente? Estou alucinando? Quer saber, estou cansado de pensa então só aceitarei essa conversa, desde meu alicerce até a minha forma.
- Sendo você a minha criação, meu reflexo. Essa pergunta vem porque você conhece as minhas memórias e sentimentos?
- Quem perguntou primeiro fomos nós.
- Nós? - questiono.
- Sim! Antes éramos nada, agora nós somos um vasto organismo vivo em construção onde cada molécula se junta para armazenar as memórias das pessoas que aqui passarão. Memórias significativas que flutuaram no espaço-tempo, mas serão cravadas em nós. Contudo, peço para que o senhor tire do peito a resposta do qual nós sabemos que quer tirar, pois também sentimos! Sentimos sua agonizante culpa, e queremos dar um fim nela - eu desabei.
- Por quê? Não consigo me entender, já faz tanto tempo! Na escola eu fazia parte do grupo de teatro, era o ator principal e durante a peça relei, sem querer, de maneira ruim em algumas atrizes. Mas isso não muda o que fiz, o que fiz é assédio! Um crime imperdoável, vindo de um acidente que cometi mais de uma vez sem nem percebe. Não julgo o ódio delas, por isso aceitarei qualquer ódio e dor direcionado a mim, vindo de qualquer lugar - o bairro tristemente gargalha, atrás da minha nuca sinto uma arma?
"O criador é a obra, a obra é o criador".
FIM.

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Copo com lápis - Coletânea
ContoCopo com lápis é uma pequena coletânea de histórias, do qual reúne todos os contos que eu escrevi e publiquei para o Wattpad durante o meu período cursando o ensino médio. Ou seja, na época em que a minha escrita criativa ainda estava se formando, o...