O velho soldado, a favela e a jovem misteriosa

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Fevereiro. 1899. Calor surreal. As roupas colam na pele apesar do vento que sobe o morro da Providência vindo da cidade mais abaixo  trazendo cheiros e poucas vozes. São duas da tarde e o sol parece mais cruel do que ao meio dia.

José, Carlos, Jorge e o Coronel estão empenhados em construir uma casa. Eles trabalham em equipe desde que sobreviveram à guerra. Confiam nos outros mais do que neles mesmos porque um homem muitas vezes trai a si mesmo entregando-se à bebida, ao jogo ou à mulher errada.

Coronel é apenas um apelido pois Josué é aquele homem sem medo, o que sempre mantém a cabeça no lugar e vê o melhor caminho a tomar, a melhor estratégia a seguir. Ele não se entrega às emoções e sabe a hora de se esconder e a de contra-atacar.

Mas agora eles já não precisam se esconder ou contra-atacar nada. A guerra acabou e deixaram de servir. Eles sabem tirar a vida de uma pessoa, não sabem como vender produtos em uma quitanda, nem como arar a terra ou colher café, mas o café também já não é como antes e parece que é na indústria que estará o futuro. Foi o Coronel que disse. Ele sabe das coisas.

Agora eles precisam de casas. De tetos onde possam se proteger das chuvas violentas do Rio de Janeiro.

Os vinte mil soldados vindos de Canudos tomaram a providência de se instalar naquele morro onde já havia outros moradores vindos de cortiços destruídos pelo prefeito anos antes. A partir daí o morro passou a ser conhecido como morro da Providência.

Os quatro amigos chegaram pouco depois disso pois antes tentaram se estabelecer em outras regiões percebendo, enfim, que a capital lhes proporcionaria mais oportunidades.

Essa era a última casa que eles estavam construindo. Finalmente o Coronel teria um lugar dele pois insistiu que construíssem as casas dos amigos antes, afinal eram mais jovens e já vinham se engraçando com boas moças enquanto ele, bode velho, já tivera sua dose de casamento para a vida. Ele deu azar, diziam os outros, mas o fato é que ele provavelmente passaria o resto da vida sozinho dedicando-se aos amigos.

Uma semana depois a casa estava de pé, os quatro amigos tinham onde se abrigar do tempo... onde construir famílias.

Toda sexta feira eles se reúnem na casa do Coronel para falar dos velhos tempos e jogar cartas. Sem dinheiro, pois jogo a dinheiro destrói amizades e manda homens para o inferno.

Já é tarde da noite quando voltam para suas casas, quase onze horas. Os ruídos noturnos são estranhos... Entre os gemidos abafados de casais em suas casas há estalos seguidos de outros tipos de gemidos reprimidos por sussurros selvagens de homens que odeiam mulheres, mas as querem assim mesmo. Há choros de bebês dessas e de outras casas e, vez por outra, pode-se ver os olhos assustados de crianças engolindo o choro enquanto se escondem nas sombras.

Mesmo um soldado que já passou as noites entre os ruídos do mato, certos de que estão cercados por caaporas, mulas sem cabeça e sacis pererês sente arrepios quando percebe outras coisas entre as casas que não conseguem descrever. Não enxergam e nem ouvem, eles percebem.

Hora é como se o chão tremesse com passos pesados próximos. Hora é um vento que parece soprado de narinas quentes e apodrecidas.

Foi Josué, o Coronel, que falou nisso uma noite, em como parecia que o chão do morro ou as casas ao redor deles, transformavam os seres do mato em outras coisas na cidade grande. Coisas mais raivosas, coisas com intenções mais... cruéis.

Os outros não falariam no assunto com medo de parecerem tolos supersticiosos, mas o Coronel podia. Ele não falava com medo, falava com a sabedoria de quem sabe que há perigos que não percebemos racionalmente, que só podem ser percebidos nos pelos arrepiados do braço.

O velho soldado e a jovem misteriosaWhere stories live. Discover now