CAPÍTULO XXII

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Depois, Pecos vestia-se com riqueza e esmero e agora estava transformado em
miserável camponês sujo e humilhado.
Não. Ninguém sequer pensaria em tal. Todos haviam se esquecido depressa do
triste destino que tivera o guerreiro Pecos, outrora favorito e por ocasião de sua
morte, tão diminuído pela substituição de cargo. Caminhava por entre o povo e, a
certa altura, lembrou-se de comprar alguma coisa para comer, a fim de
entabular palestra com o mercador. Escolheu um que pela aparência deveria ser
da terra, e pela idade já bem avançada, de muito deveria se lembrar.
Acercou-se dele, informando das mercadorias e, com jeito, iniciou uma palestra
amistosa com ele.
A certa altura, chegada a ocasião propícia, entrou no assunto:
– Tu que conheceste muitos homens importantes da terra, ouviste falar por acaso
de um guerreiro chamado Pecos?
O outro, com uma leve curiosidade brilhando no olhar, satisfeito por mostrar seus
conhecimentos, assentiu, dizendo:
– Queres dizer, o que era favorito do Faraó?
– Não conheci pessoalmente, porém, ouvi falar muito nele. Prestou um grande
serviço à minha mãe, que na hora da morte incumbiu-me de vir procurá-lo com
algumas lembranças. Não pude negar e aqui estou.
Ansiosamente, Pecos esperou a resposta.
Este sorriu com superioridade, mostrando uma boca vazia de dentes e respondeu:
– Não creio que possas cumprir estas determinações. Se queres, contar-teei a
história do guerreiro. Ele era forte e belo, poderoso, rico, as mulheres o queriam
e era o favorito da corte. Mas, certa vez, ele foi raptado por alguns escravos que
fugiam, vivendo por sua vez cativo durante alguns anos. Ao cabo de certo tempo,
deram-lhe liberdade, mas obrigaram-no a casar-se com uma nobre da terra. Ele
regressou, mas nunca mais foi o mesmo. Perdeu o gosto pelas excursões e não
mais negociava escravos. Além do mais, sua mulher era estrangeira e portanto
mal vista na corte, que somente a recebeu por sabê-lo o favorito do Faraó.
Assim, ele foi perdendo o prestígio até ser rebaixado do posto que ocupava. Um
dia, saiu em viagem para muito longe, tendo por chefe o nobre Omar e nunca
mais voltou. Omar disse que ele morrera em uma batalha, mas dizem as más
línguas que ele o matou, porque se tomou de amores pela sua linda mulher.

Pecos, emocionado, indagou:
– E ela?
– Jamais quis recebê-lo, dizendo que ele foi o assassino do marido. Isto tem lhe
valido muitos aborrecimentos, porque Omar é poderoso e a tem perseguido, bem
como ao filho.
Pecos sobressaltou-se. Um filho? Acaso seria dele? Solimar nada sabia, pois não
lhe contara este pormenor.
– O filho é dela e do guerreiro?
– É. O rapaz era de pouca idade quando perdeu o pai.
Estaria o velho dizendo a verdade? Sem certeza de si mesmo, ele duvidava de
tudo e de todos.
Procurando ocultar o que lhe ia no íntimo, indagou:
– Mas como podes saber todos estes detalhes? Estás certo do que dizes?
– Muito. Olha, minha neta vive lá no castelo do guerreiro. Filha de uma das
escravas é fruto de um amor de meu filho que não pôde desposá-la conforme a
lei. Ela vem sempre ver-me e transmite-me todas as notícias.
Então era verdade tudo quanto ouvira! Ele não poderia duvidar!
Depois de mais algum tempo de palestra, aparentando indiferença, perguntou:
– Tu conheceste o guerreiro, podes dizer-me como era ele?
O velho olhou de soslaio para Pecos, como que procurando lembrar-se de algo,
dando importância às próprias palavras.
– Era forte como o vento, belo como um deus do templo. Seus negros cabelos
vastos e brilhantes emolduravam uma tez morena. Seu olhar sabia atrair e impor
aos seus subalternos a confiança e a disciplina. Era um guerreiro perfeito. Dizem
que seu casamento com a estrangeira foi que lhe trouxe a desgraça. Sem poder
conter-se por mais tempo, Pecos perguntou:
– Dize-me, era parecido comigo?
O velhinho olhou-o surpreso e medindo-o de alto a baixo, respondeu irônico:

– Contigo? Ele era um nobre soberbo e forte! Era jovem e irradiava força, poder,
segurança. Vestia-se ricamente. Tu és mais velho, curvado, vencido! Nem
sequer podes disfarçar tua origem de camponês! És completamente diferente
dele!
Além do mais, ele era mais alto, com o rosto belo e sem cicatrizes. Que idéia é
esta, a que veio a pergunta?
Envergonhado, respondeu:
– Por nada. Empolguei-me porque minha mãe me havia dito que nós éramos
muito parecidos. Disse mesmo que poderiam nos confundir, tal a semelhança.
Foi por isso que perguntei.
– Qual – casquilhou o ancião com uma risadinha incrédula – somente os olhos
maternos seriam capazes de tal visão. Pois tire as ilusões. Nada tens de parecido
com o nosso famoso guerreiro.
Pecos, murmurando uma ligeira desculpa, despediu-se e quando se afastava,
pôde ouvi-lo dizer abanando a cabeça:
– Qual, qual, cada pretensão! Com certeza anda doente das idéias. Comparar-se
ao nobre Pecos. Pobre coitado!
Pecos, tapando os ouvidos para não ouvir, rumou apressadamente para a
estalagem onde estava hospedado.
Em seu quarto, atirou-se ao leito deixando que as lágrimas ardentes de desespero
e angústia lhe banhassem o rosto pálido e emagrecido. De fato, o ancião jamais
poderia nele reconhecer o antigo herói. Vira-o algumas vezes à distância, sempre
em trajes de gala, no esplendor de sua beleza física e de sua mocidade. Como
poderia vê-lo na figura insegura e quase humilde do pobre homem de cabelos
grisalhos, encurvado, magro, com quem conversava?
Em sua insegurança, Pecos não pensava assim. Imaginava-se vítima de um
lamentável engano por parte de Solimar.
Ah! se ele pudesse recordar-se! Por que sua memória se havia perdido nos
escaninhos do tempo?
Sem rumo, não sabia para quem apelar; ninguém o conhecia e ele não conhecia
ninguém.

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