Prólogo

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Dizem que o Makhé tem poderes, mas ninguém é capaz de provar. Só sabem. É como uma bolha cor de rosa de frente para o mar, uma risada que dura a noite inteira. O bar tem a fama de juntar grandes amores e destruir qualquer coisa que não seja verdadeira.

Talvez seja por isso que sua dona, Cátia Flávia, viva de coração partido. Ou tem muita sorte no jogo e pouquíssima sorte no amor, ou nunca viveu um amor de verdade.

Fato é que seus três namorados encontraram os amores de sua vida enquanto ela servia mesas. Cláudio, o primeiro, gostava de dar chocolates. Não era bonito nem alto, mas tinha um sorriso encantador e vivia de recitar poemas. Num dia cheio no bar, ela pediu que ele entregasse o drinque a uma cliente que comemorava seu aniversário de dezoito anos.

Bastou. Dois anos depois, ela recebeu o convite para ser madrinha do casamento deles.

Depois veio Flávio, salva-vidas. Esse, sim, era bonito. Derrubava qualquer uma com o olhar, e foi proibido de entrar no Makhé, custasse o que custasse. Protetor, dizia que as ruas eram perigosas para que Cátia voltasse a pé quando o bar fechasse no meio da noite, e, por isso, ele a esperava só para acompanhá-la. Era bonito e gentil também.

Impedido de entrar, fizesse o frio que fizesse, ele aguardava do lado de fora, quase como um segurança particular. Cátia acreditou que, se mantivesse seus amores longe de suas banquetas altas, então tudo estaria bem. Além de bonito e gentil, ainda era fiel.

Um dia, parado de campana, esperando que o bar fechasse, Flávio ajudou uma mocinha bêbada, que comemorava sua despedida de solteira, a entrar no Uber. Os olhares se cruzaram, ela lhe sorriu ébria, esquecendo que era noiva, e trocaram telefones.

Seis meses depois, Cátia recebeu o convite para o chá de bebê.

De coração quebrado, ela via a felicidade de todo mundo ao seu redor. O bar era favorável a todos os amores, mas traiçoeiro com os dela. Com seus bilhetinhos feitos à mão, de pretendente para pretendente, ela unia casais improváveis.

O Makhé era seu único sustento, herdado de sua falecida mãe, e também o álbum para todas as lembranças mais felizes de sua vida. Foi onde sua mãe encontrou seu pai, encontrou o pai de seu irmão também, e onde Cátia cresceu e aprendeu a servir mesas. Se fechasse os olhos, conseguia ouvir todas as canções de parabéns dos trinta e dois anos que comemorara atrás do balcão, rodeada de gente querida.

O aniversário de Cátia era um evento que parava a cidade inteira. O prefeito, fosse qual fosse, detestava a data. Cada casal unido por ela voltava ao bar para comemorar com a casamenteira. Os amigos traziam o bolo, os clientes traziam a festa, e ela ficava ali, embalada pelo canto de amor amigo, presenteada como se fosse uma entidade, e celebrada como parte de uma família que nunca a deixava para trás.

Pois foi num desses aniversários que conheceu Maurício. Seu presente, ela pensava, o último amor de sua vida. Ele estava de passagem, de férias, e ouviu sobre o bar mais famoso da costa litorânea. Entrou sem saber que era aniversário da dona e se envergonhou por isso. Deu a ela um colar de conchas, que achou na areia horas mais cedo, e nunca revelou que era achado.

Os olhares se cruzaram e o coração de Cátia bateu diferente. Meio como se tivesse se engasgado.

O rapaz dizia que sentira a mesma coisa. Instantâneo, feito carma. Os dois se apaixonaram naquela noite, foram embora juntos para a casa dela e, em três meses, Maurício se mudava definitivamente para a cidade, mesmo contra a vontade dos pais, e mesmo sem um emprego.

De amor ele não viveu, mas se virou. Viveu de fazer bico na orla, de vender coco nos quiosques, de levar cachorros para passear. Aprendeu a tecer pulseiras, deixou crescer uma cabeleira loira e queimada de sol, aprendeu a surfar e virou um nativo melhor do que ela, que nasceu na beira do mar e de lá nunca saiu.

Sabia que nunca mais poderia entrar no bar – regras da Cátia –, mas para ele bastava estar ao seu lado. E Maurício cumpriu com a exigência, porque não queria perdê-la. Exceto, talvez, por uma única vez. Cátia fazia o balanço do caixa ao lado de seu gerente; só os dois sentados de frente para um caderno velho de contas, conversando sobre dinheiro. Maurício entrou porque soube que estava fechado para novos clientes e pensou que ela estivesse sozinha.

E Cátia, por se ver apenas com outro homem, o deixou entrar. Afinal, o que poderia dar errado com seu namorado trombar seu gerente?

Tudo. Pois, um ano depois, recebeu o convite de casamento deles.

Então, revoltada, sabendo que o bar era sua bênção e maldição, o colocou para vender. Que fosse! Estava farta de ver todo mundo se apaixonar, viver feliz, cantar o quanto a vida era bela, menos ela. Jogou a toalha. Que outra pessoa fosse a mensageira do amor. Ela estava farta!

Nunca achou um comprador. Cada pessoa que entrava, disposta a tomar aquela máquina de dinheiro, sofria um acidente. O primeiro quebrou um copo de drinque e cortou a mão. O segundo torceu o pé ao descer da banqueta do balcão; o terceiro escorregou, jurando que o chão estava molhado. Todos eles chegavam felizes e saíam furiosos. Parecia pegadinha. Numa semana, dez interessados se feriram, cada um com um acidente idiota.

O lustre feito de conchinhas e cristais, pendurado no meio do salão, tremia a cada comprador novo que entrava. Os garçons viam, sentiam uma leve vertigem, mas não falavam nada com a patroa. E Cátia não o via tremer, estava sempre de costas.

Então, presa dentro daquele bar, porque ninguém queria comprá-lo, jurou nunca mais se apaixonar. Vai virar as costas para o romance porque é desgastante demais remendar coração partido. Disse que servirá ao amor e à causa de seus clientes até o fim de seus dias, ou até que um comprador aguente entrar e sair sem se ferir – o que chegar primeiro.

E, pelo andar da carruagem, vai viver de unir casais, mas vai morrer sozinha.

Cátia - Só mais um bilhetinhoWhere stories live. Discover now