Culpados declarados
Talvez de todos sejamos os renegados
Mas nós somos livres
Deixamos pra trás tudo que nos prendia
E dia após dia nós temos novas rotas de fuga
Novos desafios, novas conquistas,
E passo após passo nós chegaremos lá.
Petrus estava um pouco diferente do que eu me lembrava. Ele tirou um boné da cabeça e pendurou no cabide atrás da porta e seus cabelos antes volumosos e lisos se resumiam a uma quantidade rala de fios. Estava quase careca.
Olhos verdes me encaravam ao invés de olhos castanhos. E eu me perguntei se estaria tudo bem, mas eu não tinha certeza. Nunca o tinha visto com uma jaqueta colegial, nem com jeans rasgados ou com um All Star surrado nos pés.
- Eu sinto muito Helena.
O jeito como ele disse que sentia muito me fez desviar o olhar. Eu estava furiosa ao mesmo tempo em que estava aflita.
- Bem – disse N – eu tenho umas coisas pra ir resolver, mas voltarei logo, então tentem não se matar na minha ausência.
Eu não sei por quanto tempo eu e Petrus ficamos de pé em cantos opostos da sala, desviando o olhar um do outro, em silêncio e ouvindo o barulho do relógio desde que N saiu encostando a porta atrás de si. Mas, posso jurar que foi por muito mais tempo do que eu gostaria.
- Nós não somos bons nisso né? – disse Petrus encostando-se a soleira da porta, procurando um apoio talvez.
- Eu não aguento mais sabia? Primeiro Sonne, aquelas memórias horríveis que eu queria esquecer, riscar da minha vida, depois a clínica, aqueles dias deprimentes. E eu não tinha pra onde ir... Eu precisei de uma saída, e simular a minha morte foi o melhor que eu pude fazer. Foi uma droga, eu devia ter morrido de verdade. Não sei o que estou fazendo aqui, eu cansei disso. Minha vida não tem sentido. Eu só queria ficar sozinha, era pedir demais? Mas, que droga eu precisava de um tempo. Eu posso me fazer de racional às vezes, só que aqui dentro eu sou uma bagunça Petrus, e eu não consigo lidar com a bagunça de mais ninguém. Tentei encerrar as coisas de uma maneira legal com você, porque não queria fazer o mesmo que Sonne fez comigo, mas que merda, por que você não me deixa ir? – eu disse sentindo tudo que eu estava guardando dentro de mim transbordar.
- Porque talvez eu não consiga. Eu tentei ok? Eu tentei me afastar de você e desse mar de problemas que você é. Tem ideia de como foi difícil? Eu não consigo pensar nessa possibilidade. Enquanto você viver eu preciso pelo menos saber como você está, eu não suporto a ideia do que está fazendo. Você é mais do que isso Helena, por que tem que se autoflagelar e se diminuir dessa forma? Por que as suas únicas opções são sempre abandonar todas as pessoas ou morrer?
- Eu sou assim. Não tem como eu ser diferente... – senti as lágrimas surgirem antes mesmo de elas quererem sair – Eu não posso ficar perto da merda que as pessoas são. Eu fui abandonada tantas vezes que perdi a esperança. No final sempre desistem de mim, e eu sou mesmo um caso perdido. Apenas vá embora como todas as outras pessoas. Eu não preciso de ninguém, eu sou livre. Eu posso ir aonde quiser e cometer a porcaria dos erros que eu bem entender. Você não pode conviver com isso, então aceite que não posso ser mais sua amiga. E pare de tentar me curar com a droga da sua terapia barata, porque eu sou mesmo um caso perdido.
Petrus passou a mão nos cabelos que mal tinha na cabeça, puxou uma cadeira e sentou-se. Encolheu a cabeça entre os braços. E então olhou pela janela. E foi assim sem me olhar que ele disse:
- Eu nunca quis sabe? Consertar você, ou mudar você. Eu nunca achei que precisasse disso. Não, Helena... Porque a única pessoa que pode fazer isso é você mesma. E até onde eu percebi você não quer fazer isso. Quando tiver coragem de encarar os olhos dos fantasmas do seu passado e conseguir deixa-los pra trás, então talvez seja a partir daí que você comece a se sentir livre de verdade. E a seguir em frente. Mas, talvez você nunca faça isso, e eu continuarei como esse tolo que te segue em sua autodestruição, sem poder fazer nada pra mudar isso. Você acha que não cansa Lena? Cansa. É um cansaço que acaba com meus neurônios, mas garota, eu nunca serei como o Sol, eu continuarei a te perseguir em suas voltas em círculos. E não importa o que você faça, pois não vai conseguir se livrar de mim.
Limpei meu rosto manchado com pequenas lágrimas com a manga da blusa quase encardida que usava.
- Por que não me deixa ir? – perguntei quase em desespero
- Achei que fosse óbvio – disse Petrus finalmente olhando pra mim – Mas, se você insiste então eu vou lhe dizer com todas as letras. É porque eu te amo. E isso não é algo que vai passar. Assim como você amou o Sol por muito tempo, e ainda tem todas as lembranças sobre isso, mesmo que você queira jogar tudo isso fora, mesmo que não tenha mais sentimentos por ele, você não consegue só descartar tudo isso não é?
Como eu não respondi Petrus se levantou e pegou o boné que havia deixado no cabide. Já de costas pra mim, ele disse:
- Acho que precisa ficar sozinha. Você pode até cortar relações comigo se quiser. Mas, não me peça pra desistir de você, seria muito cruel. Eu vou continuar olhando por você mesmo que esteja distante.
Quando Petrus encostou aquela porta. Quando eu vi a sua silhueta desaparecer, eu senti como se o chão tivesse sido arrancado dos meus pés. Eu não sabia como reagir.
E então eu vi N entrar. E suspirar fundo logo em seguida.
- Meio que eu esperava por isso – ele resmungou
Ele se aproximou de mim e apoiou uma das mãos em minha cabeça. Depois se abaixou um pouco pra ficar na minha altura.
- Helena – ele disse com uma expressão serena no rosto – Há um lugar para todos nós, e uma felicidade para todos nós. Às vezes só é preciso um pouco de coragem para abrir os olhos. Mesmo que possa doer, é melhor do que viver imerso na escuridão de manter os olhos fechados.
Eu segurei a barra da sua camisa sem olhar para ele.
- Meus olhos estão ardendo de lágrimas que não quero deixar cair, e eu tenho medo de olhar pra cima e ter meus olhos queimados pelo Sol.
Seus olhos um pouco surpresos se normalizaram quase no mesmo instante.
- Discussões machucam. E machucam mais ainda quando existe alguém que gostamos dizendo palavras duras do outro lado – ele disse dando leves batidinhas na minha cabeça – Mas, você não precisa ter medo. Seguir em frente pode ser complicado, porém acho que é algo que vai te fazer bem.
Soltei a sua camiseta.
- Tem uma coisa que eu preciso fazer – falei um pouco apreensiva – Pra que lado Petrus foi?
- Ele deve ter ido em direção à cidade, então foi para o sul, mas ei...
Eu não o deixei terminar de falar, apenas saí por aquela porta e desci as escadas sem saber ao certo para onde estava indo.
- Você vai se perder desse jeito garota! – N gritou da janela lá em cima, mas eu fingi que não ouvi.
E eu passei muito tempo andando por caminhos vazios e desconhecidos. E pela primeira vez em muito tempo, parecia haver uma direção pra mim.
Eu corri, corri como se soubesse pra onde ir. E então eu tropecei e caí. E na queda eu bati meu braço, e o senti doer, doer muito. Mas, eu me levantei mesmo assim.
Eu o avistei muitos metros a frente de mim. Segurei o braço que doía e chamei seu nome num sussurro. Continuei andando, então o chamei de novo num tom de voz normal. Ele estava muito longe para me ouvir.
Mas, eu não podia suportar a ideia de observar as suas costas desaparecerem.
Juntei todas as minhas forças para voltar a correr, então observei de longe Petrus se sentar em um tronco caído. Ele tirou o boné e passou as mãos pelos cabelos.
Continuei indo até ele, um pouco hesitante. Quando estava em pé ao seu lado, o observei dali, sem que ele sequer notasse minha presença. Sua cabeça estava abaixada. Então eu me sentei ao seu lado.
Ele olhou para mim com os olhos arregalados, estava bastante surpreso com a situação. Observei seus olhos agora sem as lentes, e percebi que eles estavam vermelhos, irritados, e me perguntei se ele havia chorado.
- Petrus... – disse sem saber ao certo o que eu queria dizer – Eu sinto muito por tudo que aconteceu.
Ele encarou o horizonte, com os olhos vagos.
- Olhe para as primeiras estrelas que surgem Helena, olhe como elas brilham por você.
Olhei para o Sol se pondo. Eu não via sequer uma estrela naquele céu.
- Petrus...
- Elas vão brilhar por você Helena. Você só precisa ter um pouco de paciência.
E então, eu percebi. Ele só queria ter uma desculpa, para confirmar que eu realmente estava lá. Para que eu ficasse mais um pouco ali.
- É claro – falei colocando minha mão sobre a sua. Elas vão brilhar por nós.
***
Departamento de polícia do distrito Norte.
Sobre a mesa do investigador: caso nº 10519. Helena Sonnenblume. Suspeita de assassinato classificado como homicídio doloso (quando há intenção de matar). Relatado em 21 de fevereiro de 2017. Terça-feira. Cometido aproximadamente às 15h:45min.
Local do crime: clínica psiquiátrica Esperança, quarto da vítima. Suspeita de intoxicação por medicamentos experimentais.
Principal suspeito: Enfermeiros e médicos em geral. Acredita-se que os empregados da clínica eram uma quadrilha especializada em experimentos humanos e que outras vítimas tenham sofrido tortura e até mesmo sido exterminadas por desobediência ou tentativa de fuga do local.
Muitos pacientes foram ouvidos e pode-se constatar que muitos deles não tinham quaisquer tipos de transtorno psicológico. O que enquadra os suspeitos por crime de fraude, pois seus relatórios psiquiátricos eram todos alterados, fazendo com que pessoas sadias fossem mantidas na clínica sem necessidade.
A clínica foi fechada e o imóvel penhorado. Os donos do estabelecimento permanecem foragidos. Nenhum suspeito foi preso ou mesmo condenado. O inquérito se encontra em andamento.
Determinado todos os fatores acerca do acontecido, e sendo declarada a causa da morte por intoxicação, o caso ficará em aberto pelo ano corrente e posteriormente sofrerá arquivamento.
Não sendo encontrados os culpados ou comprovado por meio material suas ações, o prazo para execução do cumprimento da lei a ser levado à julgamento será de 5 anos, tendo então qualquer processo em aberto caducado ou sido extinto.
Entre goles de café o responsável pelo departamento de investigação, o sr. Thomas buscava nas entrelinhas algo que ainda não tivesse visto. Ele puxou novamente da gaveta as fotografias do quarto da menina registradas junto a seu corpo inerte e sem vida sob o chão de assoalho branco.
Pegou o seu casaco e as chaves do carro. Estava completamente decidido a visitar o setor de autópsia do IML para o qual fora levada a vítima.
Em todos os seus 27 anos de serviço, o detetive já com seus fios de cabelos brancos nunca levou tão à sério um caso em toda a sua vida. Mas, por algum motivo todos os seus instintos lhe diziam que havia algo mais naquela história. E ele não ia parar, não sem descobrir o que poderia ser aquela sensação de que havia alguma coisa muito fora do lugar.
Ele amava sua profissão de maneira exagerada. Como poucos, pode-se dizer. Noites em claro se tornaram a sua rotina. No entanto, não houve sequer uma mulher que aguentou acompanha-lo nessa vida por muito tempo.
Ainda assim ele parecia não se importar com a solidão.
***
- Helena – chamou Petrus
- O que foi? – respondi sem lhe olhar
- O que nós vamos fazer agora?
- Como assim? – perguntei um pouco confusa
- Nunca houve 'nós' não é? Desculpe foi uma pergunta idiota.
- Só porque eu larguei tudo que eu tinha, não significa que precisa fazer o mesmo. Sabe, essa seria a única forma de você me acompanhar, mas não seria justo te pedir uma coisa dessas.
- Parece que estamos destinados a caminhos diferentes.
- Petrus – disse finalmente olhando para seu rosto – Me desculpe por ter sido tão dura com você. Eu acreditei que seria mais feliz vivendo a minha plena solidão. Eu fui egoísta pensando apenas em mim mesma. Acreditei que você seria mais feliz longe de mim.
- Com certeza você é uma péssima companhia.
Eu ri. Sabia que ele estava certo, e continuava sendo engraçado viver naquela desgraça.
- Uma péssima companhia, mas você não me deixa partir ainda assim.
- É claro. Você é a melhor péssima companhia que eu já tive.
Olhei para seus olhos levemente inchados, eles também olhavam pra mim.
- Você não pode abrir mão do seu mundo para viver o meu – foi o que eu pude lhe dizer
- Talvez eu abrisse mão se você me pedisse – ele disse sorrindo sem graça
- Você está sendo um girassol agora
- Eu me tornei um girassol quando se trata de você
- Posso te contar algo que eu percebi? – eu disse desviando minha atenção para o céu agora cheio de estrelas que pairava acima de nós
- Claro você pode sim
- Todas as pessoas seriam mais felizes se pudessem ser sóis e girassóis ao mesmo tempo
- Desculpe, eu não entendi – ele disse encarando suas próprias mãos entrelaçadas, os braços apoiados nos joelhos.
- Ser seu próprio universo, girar em torno de si mesmo, isso te torna forte. Isso é ser Sol. Girar em torno de alguém, isso pode te enfraquecer. Isso é ser girassol. Ser o universo de alguém, isso é fascinante. Querer existir pra essa pessoa que se tornou seu universo isso pode ser perigoso. Mas, se você tem as duas coisas, não é arrogância, pretensão ou sofrimento e angústia. Isso é o equilíbrio. É ter tanto dentro de si que poderia explodir, e sentir tanta falta que poderia não suportar. Quando você pode ter isso, então significa que é amor. Eu acho fascinante sabe? Ainda acreditar que isso exista.
- Ah Helena – ele disse me dando um abraço forte – Por favor, nunca pare de acreditar.
Vi relâmpagos iluminarem o céu, e sem Petrus perceber eu acabei vendo lágrimas escorrerem por seu rosto.
- Eu tive uma ideia – disse sem afasta-lo, mas quando eu falei isso ele se afastou por si mesmo.
Petrus ficou me olhando na expectativa, mas não perguntou o que era.
- Vou fazer uma identidade falsa, vou andar por aí com outro nome, vou mudar mais um pouco de aparência, vou viver um tempo na minha cidade natal, e quando terminar a faculdade, daqui a um ano... Você virá comigo. E vamos voltar pra casa de N agora, porque vai chover.
Petrus segurou meu rosto com as suas mãos.
- Helena por que vai fazer isso?
Sorri levemente.
- Porque estou cansada de viver sozinha, será bom ter uma companhia.
Segurei suas mãos e o afastei levemente.
- Só não crie esperança – disse me levantando – Meu coração já se aposentou faz tempo.
- Não fale como uma velhinha.
Segui andando e escutei os passos de Petrus atrás de mim. A verdade é que eu tinha esperança, não em encontrar um novo amor, mas em encontrar um lugar pra mim no mundo, um jeito de me sentir inteira, uma maneira de ser feliz.
E não me censurei por isso, naquele momento apenas deixei aquele sentimento me dominar.