A caminhada de Camargo já não era tão eficaz com Joana desfalecida em seu ombro. A água quase congelante cobrindo os seus pés só dificultava essa tarefa ainda mais. Os corredores estavam escuros. Ele se guiava pelas luzes de alerta avermelhadas que estavam estrategicamente posicionadas pela unidade. Se todas estivessem funcionando como esperado, ele não se sentiria tão cego e perdido por aquele infinito de corredores confusos.
Mas a verdade era que só algumas poucas luzes piscavam a cada dois segundos. As demais sequer davam sinal de bom-funcionamento. Talvez elas estivessem danificadas pelos incessantes confrontos entre os discípulos de Adão e Eva e os técnicos da ASMEC que tiveram o desprazer de estar na unidade de Consuelo. Não. Confrontos uma ova! Ele sabia porque as luzes não funcionavam em sua totalidade. E sua teoria não precisava de mais do que cinco letras para se fazer real: Nasha.
Na escuridão quase total dos corredores, Camargo não se deu conta de que acabara de passar pelas portas do Setor 6, onde Cris permanecia sem vida no chão perto do homem sem maxilar. Minutos a seguir, ele também não notou a presença de Charles, que estava sentado no chão em um cantinho perto da parede chorando pelo único olho que lhe restara após o seu infeliz encontro com Leafarneo.
As veias negras protuberantes em seu rosto faziam com que o sangue escorresse por sua face em um padrão simétrico, como múltiplos afluentes de um rio desaguando sobre seu peitoral. Maldita hora para não estar em um estado vegetativo. Queria se livrar daquela dor. Não só da dor física, mas também do remorso que trazia consigo por aquela morte tão sem sentido.
Mesmo nesse momento de dor, ele queria que Cris estivesse bem.
Mal sabia ele o quão debilitada e sem-vida ela se encontrava perto do homem sem maxilar.
Estaria mesmo morta?
"Ela ficará bem. Ela sempre fica bem" — pensou ele, tentando se levantar para seguir Camargo e Joana.
Suas pernas falharam em sua primeira tentativa. Ainda sentia-se afetado por todos os coquetéis de tranquilizante que Délia lhe aplicou neste período. Com algum esforço, Charles se colocou de pé. Sua bata hospitalar estava encharcada pela água fria, o que ajudava a aliviar o calor que queimava sua carne a cada segundo.
Ele não tinha mais tempo de permanecer ali mais um segundo sequer. Sabia que estava condenado, mas precisava ganhar tempo para, pelo menos, salvar os poucos amigos vivos que lhe restaram. Precisava de mais soro retardante se quisesse permanecer com sua mente sã por alguns minutos a mais. Precisava encontrar a doutora Délia.
Camargo conduzia Joana pelos corredores quase às cegas à procura da doutora. Charles seguiria os dois. Melhor permanecer perto dos vivos do que fazer companhia aos mortos que se revelavam a cada instante.
Nenhum dos três sabia a localização real de Délia. Monstro era o único que fazia contato visual com ela a partir de uma das cápsulas do Setor 8. Aquela não era a Délia que ele conhecera em Palmas. Aquela era a Délia fruto do apocalipse com o qual ela mesma compactuou durante parte de sua vida. E agora parte de sua pós-vida.
— Você não vai tirar um pedaço de mim — ele disse com a voz determinada de dentro da cápsula.
Ao tornar a cabeça para os dois lados e fitá-lo como sua próxima refeição, Délia levou as mãos ao rosto e respirou fundo. Após o breve instante, seu olhar havia mudado. Ela não parecia mais a assassina a sangue frio que estava disposta a se alimentar de suas vísceras.
— Eu não estou aqui para te fazer mal algum — disse ela com dificuldades.
Délia retirou o tablet de controle da plataforma e ativou a liberação da cápsula de Monstro.
— O que aconteceu com você? — questionou.
— O que está prestes a acontecer com todos os seus amigos se você não vier comigo agora mesmo — disse em tom de ameaça oferecendo-lhe uma mão de apoio.
Monstro arregalou os olhos e segurou na mão de Délia para se colocar fora da cápsula. O primeiro passo o causou uma dor na cicatriz de seu abdômem, fazendo-o curvar as costas e parar. O sangue minando da cicatriz fez sua testa criar dobras de preocupação.
— O que você vai fazer comigo?
— Eu vou salvá-lo. Eu vou salvar todos nós — Délia respondeu.
Com essas últimas palavras misteriosas, Délia se pôs a caminhar para fora do Setor 8 com Monstro ao seu lado. Queria ter forças para levá-lo até os setores ímpares onde, de fato, poderia fazer algo por ele e pelos demais. Planejava remover o dispositivo invasor de seu corpo com cuidado para que ele ficasse intacto e ela pudesse entender mais sobre como ele interferia no funcionamento de Nasha a ponto de fazê-la desativar a unidade.
O estado deplorável de Délia foi decorrente de apenas um dos múltiplos infortúnios que tiveram espaço na Unidade C desde que Nasha anunciou a Submersão Reversa. O cronômetro seria zerado em exatos treze minutos. Até esse momento, a sucessão de eventos parecia beirar ainda mais um estado caótico irreversível. Caos este que obrigou Camargo a clamar pela ajuda da doutora com Joana em seus ombros, que fez Charles rastejar com um olho só para ter mais alguns segundos de vida e que deixou Cris como centro de uma dúvida ainda sem resposta:
Estaria mesmo morta?
Sem espectadores vivos perto de Cris, seria impossível responder a essa pergunta. Talvez a história por si só e seus fatos controversos possam oferecer uma resposta satisfatória. Será preciso voltar vinte e nove minutos na linha do tempo para a central de controle de Nasha e seus monitores exuberantes:
— Tempo estimado para a submersão reversa: quarenta e dois minutos.
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LIVRO III - A Ordem do Caos
HorrorEste é o terceiro e último livro da trilogia que já conta com O Início do Fim e O Soneto do Apocalipse. Espero que se divirtam e se emocionem com o final desta incrível jornada pelo apocalipse que se iniciou na cidade de Palmas. Não se esqueçam...
O Prelúdio do Fim
Começar do início