Capítulo 4 - Floresta Invernal

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Eu estava de volta ao inferno da guerra."

De súbito, um ruído me despertou. Fiquei feliz em parte, pois o som frenético de patas no solo me tirou do pesadelo que se iniciara, mas mantive alerta todos os meus sentidos aguçados – afinal, eu havia enfrentado dois jogos e uma guerra, era de se esperar que houvesse sequelas em minha personalidade já desconfiada.

Lentamente levei uma das mãos ao arco que estava ao meu lado no chão e a outra até as costas, pegando uma flecha. Retesei o arco e mantive-o preparado para qualquer eventualidade. Meu coração retumbava em meu peito devido a adrenalina do momento e o som ecoava em meus ouvidos, dificultando na hora de identificar meu invasor.

Atirei a flecha meio segundo antes de meu adversário dar as caras e pelo débil gemido que ouvi, soube que o havia acertado. Cautelosamente caminhei até o arbusto afim de identificar minha vítima; talvez houvesse mesmo a possibilidade de conseguir carne fresca para o jantar... Estendi a mão para os pequenos galhos do arbusto, ainda com alguns resquícios de neve. Um grito agudo escapou de meus lábios e meu coração afundou em meu peito quando avistei minha vítima. Era... Finnick. Morto. Ele morrera com uma flecha cravada no coração e sangue escarlate escorrendo da ferida aberta. Seus olhos estavam abertos e desfocados; no mesmo tom de verde que eu me lembrava, porém completamente sem vida, vazios.

— Não, eu... – gaguejei. – Você morreu na guerra, como...?

Não podia ser real, não podia. Com a respiração entrecortada fechei os olhos, apertando-os e quando voltei a abri-los, havia um coelho de pelagem cinza morto em seu lugar, a flecha enterrada no peito da mesma forma. Quase soltei um suspiro de alívio. Um coelho. Era só um coelho.

Após o alívio de ver que era apenas um animal, veio o desespero. Eu estava louca, inegavelmente louca. Como poderia confiar nos meus olhos? Eles me pregavam mentiras, ilusões. Suspirei. Não pude mais me sentir em paz ali, após tal incidente. Reprimindo o tremor que tentou tomar meu corpo, retirei a flecha do corpo inerte do coelho e devolvi-a a aljava, caminhando à passos rápidos para fora do lugar que fora meu refúgio desde sempre – mas que nesse momento, apenas me trazia más lembranças, ou alucinações aterrorizantes. Me sentia como uma sem-teto agora, afinal, minha casa nunca fora tão lar quanto o abrigo revigorante das árvores, o verde admirável da vegetação na primavera e até mesmo a melancolia rústica do inverno. E agora, sem poder ir ao ar fresco da floresta, não havia nenhum lugar que poderia chamar de meu no mundo. Estava à deriva no mar de emoções ruins e a esperada ilha no meio do oceano não mais existia; estaria sem refúgio ao menos enquanto meus olhos me traíssem.

Entrei em casa e fechei a porta atrás de mim. Estava vazia, como sempre – e penso que sempre será assim: apenas eu, e as lembranças, e as dores, e a culpa e os fantasmas.

Não demorou para uma batida apressada soar da porta. Tampouco meu visitante se manteve paciente por uma manifestação para que entrasse, logo a maçaneta girou e Peeta me encontrou desabada no chão da sala, com o olhar vazio e marejado. Eu muito provavelmente me assemelhava a um animal assustado nesse exato momento, mas pouco me importei.

— Katniss! – chamou, pondo-se ao meu lado no chão. – Eu a vi voltando e você parecia assustada, meio instável. Resolvi vir, caso precisasse de ajuda.

Ele não falou explicitamente, mas sabia que esse aumento considerável de cuidado em relação mim, se deu após a cena que ele presenciara ontem no chão da cozinha, mesmo embora eu tenha garantido a ele que não estava tentando suicídio. Ainda assim, meu coração derreteu quando as palavras repletas de preocupação saíram de seus lábios. Uma sensação de calor me tomou, um calor agradável. Por um milésimo de segundo, cogitei a hipótese de ele ainda me amar.

— Estou louca, Peeta. – sussurrei com a voz embargada, como um desabafo.

— Oh, Katniss, você não está...

— Estou sim. – interrompi-o no mesmo tom baixo. – Eu vi... o Finnick. – funguei.

— O que? – perguntou confuso, as sobrancelhas juntando-se.

— Eu o vi na floresta, eu... Ele... ele estava com um flecha enterrada no peito, e era aminha flecha. Eu o havia matado. – sacudi a cabeça tentando inutilmente tirar a imagem realista da alucinação da minha mente. – Estou louca. – concluí debilmente.

Peeta nada disse a princípio, apenas me fitou. Olhou-me por um tempo longo demais, analisando-me, sondando meus olhos como se tentasse desvendar meus segredos omissos, como se procurasse uma forma de me salvar de mim mesma. E eu o amei por isso. Mesmo sem palavras, seu olhar afável foi o pilar que me sustentou pelo longo minuto que antecedeu o abraço acolhedor que ele me deu. Apertei-o contra mim como se quisesse nos fundir. E eu queria. Naquele momento quis me fundir a ele, jamais me afastar, jamais deixa-lo. Quis retirar o seu sofrimento e o meu sofrimento e jogá-los no cemitério, o mesmo onde nossos amigos e inimigos foram enterrados. Quis sepultar a culpa, a dor e toda e qualquer dúvida que ainda houvesse em nossas mentes.

Ele não se afastou e eu tampouco o fiz. Precisava disso, da sua presença, do seu consolo, dos seus braços. Ah, esses braços que em tantas noites ruins foram meu único consolo. E agora não mais distantes. Eles estavam ali, em torno do meu corpo, espantando meus fantasmas e trazendo a paz que eu tanto almejava. As mãos de Peeta acariciavam meus cabelos e seu rosto estava enterrado em minha clavícula e ele não mais estava me consolando: nós consolávamos um ao outro. Senti suas lágrimas salgadas molharem minha blusa e um soluço irromper por sua boca. Apertei-o ainda mais forte, tentado conter seus espasmos.

Éramos os dois loucos. Insanos. Traumatizados. Feridos. Perdidos. Éramos a própria floresta invernal: as cores e a vivacidade se foram com o sol, e só restaram as raízes mortas enterradas na terra oculta sob a neve e galhos secos apontando para o céu nublado, de onde constantemente caia chuva. Nossas próprias lágrimas.

DesentorpecendoOnde histórias criam vida. Descubra agora