Do Outro Lado

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Como seria caso afirmasse que há um ser tão superior quanto nós, seres humanos? Seria algo arriscado ou não? Como saber se tudo o que aconteceu em milênios: guerras, fome e miséria, são de fato criações nossas ou Dele? E como terei a garantia que a partir dessas perguntas eu não estarei à mercê da punição divina?

"Deusas e Deuses que escutais, suplico-vos: Dais a mim, tão perfeito servo deste mundo, o poder que vós tendes. Se é que existem para me escutar. Pois nascido da mais baixa das periferias e sobrevivente das mais mortais enfermidades, por que não ser merecedor de tal onipotência?"

Escuto sussurros, uma cidade deles; muitos dizem coisas boas, mas a maioria só quer o caos, a calamidade.

Ao lado da minha cama não há nada. Embaixo dela, vejo algo. 

Algo assustador.

Um monstro? Não. Então o que é?

Um espelho.

Está quebrado.

Não teria algo pior que a si mesmo? Somos o ser mais pecaminoso que poderia viver neste mundo, somos cobertos não pela razão, mas pelas emoções mais selvagens: inveja, ira e vaidade. Dominados pela fome, sede e, principalmente, pela morte. Somos de aparência horrenda, aptos a dilacerar-se caso nos convencemos que não somos belo o suficiente. 

Belo... O que seria isso? Com certeza, não seria a reflexão da refração distorcida do caráter humano.

Está quebrado.

Então eu me olho mais uma vez, pela última vez. Notando o sangue correr pela cabeça, sinto-me até um pouco aturdido e me levanto.

Outro dia passou, vou à cozinha, preciso comer. Na verdade... Preciso de tantas coisas, principalmente de poder.

"Oh, Deuses! O que será preciso fazer para vós me escutareis?"

Vou ao banheiro, excreto as fezes das heresias do homem; porém como uma faca de dois gumes, foi-se junto tudo o que poderia haver de humano em mim.

Percebo que eu era apenas um lobo sob a pele de cordeiro, no final todos nós somos. O que falta para isso se tornar real são as oportunidades. Então, agora me digas se tu nunca sentiste a ânsia de consumar um delito? Pois eu já, eternas vezes.

A cidade das vozes sempre me instigaram a um feito tão conturbado quanto os praticados na Idade Média. Elas me diziam que eu iria ser quem eu realmente sou e foi o que fiz. Acredito nelas, tanto quanto a fé que rege um povo cego pela corrupção.

Deduzo que chegou a hora de sair desse inferno em que vivo, as ruínas do que foi algum dia a obra mais moderna da cidade tem vista para o subúrbio, sendo o local mais barato e sossegado que achei para morar. Finalmente saio, a luz natural chamusca os meus olhos, no entanto minhas crenças me impedem de fraquejar.

"Não sou como eles. Jamais serei."  — Ao fechar a porta, eu paro, foi inevitável.

As vozes romperam mais uma vez e incessantemente elas marcham em passos uníssonos para o fundo dos meus pensamentos, preenchendo a minha cabeça até se ligarem aos choques elétricos que conduzem o meu corpo.

Está quebrado.

— Você está quebrado.

"Hipócritas, não sou como eles..."

As vozes tentam me apunhalar, querendo me fazer ser como eles. Aos sonhos kafkianos eles tentam me fazer renunciar do meu propósito, porém os Deuses me resignaram e como prova terei que resistir até me tornar digno.

Do Outro LadoWhere stories live. Discover now