II | LIVRO VIII - OS CEMITÉRIOS ACEITAM O QUE LHES DÃO

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Mas fazer com que ficasse no convento, que problema! Fauchelevent, na presença desta tentativa quase quimérica, não recuou; o pobre camponês picardo, sem outra escada além da sua dedicação, da sua boa vontade, e com alguma dessa pouca figura campesina, posta, desta vez, ao serviço de uma intenção generosa, empreendeu escalar as dificuldades do claustro e as rudes escarpas da ordem de S. Bento. O senhor Fauchelevent era um velho que toda a sua vida fora egoísta, e que no termo dos seus dias, coxo, doente, não tendo no mundo o menor interesse, achou doçura em ser reconhecido; e vendo que havia a praticar uma acção virtuosa, lançou-se a ela, como o homem que, próximo a deixar a vida, achasse ao alcance da mão um copo de bom vinho que nunca houvesse provado e o bebesse avidamente. Pode acrescentar-se que o ar que respirava havia anos, naquele convento, lhe destruíra a personalidade, acabando por lhe tornar necessária a prática de uma boa acção.

Tomou, pois, uma resolução: dedicar-se a Madelaine.

Acabamos de o qualificar de pobre camponês picardo. A qualificação é justa, mas incompleta. No ponto em que nos achamos desta história, tornam-se úteis alguns traços fisiológicos do senhor Fauchelevent. Era camponês, mas fora tabelião, o que lhe juntara à finura a chicana e a penetração à sinceridade. Tendo por causas diversas saído mal dos seus negócios de tabelião, caíra em carroceiro e trabalhador. Mas, a despeito das pragas e das chicotadas, necessárias aos cavalos, parece que conservara ainda o que quer que era de tabelião.

Tinha certo talento natural; não dizia eu temos nem eu sabemos; conversava, coisa rara na aldeia, e os outros camponeses diziam dele: fala suavemente como um senhor fidalgo. Fauchelevent pertenceu com efeito, à espécie que o impertinente e ligeiro vocabulário do século passado qualificava de: meio burguês meio rústico; a que as metáforas, caindo do palácio na choupana, apelidavam um pouco cidadão: sal e pimenta. Fauchelevent, ainda que muito experimentado e usado pela sorte, espécie de pobre velha alma já no fio, era todavia homem de primeiras impressões, e muito espontâneo; qualidade preciosa que sempre impede que se seja mau.

Os seus defeitos e vícios, que os tinha tido, não passaram da superfície; em suma, a sua fisionomia era das que são bem aceitas pelo observador. Aquele velho rosto não tinha nenhuma das desgraçadas rugas da testa que significam maldade ou estupidez.

Ao romper do dia, depois de haver sonhado extraordinariamente, Fauchelevent abriu os olhos e viu Madelaine sentado no feixe de palha, contemplando Cosette adormecida. Fauchelevent sentou-se também e disse:

— Agora que está aqui, como foi que entrou?

Estas palavras resumiram o facto e despertaram Jean Valjean da sua meditação.

Os dois homens celebraram conselho.

— Em primeiro lugar — disse Fauchelevent o senhor há-de começar por não pôr o pé fora desta barraca, nem tão-pouco a pequenita. Um passo na cerca pode deitar tudo a perder.

— É justo.

— Senhor Madelaine — tornou Fauchelevent — o senhor chegou em muito boa ocasião, quero dizer muito má: uma destas senhoras está gravemente doente, o que fará com que olhem pouco cá para o nosso lado. Parece que não escapa, porque estão fazendo as preces das quarenta horas. Anda toda a comunidade no ar. Isto dá-lhe que fazer. A que está próxima a deixar-nos é uma santa. A falar verdade, nós aqui todos somos santos; a diferença entre elas e eu, é que elas dizem: a nossa cela, e eu digo: a minha choupana; haverá a oração dos agonizantes, e depois a oração pelos mortos. Por hoje estaremos tranquilos aqui; mas pelo meio-dia de amanhã não respondo.

— Contudo — observou Jean Valjean — esta barraca está oculta pelas ruínas e pelas árvores; não se vê do convento.

— E eu acrescento que as religiosas nunca se lhe aproximam.

Os Miseráveis (1862)Onde histórias criam vida. Descubra agora