Sunny teve um sobressalto. Foi como se a terra tivesse rachado. Seu coração idoso bateu forte, e ela levantou os olhos para o céu ameaçador. Nuvens bloqueavam o sol. O vento estava furioso e, embora a temperatura estivesse muito abafada, chegando à casa dos trinta graus todas as tardes, Sunny sentiu um arrepio frio como a morte. Ele lhe acometia os ossos todas as manhãs, depois se acomodava como um cãozinho que dá voltas antes de se deitar. Inquieto. Insatisfeito.
Estava cansada de ser prisioneira. Parecia que, independentemente de para onde fosse, havia guardas. O hospital era a pior das prisões, mas, depois dele, Rex insistira para que ela ficasse em suas terras. Havia uma casinha no sopé das colinas, onde ele a havia hospedado. Onde Willie ia visitá-la. Onde quase se sentia segura. Isso até ver a fraqueza de Rex e saber que ele acabaria sendo forçado a contar às autoridades onde ela se encontrava.
Foi embora então e começou a andar pela mata. Os filhos precisavam dela. Sabia disso. As imagens de fogo e água se elevaram de novo atrás de seus olhos. Perigo à vista. Do pior tipo. Olhou para a lua e para as estrelas, mas elas estavam escondidas, e a escuridão cobria a floresta.
Não estava com medo, tentou convencer-se. Era paciente. Aguardaria por um sinal.Cassidy esticou-se na cama e a encontrou vazia. Chase já fora embora, mas não tinha importância. Haviam passado a noite compensando o tempo perdido, fazendo amor e dormindo apenas para fazer amor novamente. Sentia o corpo todo tremer e certa sensibilidade entre as pernas.
Vestiu uma das camisas do marido e a foi abotoando, enquanto ia descalça para a cozinha, onde já havia café pronto. Olhando pela janela dos fundos, viu-o de pé, na borda do lago, os olhos fixos na água. Aguardando por ela.
Sem desapontá-lo, Cassidy correu para o lado de fora, as laterais da camisa batendo em suas pernas nuas, o carinho doce da manhã fria correndo por sua pele. Chase olhou para o lado de onde ela vinha, mas não sorriu. Cassidy imaginou se os antigos obstáculos que eles haviam derrubado na noite passada haviam ressuscitado.
- O último a cair na água é mulher do padre - disse ela, quando ele se virou. Seu coração parou por um minuto. Ele se parecia tanto com Brig que ela não ousou respirar.
- Algo errado?
- Não... eu... - Estava sendo tola, claro. Emoções demais ao mesmo tempo. - Vamos lá. - Tirou os botões de suas casas, deixou a camisa cair na areia e correu para a água gelada. Antes que pudesse deixar sua mente traiçoeira vagar perigosamente, submergiu com um mergulho, nadando até o fundo, voltando à tona para liberar o oxigênio dos pulmões.
Chase não estava mais debaixo da água. Não estava...
Captou um movimento, e logo ele estava ao seu lado, balançando as pernas, os braços estendidos.
- Isso é loucura - disse ele, com gotas-d'água acumuladas na barba por fazer, quando ele a pegou em seus braços.
- Ei, espera aí, vou afundar.
- De jeito nenhum. Eu te salvo. - Os lábios dele se encontraram com os dela. Braços e pernas a cercaram, e ela sentiu o corpo dele enrijecer apesar do frio, o sangue aquecer no lago frígido, a paixão crescer instantaneamente.
Fechou os olhos e espantou as dúvidas, deu àquele homem, seu marido, um novo começo.
Não muito tempo depois, quando estavam sentados na varanda dos fundos, com xícaras fumegantes de café na mão observando os poucos cavalos que ela criara nos campos atrás do lago, Cassidy percebeu seu engano. Raios de sol perfuravam as nuvens e davam brilho ao couro das éguas e dos cavalos castrados, enquanto espantavam as moscas com o rabo e comiam da grama ressequida.
Jamais comprara um cavalo jovem ou um cavalo reprodutor. Remmington fora o último.
Enrolada num roupão, estava sentada numa cadeira, os pés em cima da mesa. Ruskin estava deitado no assoalho ao seu lado. Chase estava esticado em uma espreguiçadeira, a perna machucada ligeiramente levantada, os jeans surrados baixos nos quadris. Vestia a camisa que ela havia colocado quando levantara da cama. Ainda estava molhada em alguns lugares, e ele não se preocupara em fechar os botões.
- Está esperando - finalmente falou, após um gole - que eu te fale sobre Brig.
- Acho que mereço saber.
Virou os olhos azuis para ela e, em seguida, desviou-os no horizonte.
- Acho que é justo. - Hesitando por alguns segundos, Chase esfregou a nuca antes de começar. - Brig fez contato comigo, quatro ou cinco anos depois que partiu. Me cercou em Seattle. Disse que estava morando em Anchorage, havia passado alguns anos trabalhando no oleoduto, depois foi trabalhar numa serraria e, finalmente, estava comprando uma. Queria que todos, você, a mamãe, a droga da cidade inteira, pensassem que estivesse desaparecido ou morto, qualquer coisa assim. Nunca mais voltaria.
- Isso foi antes ou depois de a gente se encontrar de novo?
- Antes, mas fiquei muito tempo sem notícias. Estávamos namorando na época e... ele me pediu para te dizer que estava morto.
- Pediu isso? - murmurou, tentando ignorar a antiga dor em seu coração.
- Achava que seria melhor assim.
Os pensamentos dela estavam fragmentados. Chase mentira desde o início. Para todos.
- Ele... ele não se incomodou por nós estarmos saindo?
Seus olhos se mostraram cruéis.
- Não.
- Não tentou te dissuadir de...
- Eu disse que ele não dava a mínima, Cassidy. Não dá para você aceitar?
Alguma coisa não estava encaixando. Podia sentir isso em seus ossos. Seus instintos de jornalista avisavam que ele estava alterando a verdade. Mais uma vez. Suas mãos tremeram um pouco, e o café derramou, queimando-lhe a mão.
- Ele me disse que não pôs fogo no moinho.
- Sei que não.
- Mas não sabe o que aconteceu.
- Você sabe? - perguntou, num sussurro, o coração batendo freneticamente. Quem era esse homem que sabia tanto e ficava tão quieto? Esse homem que era seu marido, com quem fizera amor? Quantos segredos ele guardara ao longo dos anos? Quantos pensamentos guardara para si?
- Brig tinha ido ao moinho para se entender com Jed Baker. Eles já haviam brigado lá em casa, mas ele estava certo de que o Jed tinha alguma coisa em mente. E sabia que ele tinha marcado um encontro com Angie. Ela lhe contara mais cedo. Então ele pegou a moto e foi ao galpão. Só que já era tarde demais. Quando chegou lá, ele já estava em chamas. Viu Willie ali e correu para dentro, levando-o para um lugar seguro, para depois voltar e tentar salvar Jed. - De repente, os olhos de Chase pareceram mórbidos, sua voz pouco mais que um sussurro. - Mas não conseguiu... havia uma muralha de fogo entre eles.
- E Angie...?
O olhar de Chase passou para uma distância que ela não conseguia enxergar.
- Chegou tarde demais para ela também.
- Ai, meu Deus. - Cassidy sentiu um frio súbito, como se estivesse entrando num lago escuro e gelado. Lembrava-se do incêndio, das chamas que haviam chegado ao céu, do odor da fumaça, do medo aterrorizante e de cegar...
O olhar de Chase voltou-se para o dela.
- Ele disse que você o ajudou a fugir. Insistiu para que levasse seu cavalo.
Ela concordou com um gesto de cabeça.
- Disse também que deu a ele sua medalha de São Cristóvão. - Olhava-a com tanta intensidade que ela não conseguia desviar o olhar. - Acho que a manteve o tempo todo com ele. E a estava usando na noite em que retornou.
Os olhos de Cassidy encheram-se de lágrimas. Ela trincou os dentes para não chorar. A xícara caiu no chão da varanda e rolou até a borda de samambaias e azaléias.
- Ele nunca se esqueceu de você, Cassidy.
- E por que voltou somente agora?
Chase desviou o olhar.
- Chase...? O que ele disse?
Chase levantou-se da espreguiçadeira e sentou-se em cima da mesinha, na qual ela apoiava os pés descalços. Pôs as pernas dela em seu colo, agarrou-lhe os tornozelos, as mãos quentes e reconfortantes em contato com sua pele.
- Disse que estava na hora. Voltou porque queria descobrir quem provocou o incêndio; sentia-se acusado injustamente e, agora que tinha dinheiro e o que pensava ser um disfarce perfeito, queria começar a procurar por respostas. Pediu-me para ajudá-lo. Comprando madeira serrada e afins, isso seria só um pretexto.
- Mas as pessoas não iriam reconhecê-lo? Não usava mais barba, mas...
- Ninguém mais o viu durante um bom tempo, e ele estava diferente. Teve o nariz quebrado de novo, meteu-se num tipo de acidente enquanto estava trabalhando numa das serrarias. Seu rosto mudou bastante.
- Você o reconheceu?
Chase engoliu em seco, as pontas dos dedos acariciando os calcanhares de Cassidy, até que levantou e a puxou para si.
- Claro.
- Eu reconheceria?
Ficou olhando para ela por alguns segundos. Quando voltou a falar, tinha a voz baixa, tomada de uma emoção que ela não conseguia entender.
- Acho que não, Cassidy.
As nuvens trocaram de posição, bloqueando o sol.
- Eu gostaria de ter podido dizer adeus.
Chase intensificou o abraço, puxando-a para mais perto.
- Eu também.
Cassidy passou os braços pela cintura dele e a apertou.
- Eu... sinto muito por todo o sofrimento que te causei. Por causa de Brig...
- Shhh. Acabou. - Seu hálito agitou os cabelos dela.
Lágrimas escorreram por suas faces.
- Assim? - perguntou-se se isso um dia teria fim, ou se o fantasma de Brig McKenzie iria assombrá-los para sempre.
- Se deixarmos o assunto morrer...
- Como conseguiremos? Até descobrirmos quem pôs fogo na serraria, quem matou Angie, quem... - Tremeu e espalhou as mãos pelas costas de sua camisa, sentindo a força de seus músculos sob o tecido. - Quem era o pai do bebê?
- Acha que era ele? - perguntou Chase, sem se mover, o corpo rígido de repente.
- Não sei. Ai, meu Deus, não sei! - Abraçou-o desesperadamente, subindo as mãos para a pele macia de seus ombros. Chase beijou-a então, lábios sedentos, os olhos tomados de emoção.
- Cass, eu te amo - disse, piscando com força, como se essa admissão fosse deplorável, como se proferir essas três palavras fosse alterar o curso da vida deles.
Foi então que lhe ocorreu. Como um raio lançado do céu por deuses furiosos. Ai, meu Deus, não. Agora não!
- O quê? - sussurrou numa voz que, de tão baixa, soou quase inaudível. - Do que você me chamou?
- Cassidy...
- Não... não... - A varanda pareceu mover-se sob seus pés descalços. - Você vem me chamando de Cass desde o incêndio e nunca me chamou assim... ai, meu Deus... - Imagens giraram em sua mente. Chase saindo do chuveiro apenas com uma toalha em volta da cintura, com as calças de moletom, sem camisa, nu na cama na noite anterior, na água, nadando esta manhã. Ela começou a tremer.
- O quê...?
Moveu as mãos pelos ombros dele, os dedos perscrutadores, sem nada encontrar. Nada!
- Cassidy?
- Me deixa! - Afastou-se violentamente, olhando horrorizada para ele. As palmas das mãos estavam úmidas de tanto pavor, seu coração batendo descontroladamente.
- Tire! - ordenou.
- O quê?
- A camisa, tire! - quase gritou, com medo de se descontrolar.
- Por quê?
- Sabe por quê.
Seus olhos azuis se fixaram nos dela, ele passou os braços pelas mangas e segurou a camisa com a mão cerrada.
- Vire.
- Está maluca?
- Vire, droga! - disse, e assim ele o fez, levantando as mãos acima da cabeça, como se não tivesse nada a esconder, e lá estavam suas costas, lisas e perfeitas, com poucas cicatrizes do acidente recente, mas a antiga cicatriz, o buraco da bala em seu ombro, aquela que Brig infligira a Chase por acidente quando eles eram crianças, a cicatriz que ele traçara com o dedo dúzias de vezes antes, não estava lá.
- Como você pôde fazer isso? - perguntou, quando ele se virou devagar e a encarou. Seus olhos sustentaram os dela por um segundo que pareceu durar para sempre. Cassidy mal conseguia ficar de pé, e um ruído tão forte quanto o do mar urrou em seus ouvidos. Incrédula, viu o queixo dele se contrair, seus ombros esticarem e, de repente, a verdade ficou muito clara para ela, tão evidente que não podia acreditar como não havia percebido antes, como todos os que o encontraram não puderam perceber.
- Você não é o meu marido... não é o Chase... - Seus joelhos cederam, e ela se recostou na parede em busca de suporte. Sentiu os ossos pesarem e o escuro ameaçar os cantos de seus olhos.
- Cass...
- Não. Não me chame assim! - A histeria lhe subiu pela garganta, cegando-a para tudo, exceto para a dura verdade. Como podia ter sido tão cega? A intensidade do olhar dele, a ruga em seu queixo, a arrogância de seus lábios, a forma como as camisas ficavam esticadas sobre seus ombros. - Chase está morto, não está? - perguntou, as lágrimas enchendo seus olhos. - Meu marido. Ele está morto!
Ele se aproximou, e ela recuou, temendo seu toque, seu olhar, temendo-o.
- Não!
- Cass, ouça... por favor, apenas tente entender...
- Entender? Entender? Ouça o que está me pedindo, pelo amor de Deus!
Os dedos dele se fecharam, formando punhos cerrados.
- Eu não tive a intenção de...
- Para o diabo! Isso foi parte do seu plano! Meu Deus, como fui tola, tão tola! - Sua voz elevou-se uma oitava, e o ar ficou preso em seus pulmões. Não conseguia se mover, não conseguia pensar. - Claro que teve a intenção. Sabia da verdade o tempo todo e a escondeu de mim... da sua mãe. De todos. - A voz falhou, e sentiu os lábios tremerem. - Não posso acreditar como fui tola, como fui cega.
Mais uma vez, ele se aproximou, e ela quase caiu ao se afastar.
- Nunca mais toque em mim - advertiu-o, a voz ameaçadora, as mãos sentindo a parede à medida que ia se aproximando da porta, a pele das palmas das mãos roçando na superfície áspera.
- Se você pudesse parar um minuto e ouvir.
- Não quero ouvir.
- Mas precisa!
Parou então, parou onde estava. Ele tinha razão, embora sentisse aversão em admitir. Não podia sair correndo; portanto, ali, na sombra da varanda, parou, levantando o queixo, amaldiçoando-o com seu olhar.
- Pelo amor de Deus, Brig McKenzie, o que você fez?
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O último grito
RomanceProsperity, Oregon, 1977. Um incêndio criminoso no moinho da abastada família Buchanan faz Cassidy, filha caçula de Rex Buchanan, dono da propriedade e de metade da cidade, ver sua adolescência e seu amor serem levados pelo fogo. A autoria do incênd...
CAPÍTULO 41
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