— Derrubei tinta na sua bota de inverno.

— Você o quê?! — Grito, ainda mais furiosa.

Minha reação o deixa confuso.

— Espere, não era disso que estava falando?

— Não... — Minha voz não passa de um sopro grunhido. Tenho que fazer um esforço enorme para encarnar a irmã centrada e não estapeá-lo.

Ele emite um barulho que vem do fundo da garganta, como se compreendesse a situação, pisca algumas vezes e quase sorri quando diz:

— Então me deixe fazer uma lista. Tenho muitas coisas a confessar...

Aparentemente, fazer listas estúpidas corre no sangue dessa família.

Eu chuto os sapatos para longe e ando até ele. Tenho que olhar para baixo para encará-lo devidamente. Tyler não se abala com nossa diferença de tamanho.

— Você deu algo meu para o garoto que veio aqui. Você achou que ele fosse meu namorado.

Tyler levanta as pequenas sobrancelhas. Há uma semelhança enorme com papai quando faz isso.

— E não é?

— Não!

Ele sorri para minha resposta.

— Vovô está certo. Você é mais lerda do que parece.

Suas palavras são um balde de água fria na minha cara. Eu bufo, pasma com a ousadia. É a última coisa que preciso ouvir de uma criança.

— Se mexer nas minhas coisas de novo, vou garantir que você seja adotado por uma família indiana. Entendeu?

Minha ameaça não provoca nem arranhões na postura altiva dele. Tyler se mantém calmo, acho que anda passando tempo demais com o vovô para aprender a ser irritante na medida certa.

— Claro que entendi. Nós dois falamos o mesmo idioma.

E quando ele dá passos sossegados até o sofá para se sentar, está sorrindo de uma forma que me diz claramente que ele não pretende parar.

(...)

Hardy não vai à aula quinta, e a culpa é minha. Eu dei a ele de presente uma suspensão de quatro dias, ainda que de forma indireta. Por isso nossa dupla não vai participar da próxima avaliação da professora Bennet, seja ela qual for.

Aparentemente, o fato de Riviere ser o queridinho da filha do diretor Mackenzie não o ajudou em nada. Sua punição foi tão severa quanto a de qualquer um, mesmo que Mackenzie tenha sorrido para ele quando ninguém estava vendo.

Estou guardando meus livros no meu armário quando vejo Sam despontar no fim do corredor sozinho. Imediatamente sei que é minha chance de ouro para pôr um fim na minha lista, para jogar qualquer coisa que Hardy tenha dito ou feito para escanteio. Não quero mais pensar nele, e Sam é minha saída à direita, um desvio que estou mais que contente em fazer.

Abro um sorriso caloroso e aceno animadamente. Sam franze a testa por um segundo, mas sua confusão logo se dissolve em outro sorriso.

Espero até ele se aproximar para acompanhar seus passos descontraídos.

Ele me olha com explicita curiosidade, esperando que eu diga algo.

É estranho pensar que um dia fomos próximos, que ele já passou tardes na minha casa comendo porcarias e vendo filmes ruins, e agora é um garoto bonito e desejado. Mais estranho ainda é que estou planejando flertar com ele, ignorando nosso pequeno passado. Não é mais importante. Somos estranhos agora, posso fazer isso.

— Como vai? — Pergunto, me sentindo uma completa idiota por começar assim, mas seria ainda mais estranho se eu jogasse sobre ele um descarado "vamos sair" antes de mais nada.

— Estou sempre bem. E você?

É irritante como ele ainda responde a esta pergunta com "estou sempre bem" mesmo que não seja verdade. Certas coisas nunca mudam.

— Gosto de pensar que também estou sempre bem.

Ele ri, aparentemente ainda sem acreditar que estamos tendo essa conversa estranha. É mais do que o simples aceno que geralmente trocamos.

— Seu avô continua o mesmo? — Sam pergunta.

É a minha vez de abrir um sorriso conspiratório.

— Ah, pode apostar que sim.

É de conhecimento geral que vovô é uma figura muito incomum. Às vezes Sam ia na minha casa apenas para passar um tempo com o velho, não comigo, o que me deixava furiosa. Sei que vovô cobrava cinco dólares por conselho amoroso, e Sam estava sempre sem dinheiro.

Estamos descendo os poucos degraus da saída agora, o vento de outono beijando nossos rostos. Sam vai se despedir e ir embora, é a minha última chance, tenho que dizer agora.
Eu seguro seu braço numa explosão repentina de coragem.

— Escute, eu estava pensando se podemos sair esta noite?

É um verdadeiro milagre que minha voz tenha soado tranquila e inabalável mesmo que eu esteja morrendo de medo por dentro.

Sam franze a testa, e eu solto seu braço.

— Como nos velhos tempos? — Ele murmura, piscando vezes demais para entender o que estou querendo.

Não, penso em dizer. Não como nos velhos tempos, porque provavelmente vou beijar você.

No entanto, me contento com o que tenho e sorrio.

— Como nos velhos tempos.

Ele corre os dedos nos cabelos escuros.

— Claro, por que não? Vamos nos divertir! Tenho uma festa para ir hoje. Acho que você vai gostar.

Sou boa em esconder minha decepção. Uma festa certamente lotada não era bem o que eu esperava. Não terá o mínimo de privacidade para me concentrar no que preciso fazer, mas vai ter que servir. Concordo e Sam promete me pegar às 22hrs.



Contando Até DezOnde histórias criam vida. Descubra agora