A Criança Abençoada - Einne IV

Começar do início
                                    

O culto não estava nem na metade e Einne queria mandar o velho pastor ir à merda! Para o seu azar, Kathleen sentou-se ao seu lado para sorrir, afetuosa, e ajeitar o seu cabelo atrás da orelha. Enquanto todos faziam preces pelo seu bem-estar, Einne rezava ao capeta para que levasse a sua alma naquele instante!

E para agravar as coisas, o padrasto nem disfarçava o seu desejo pela bruxa de cabelos vermelhos, envergonhando sua mãe. Quando finalmente o culto acabou, sua mãe serviu bolo e refrigerante de qualidade, apenas para criticar o bolo e refrigerante servido nos cultos das casas dos outros. Einne começou a comer o repulsivo bolo de abacaxi, unicamente para Kathleen não puxar assunto com ela. Nem precisou. Bernardo sentou-se ao lado da bruxa, lançando aquele charme de galã sensual que ele achava que possuía.

Ele convidou Kathleen para assistir um jogo de futebol com ele, mesmo a bruxa alegando não gostar de futebol. Na verdade, a bruxa dos cabelos vermelhos estava se esquivando da cantada dele, sem ser grossa. A menina passou a mão na testa, escandalizada com as cantadas sem graça do padrasto. Rejane passava para lá e para cá, servindo bolo e procurando fingir se uma pessoa doce e amável, fazendo de conta que não estava vendo aquela cena.

"Como minha mãe pode ser tão idiota, de não ver isso!?" Resmungou internamente. Se detestava o padrasto, agora Einne simplesmente o odiava. Canalizou seu ódio na bruxa. Examinou a brancura do pescoço exposto dela. Olhou novamente para o garfo em sua mão e o apertou com mais força. Imaginou o garfo de metal perfurando a veia do pescoço da bruxa, e como o sangue jorraria em jatos grandes e longos. Bastava um único golpe e o sangue da Kathleen empaparia seu padrasto que, com sorte, poderia morrer afogado no sangue dela. A bruxa dos cabelos vermelhos virou-se de repente, como que ouvindo o pensamento da menina.

— Sua mão vai explodir de tanto você apertar este garfo. — afirmou Kathleen, olhando a vermelhidão nos dedos dela pela força impressa no metal. — Você está realmente bem?

— Estou.

Einne falou baixinho, eliminando a ideia tentadora ao soltar o garfo.

O velho pastor surgiu e para descontento de Bernardo, a bruxa passou a dar atenção total a ele. Heládio sentou-se de frente para eles, pegando uma cadeira depois de esfregar os cabelos de Einne e de apertar a sua bochecha. Aquilo foi um ato de guerra declarado! E isso não ia ficar de graça. Resolveu atacar o pastor.

— Pastor Heládio, posso te fazer uma pergunta?

— Claro, menina.

— O céu é um lugar perfeito?

— Sim, claro que é.

— Então, porque Lúcifer teve a ideia maldosa de ficar no lugar de Deus? — a menina fez todos ficarem calados, chocados. Tal reação dos presentes a fez sentir-se vingada.

— Einne Nicole, você é realmente uma criança abençoada. — disse o pastor, fazendo troça e um pouco sem graça por ter que responder uma pergunta tão macabra, mas, ele tinha uma evasiva pronta. — Bem, isso são coisas que só saberemos no céu, quando morrermos.

— E por falar em morrer... — interveio Théo na conversa, movido pela curiosidade. — Afinal, que fim levou seu neto, pastor?

— Não sei dizer... Ele escolheu o caminho errado, fez coisas terríveis... — Heládio deixou a mágoa encher a boca na fala — Na realidade, que Deus me perdoe, mas eu queria que meu neto tivesse morrido no parto, ou se já estiver morto, apenas desejo que ele esteja queimando no lago de fogo, preparado para o Diabo e seus anjos, com a boca seca e em sofrimento constante, vendo a alma de Samyra feliz, a brincar com os anjos.

Einne o vislumbrou com rancor.

Havia mentira nas palavras do pastor. Ele sabia que Yussefer estava morto. Sabia quem o matou e apoiava esta pessoa. A menina fixou os olhos em Kathleen que parecia desconfortável com o assunto tanto que se remexeu no assento do sofá. O tema só incitou os demais a esquecerem os ensinamentos ditos no culto e a falarem do que realmente seus corações estavam cheios.

— Nossa, é difícil de acreditar que um maníaco tinha a cara de pau de frequentar a nossa igreja. — Leila exibia a sua opinião com repulsa inquisidora. — Sinceramente, concordo com o pastor Heládio. Esse sujeito tem mesmo que queimar no inferno, dentro do inferno.

— Quem mata sua própria família tem mais é que ser condenado à pena de morte! Devíamos ter isso no Brasil. — falou Bernardo, querendo se mostrar. E ao ver que era o centro das atenções, continuou. — Mas, se fosse comigo, faria muito pior do que matá-lo, deixaria preso num mastro, no sol escaldante do sertão para que os animais selvagens comessem a carne dele.

Einne parecia inquieta. Sua língua coçava para participar da conversa. Esperava impaciente por uma brecha, mas foi Théo quem adentrou na roda, tagarelando, procurando se enturmar.

— Meo, eu queria apertar a mão da pessoa que matou esse desgraçado. Um sujeito maníaco desse, deve ser o típico cara do pau pequeno, que não pega ninguém e saí por aí todo revoltadinho.

Einne apertou com ira os braços da cadeira de rodas. Ela olhava de forma punitiva para cada um deles.

— Pra mim, ele devia morrer feito um boi no rolete! — disse Leila fazendo troça.

— Essa é boa, mas o boi no rolete tem um pau enfiado no... — explicou Bernardo antes de ser interrompido pela bruxa.

— Ei, gente! Vocês estão falando do neto do pastor Heládio. Vamos ter mais respeito pela dor dele. — advertiu Kathleen, tocando no velho pastor que já estava amuado por relembrar os dias ruins.

A menina cadeirante rugia de raiva em silêncio com as lágrimas dos cantos dos olhos.

— Francamente! Como vocês podem falar essas coisas na frente de uma menina! — resmungou Rejane ao invadir a conversa, retirando a menina daquele meio. — Einne, vá para o seu quarto, está na hora de você ir dormir. Amanhã você tem escola.

Todos ficaram quietos e depois resolveram deixar a casa, se despedindo. Théo e Bernardo disputavam a atenção da bruxa nesses últimos minutos. Timidamente, Einne limpava as gotículas lacrimosas dos olhos encolerizados, enquanto rumava para o quarto. Quando Kathleen se aproximou para se despedir, então a menina cadeirante lhe falou:

— Posso te fazer uma perguntinha?

— Sim, claro que pode, Einne. — disse a bruxa se abaixando de frente para a cadeira, demonstrando satisfação ao acreditar que a menina estava se abrindo com ela.

— Você gostaria de saber a hora da sua morte, quando seu momento chegasse?

A pergunta tirou o doce sorriso da bruxa.

— Einne Nicole, você é uma criança realmente abençoada, como disse o pastor Heládio. — Kathleen voltou a sorrir ignorando a estranheza da pergunta e com um tom mais audacioso disse. — Bem, acho que sim. Mas isso não vai acontecer tão cedo, porque a morte pensa duas vezes antes de cruzar comigo.

Ela piscou para Einne e levantando-se deu um beijo em sua testa. A menina por um segundo se encolheu achando que Kathleen fosse lhe bater.

Depois que todos se foram, Bernardo foi até Rejane, que arrumava a casa, para dizer que a partir daquele dia, ele a levaria e a buscaria no trabalho. A mãe de Einne quis saber o motivo da mudança de atitude, já que propôs tantas vezes essa ideia e o marido nunca quis.

— E por que só agora você quer me levar? — indagou Rejane, mas foi Einne quem respondeu:

— É porque ele quer ver a sua amiga dos cabelos vermelhos, mãe.

Aquilo culminou com o castigo de Einne e, por pouco, não levou uma surra do padrasto. Mas, ao ver a mãe irritada com Kathleen e com Bernardo, isso já valia o castigo.

Ali, sozinha no escuro, com sua boneca a subir em seu colo, a menina passou a fazer carinho no brinquedo, enquanto relembrava o seu amor assassinado. Finalmente, o destino havia colocado a assassina do seu amado tão perto dela.

— Me ajude a fazê-la pagar pela morte dele. — suplicou à boneca.

A boneca a fitou e, num gesto afirmativo, acenou com a cabeça de plástico. Einne abraçou a boneca com satisfação ao saber que Kathleen Nightshade, a assassina de seu amado, iria ter o que merecia.

O SOBRETUDO VERMELHO AFOGADO - PARTE I : A CRIANÇAOnde histórias criam vida. Descubra agora