A dor do nascimento

146 19 1
                                    


Nascimento

Antes do tempo, tudo era um. A bandeira tremulante do navio, a brisa, as águas infinitas à sua volta. As batidas rítmicas de som e silêncio, som e silêncio, como um coração. E ela.

Olhava-se no espelho à sua frente, ao seu redor. Via a si refletida em tudo, no manto de águas cristalinas que se estendia até onde a vista alcançava. Os raios de sol pintavam-lhe uma coroa. E ela amava o mundo como uma rainha ama o seu reino.

Tudo era vida, tudo era si. No mar não nadavam peixes, e nos céus não pairavam aves. Nada havia senão ela. Ela, ela, ela. Ela em tudo, e silêncio, e ela, e tudo mais. E um. Ela, as águas, as nuvens... o odor fresco e puro de maresia.

Um dia, quis descer ao nível do mar. Viu seu reflexo de perto e sorriu. O mundo sorriu de volta. Tocou-se, e sumiu de uma vez em um jardim de círculos concêntricos. Com as mãos em cuia, provou das águas uma vez, duas. Sentiu goles gelados correndo-lhe o corpo, abraçando-a. Abraçando-se.

Sentia-se viva. Mergulhou.

Por horas, boiava, eterna, flutuando sem esforço em uma piscina infinita. À noite, escalava o mastro do navio, perscrutava o horizonte como se em busca de alguma coisa. Enamorava-se das estrelas como se nunca as tivesse visto antes. Sonhava com elas. Dali de cima, o azul do mar se incrustava de brilhantes. Parecia um segundo céu, mas ainda mais bonito. E ela sentia paz.

Mas um dia...

Das águas à frente brota um espinho. Minúsculo de início, mas que avança, avança, para o alto, como o tronco de uma árvore gigantesca. Assume a forma de uma ponta de lança, uma pedra ameaçadoramente retorcida e afiada, com a mesma cor inocente das nuvens. Quanto mais se aproximam, as águas sob o navio ondulam, batem, tremem, apavoradas. Chacoalham todo o convés, em pânico, tentando desesperadamente fazer o navio dar a volta.

E, pela primeira vez, o medo.

Mas algo dentro dela sabe que é o fim.

O coração acelera, a brisa sucumbe ao vazio. A lança se aproxima sem piedade e rasga o casco do navio em dois. E uma dor lancinante no estômago a faz tombar sobre o convés. Um grito ecoa pelo mundo. Parece vir das próprias tábuas. De dentro de si.

Do casco, vazam jorros de um líquido viscoso e quente, de um vermelho denso, escuro, que em instantes engole o oceano e o faz ferver com um odor terrível de sal e putrefação. Rastros negros escorrem como tinta pela lateral destroçada do navio.

Uma onda violenta choca-se contra a proa e arremessa seu corpo quase inconsciente no mar. Ela boia, à deriva, abraçada pelo calor do líquido amargo. E involuntariamente tenta abraçá-lo de volta. O mar invade seu corpo, viola seus pulmões, e ela não consegue mais respirar. Através de suas pálpebras, o mundo fica vermelho.

NascimentoWhere stories live. Discover now