Era mais um dia comum. Um dia bom. Porque depois de passar tanto tempo na cadeia, qualquer dia em que acordasse ao lado do marido, saísse para trabalhar e voltasse pra casa encontrando um Kelvin sorridente se arrumando para ir ao Naitandei, era um bom dia.
E naquela terça-feira, tudo estava seguindo a normalidade.
O despertador tocou e ele viu os cabelos ruivos de Kelvin em seu peito. Ele estava deitado ali, abraçado a Ramiro e respirando leve, em um sono que parecia muito confortável. O preto fez um cafuné suave naqueles fios e se levantou com cuidado, tentando não acordá-lo, o que não funcionou.
— Bom dia, Rams. Já tá indo trabalhar?
— Dia, Kevinho. Tô indo, sim, mas ‘ocê fica dormindo aí mais um pouco, tá? — abaixou e deixou um selinho nos lábios dele. — Amo ocê!
— Também te amo, Ramiro. — foi a frase que ele disse antes de abraçar o travesseiro e se virar para dormir novamente.
Se ele soubesse o que estava por vir, teria aproveitado mais aquele momento com o marido...
Ramiro teve uma rotina tranquila no trabalho, em uma fazenda próxima de Nova Primavera. Foi liberado um pouco mais cedo aquele dia e estava feliz que chegaria logo em casa. Porque agora ele tinha uma.
Depois de tanto tempo morando em um quartinho, Ramiro, agora casado, tinha uma casa para chamar de sua. Um lar dele e do seu Pequetito. E nada o fazia mais feliz.
Entrou no carro, pensando no tempo a mais que teria para aproveitar com o marido, antes deste sair, e então viu o telefone tocar e nome aparecer no visor: Pequetito.
— Oi Pequetito! Tô indo pra casa agora, ‘cê acredita? Patrão liberou todo mundo cedo!
— Ramiro, você tá bem? Eu tô com um sentimento ruim, um aperto no peito. — a voz dele transmitia como ele estava agoniado.
— Tô bem, sim, meu amô. Já, já chego aí.
— Eu tô preocupado, Rams. Toma cuidado, por favor.
— Fica tranquilo, Kevinho. Daqui a pouco tô em casa com ‘ocê, prometo! Te amo, tá?!
— Também te amo, amor. — e desligaram a ligação.
O aperto no peito de Kelvin não passou.
Aquele era um dia comum... era um dia bom… Até que de repente não era mais.
Ramiro estava numa estrada de terra quando percebeu um carro acelerando atrás do seu. Imaginando se tratar de alguém com muita pressa, jogou seu próprio veículo para o lado com cuidado, dando espaço para passagem, mas foi surpreendido quando o outro motorista acompanhou seu movimento e quase colidiu em sua traseira.
Com as sobrancelhas se unindo e estranhando o movimento, o preto acelerou um pouco mais e desviou outra vez, sendo seguido de perto, e foi então que percebeu que não se tratava de uma situação convencional… Quando olhou pelo retrovisor, assistiu uma mão com uma arma sendo colocada para fora da janela do carro preto com vidros fumê atrás do seu, soube que precisava dirigir por sua vida.
Sem pensar duas vezes, pisou no acelerador com toda a sua força, não se deixando desviar os olhos da imagem do outro veículo, quase prevendo o primeiro tiro, antes de girar o volante rápido o bastante para a bala atingir apenas a lataria da lateral de seu carro, possivelmente deixando uma marca que, naquele momento, estava longe de ser sua preocupação.
Ramiro já havia estado do outro lado daquela situação e agradecia por não estarem em um lugar mais movimentado, pois sabia que a pessoa detrás do outro volante não se preocuparia com qualquer um que estivesse por perto, se sua missão fosse aquela a qual o preto imaginava ser: matá-lo.
Ele deveria ter imaginado. Deveria saber que depois de tudo o que fez, para tantas pessoas e todos os lados, em algum momento seria cobrado. Deveria ter noção de que apenas o tempo atrás das grades não seria o suficiente para fazê-lo pagar. Os outros sempre desejavam mais, às vezes, desejavam e buscavam pelo pior para se vingar.
Enquanto dirigia sem saber ao certo o que fazer e tentando manter-se longe das balas disparadas, sentiu as lágrimas escorrerem contra seu rosto. Havia uma chance de fuga, sempre havia uma, no entanto, quanto ela poderia lhe custar?
Fugir naquele momento significaria que, aquela pessoa, quem quer que fosse, tentaria outra vez… E outra… E outra… Até que alcançasse seu objetivo. E talvez o antigo Ramiro até mesmo o desafiassse a tentar, mas sua versão mais recente jamais o faria, não se isso significasse colocar as pessoas ao seu redor em perigo também. Colocar seu marido em perigo também.
Não. O homem que ele havia se tornado não permitiria que aquilo se tornasse um jogo de gato e rato no qual ele era a presa, mas também não iria tocar numa arma outra vez e sujar suas mãos para virar a situação. Ele daria o que tanto queriam se isso significasse proteger quem amava e não permitiria que seu perseguidor tivesse a chance de fazer mal a qualquer outro alguém.
Sabendo que precisava agir depressa, antes que pegassem a via principal a qual, sem dúvidas, se encontraria movimentada, Ramiro iniciou uma série de manobras, cada vez mais inconsequentes, para não ser atingido, permitindo que o outro sentisse o gosto da vitória enquanto se aproximava o bastante para provavelmente enxergar através de seus vidros e acertá-lo, ou quem sabe, atingir seus pneus, sem dar-lhe tempo de escapar desta vez. Foi quando realizou sua última ação, numa curva acentuada, um giro violento do volante, que fez o carro rotacionar e parar, conforme seu pé mudava de posição para frear de uma só vez.
Ele sentiu um baque forte quando o carro escuro bateu em sua lateral sem que houvesse tempo hábil para resposta, levando-os para além do acostamento e destruindo as duas latarias conforme seguiam derrapando e atingindo árvores e rochas pelo caminho.
Seu corpo ricocheteou com a força do impacto e sua cabeça atingiu uma superfície dura.
Pareceu levar uma eternidade, seus pensamentos viajaram conforme sentia o sangue quente escorrendo e tomava noção de que perderia a consciência em breve. A fumaça de ambos os carros atingia suas narinas e, de relance, ele pôde ver o braço para fora do outro carro, sem qualquer movimento, indicando que seu condutor estava, no mínimo, desacordado, mas teve esperanças de que fosse mais do que isso, de que tivesse conseguido.
Lembrou-se da promessa feita para o marido de que em breve estaria em casa, e sentiu uma dor, que não era física, ao notar que não seria capaz de cumpri-la.
Por quanto tempo Kelvin o aguardaria? Quantos minutos ou horas levariam até a notícia o alcançar? Ramiro não sabia dizer, e talvez nunca fosse saber.
Sua visão ficou turva e, com o corpo já esfriando, a dor se tornou muito mais do que um breve incômodo.
Ele sentia muito.
Sentia muito que o para sempre dele e de Kelvin houvesse durado tão pouco.
Por não ter dito uma vez mais que o amava.
Por não poder falar, ao menos, que sentia muito por não ter levado a sério suas preocupações e lhe dado esperanças de algo que não aconteceria.
Por saber que o faria sofrer.
No entanto, se o seu grande amor estivesse a salvo, então duas vidas a menos teriam valido a pena, concluiu antes de perder por completo a consciência.
Estão gostando? Como o Ramiro vai sair desse acidente? Comentem, votem e compartilhem, se for merecido.
Até o próximo!
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Deslembrança
FanfictionOnde Kelvin se vê mais uma vez diante de um sentimento que parece inalcançável. "Tudo o que há nesta vida, inclusive ela mesma, é frágil o bastante para se quebrar e perder num milésimo de segundo, mas o verdadeiro amor sobrevive a tudo."