Myrna ouviu barulho de cadeiras, seus passos atravessando a sala, a porta fechando. Virou na rodovia I-280. "Uma perda de tempo e dinheiro", pensou. "Terapeutas. Ele é igual a todo o resto. Bem, não exatamente. Pelo menos, fala comigo." Por um instante, imaginou o rosto dele: risonho, estendendo-lhe os braços, convidando-a a chegar mais perto. "A verdade é que eu gosto do dr. Lash. Ele fica do meu lado - pelo menos, parece se importar com o que acontece comigo e é atuvo: procura manter as coisas funcionando, dispõe-se a se comprometer, não me deixa sentada em silêncio, como os dois últimos terapeutas." Myrna afastou prontamente essas imagens. Ele vivia enchendo o saco dela, querendo que ela prestasse atenção a seus devaneios, especialmente os que ocorriam na ida para a terapia e na volta dela, e Myrna não estava disposta a lhe falar dessa baboseira piegas.
De repente, tornou a ouvir a voz dele na fita.Alô. Aqui é o dr. Ernest Lash, retornando sua ligação. Lamento não tê-lo encontrado, Desmond. Por favor, tente ligar para mim no número 767-1735, entre oito e dez horas da noite de hoje, ou amanhã cedo, no meu consultório.
"O que está acontecendo?", pensou Myrna. De repente, lembrou-se de que, depois de sair do consultório na sessão anterior e de andar meio quarteirão com o carro, notará que ele tinha esquecido de lhe entregar a fita e tinha voltado para buscá-la. Estacionara em fila dupla em frente à casa vitoriana e subira correndo a longa escada para o consultório dele, no segundo andar. Como a sua sessão tinha sido a última do dia, ela não se preocupara em interromper outro paciente. A porta do dr. Lash estava parcialmente aberta, e Myrna entrara direto e dera com ele ditando alguma coisa a um aparelho. Ao lhe dizer por que tinha voltado, ele havia tirado a fita do gravador que ficava na mesinha ao lado da cadeira dos pacientes e entregara a ela. "Até a próxima semana", tinha dito. Estava claro que se esquecera de desligar o gravador depois de ela sair do consultório na primeira vez, e a gravação tinha prosseguido por algum tempo, até a fita acabar.
Aumentando todo o volume, Myrna ouviu uns ruídos ao fundo: possivelmente, xícaras de café batendo uma na outras, quando ele as tirou da escrivaninha. Depois, outra vez a voz dele, telefonando para alguém para combinar uma partida de tênis. Passos, um arrastar de cadeiras. E então, algo mais interessante. Muito mais interessante.Aqui é o dr. Lash, ditando notas para o seminário de contratranferência.
Notas sobre Myrna, quinta-feira, 28 de março."Notas sobre mim? Não acredito." Fazendo um esforço para ouvir, tomada de angústia e curiosidade, ela inclinou o corpo, chegando mais perto do alto-falante. O carro deu uma guinada repentina e por pouco Myrna não perdeu o controle.
Parou no acostamento, ejetou a fita às pressas, tirou o walkman do porta-luvas, introduziu a fita, rebobinou-a, pôs os fones de ouvido, entrou novamente na auto-estrada e aumentou todo o volume.Aqui é o dr. Lash, ditando notas para o seminário sobre contratransferência. Notas sobre Myrna, quinta-feira, 28 de março. Sessão típica, previsível, frustrante. Ela passou quase toda a sessão choramingando, como de hábito, sobre a falta de solteiros disponíveis. Fico cada vez mais impaciente... irritadiço; perdi a cabeça por um instante e teci um comentário inoportuno: "Você está vendo 'Agência de Encontros' escrito na minha camiseta?" Foi realmente grosseiro de minha parte, muito atípico em mim; nem me lembro da última vez que fui tão desrespeitoso com um paciente. Será que estou tentando mandá-la embora? Nunca lhe digo nada que lhe dê apoio ou seja positivo. Eu tento, mas ela torna isso difícil. Ela me irrita... muito maçante, exasperante, grosseira, tacanha. Só pensa em ganhar seus dois milhões de dólares em opções de compra de ações e encontrar um homem. Nada mais... superficial, superficial, superficial... nada de sonhos, de fantasias, nenhuma imaginação. Sem profundidade. Será que algum dia ela já leu um bom romance? Disse alguma coisa bonita? Ou interessante... só uma ideia interessante? Meu Deus, eu adoraria vê-la escrever um poema - ou tentar escrever um poema. Isso seria uma mudança terapêutica. Ela me esgota. Sinto-me como uma grande teta. O mesmo material, vezes sem conta. Ela me dá pauladas na cabeça, repetidamente, por causa de meus honorários. Semana após semana, acabo fazendo a mesma coisa - fico entediado.
Hoje, como de hábito, incitei-a a examinar o papel que ela tem em sua situação, o modo como contribui para seu próprio isolamento. Não é um conceito muito difícil, mas foi como se eu falasse aramaico. Ela simplesmente não conseguiu entender. Em vez disso, acusou-me de não acreditar que o ambiente dos bares de solteiros é ruim para as mulheres. E aí, como faz muitas vezes, jogou uma indireta sobre como gostaria de poder sair comigo. Mas, quando tentei enfocar isso, examinar o que ela sente em relação a mim, ou o modo como se isola em sua solidão, aqui mesmo neste consultório, as coisas pioraram ainda mais. Ela se recusou a entender; recusa-se a se relacionar comigo e não reconhece que não se relaciona - e insiste em que isso não tem mesmo importância. Ela não pode ser burra. Formou-se na Universidade Weslleley - trabalho gráfico de alto nível; tem um salário polpudo, muito maior do que o meu; metade das empresas de software do Vale do Silício a disputa; mas é como se eu estivesse falando com uma pessoa tapada. Quantas malditas vezes terei de explicar por que é importante examinar nossa relação? E todas aquelas piadinhas sobre não receber o bastante pelo que paga... eu me sinto diminuído. É uma moça vulgar. Faz todo o possível para eliminar o menor resquício de proximidade entre nós. Nada do que faço é bom o bastante para ela. Ela mexe com tantas coisas...
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Mamãe e o sentido da vida
RandomDiretamente do consultório de Irvin D. Yalom surgem as histórias de Mamãe e o sentido da vida. A esperança e a determinação dos personagens dessas narrativas - reais e ficcionais - contagiam o leitor. Tropeçando em seus pensamentos e vagando pel...
Capítulo 5: Dupla revelação
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