O Fausto (1790)

By ClassicosLP

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Obra do alemão Johann Wolfgang von Goethe. More

Prólogo
Diálogo preliminar
Quadro I
Cena única
Quadro II
Cena I
Cena II
Cena III
Cena IV
Cena V
Quadro III
Cena I
Cena II
Cena III
Quadro IV
Cena I
Cena II
Cena III
Cena IV
Cena V
Quadro V
Cena II
Cena III
Cena IV
Cena V
Quadro VI
Cena I
Cena II
Cena III
Quadro VII
Cena I
Cena II
Quadro VIII
Cena I
Cena II
Cena III
Cena IV
Quadro IX
Cena I
Cena II
Cena III
Cena IV
Cena V
Quadro X
Cena I
Cena II
Quadro XI
Cena I
Cena II
Cena III
Quadro XII
Cena única
Quadro XIII
Cena I
Cena II
Quadro XIV
Cena I
Cena II
Quatro XV
Cena única
Quadro XVI
Cena I
Cena II
Quadro XVII
Cena I
Cena II
Quadro XVIII
Cena única
Quadro XIX
Cena I
Cena II
Cena III
Quadro XX
Cena única
Quadro XXI
Cena I
Cena II
Cena III e Seguintes
Áureas de núpcias de Oberon e Titânia (Intermesso)
Quadro XXII
Cena única
Quadro XXIII
Cena única
Quadro XXIV
Cena II
Cena II
Cena III

Cena I

20 1 0
By ClassicosLP

FAUSTO, depois MEFISTÓFELES, trajado como ele mesmo indica no diálogo. Batem.

FAUSTO

Bateram. Entre! Quem virá moer-me?

MEFISTÓFELES (de fora)

Sou eu.

FAUSTO

Entre!

MEFISTÓFELES

Repita-mo três vezes!

FAUSTO

Pois pela vez terceira, entre!

MEFISTÓFELES (entrando)

Ora graças!
Voltei ou não voltei?
Manos a l'obra!
Toca a deitar cá fora. Eu já no intuito
de lhe furtar a mente a hipocondrias,
aqui venho, entrajado à fidalguinha:
— corpete carmesim bordado de oiro,
— capa de gorgorão, gorra enfeitada
com sua pena de galo,— e o coruscante
chanfalho à cinta. Não percamos tempo.
Vestir como eu, e andar! Livre dos cepos,
verá o que é viver.

FAUSTO

Mudar de pele
não muda interior. Com quaisquer trapos
há-de ir comigo o meu viver terrestre.
Já sou velho de mais para brinquedos,
e para descartar-me de cobiças
inda muito rapaz. Que há nesse mundo
que me possa atrair? Priva-te! Abstém-te!
Eis o eterno refrão com que nos quebram
o bichinho do ouvido a toda a hora.
De manhã, quando acordo, é sempre aflito
e ansioso de chorar, pela certeza
de que o dia que enceto é, como os outros,
incapaz de cumprir-me um só desejo,
nem um só. Pois se eu sei que a expectativa
do mínimo prazer já chega eivada
de sua improbação, e cada almejo
do meu férvido sangue há-de ir gelar-se
ante as carrancas do viver prosaico!
À noite é-me forçoso entrar num leito
onde já sei me aguarda o labirinto
da turbulenta insónia, e, se olhos cerro,
medonho pesadelo! O Deus que me enche
rege-me a seu talante, influi, domina
té o âmago mais fundo o meu composto.

E tamanha potência nada pode
fora de mim nos mínimos objectos!
Dura carga é viver! quem dera a morte!

MEFISTÓFELES (ironicamente)

Devagar, devagar! Hóspeda é essa
que dispensa convite e zanga a todos.

FAUSTO

— Feliz o herói que, na embriaguez da glória,
no instante mesmo em que lhe pega os loiros
com sangue hostil nas fontes a vitória,
cai fulminado ao silvo dos peloiros!
— Feliz o amante que depois do enleio
de louca dança, e no auge do delírio,
súbito expira no adorado seio,
e antes da morte vislumbrou o Empíreo!
— E feliz eu, se quando, face a face,
logrei tratar com génio alto e possante,
nesse extra-vida glorioso instante
morte improvisa os dias meus soprasse!

MEFISTÓFELES (ironicamente)

Assim será; mas certo sujeitinho,
certa noite que eu sei, não teve a força
de tragar certo líquido.

FAUSTO

Já vejo
que também gostas de espiar.

MEFISTÓFELES

Não digo
que tudo sei, mas sei que farte.

FAUSTO

E ignoras
o porque eu não bebi? Foi porque a ponto
uns conhecidos sons, ecos da infância,
me arrancaram do horrendo labirinto
por onde eu tumultuava, e me puseram
nos meus primeiros, meus saudosos dias!...
e era tudo fantástico!
Mal haja quanto humano artifício enleia as almas,
e com suaves forças lisonjeiras
na mundanal caverna as traz cativas.
— Maldita a presunção, que ilude ao homem.
— Malditas as miragens, que nos cegam.
— Maldita a glória vã.— Maldito o sonho
dos póstumos laureis. — Maldito o gozo
do possuir: de ter esposa, filhos,
servos, campos ubérrimos. — Maldito
o Mamon, que envidando-nos seu oiro,
ora nos lança às íngremes façanhas,
ora (e só para uns frívolos recreios)
por cima dos deveres nos afofa
preguiceiros coxins. — Maldita a vinha
co'o seu néctar balsâmico — Maldita
essa das graças graça, amor chamada.
— Maldito o esperar sempre. — A fé maldita.
— Maldita sobre tudo a paciência!

CORO DE ESPÍRITOS (invisíveis)

Ai ai! desta feita deixaste arrasado
c'oa força do murro tão lindo universo;
já tudo em ruínas desaba disperso.
Já é! Ver um homem com Deus comparado!

Andar, companheiros, levar por 'í fora,
para os sumidoiros do vácuo sem fundo,
os cacos e entulhos da fábrica mundo.
Pasmava-se dela; choremo-la agora.

Sus, filho do barro, sus, sus, potentado!
Em troca do mundo, que já destruiste,
extrai de ti outro, melhor, menos triste!
Profere o teu Fiat, e logo é criado!

Vida nova, clara vida,
corra limpa de mistérios!
Encha os âmbitos etéreos
o cantar do teu Edén!

Ao factor do novo mundo
fama em cânticos florida
alce em coro adorando
glória, glória, glória, Amen!

MEFISTÓFELES

Aí tem no que os meus pajens lhe cantaram
regras do bom viver; de mais acerto
nem conselheiros velhos as dariam.
Aproveite a lição! Torne-se ao mundo!
Fuja do viver só, que estagna a mente,
os sentidos embota, e mole-mole
chucha os sucos vitais. Mau passatempo
é esse de cevar melancolia,
feros abutres d'alma. Em sociedade,
por mui ruim que seja, ao menos sente-se
com homens homem. Não direi que desça
a conviver co'a sórdida gentalha.
Figurão não sou eu; mas se lhe serve
comigo acompanhar na aventureira
jornada deste mundo, pronto e às ordens!
Aqui tem um criado, um companheiro,
um pau mandado, o mais pontual dos servos.

FAUSTO

E eu que te hei-de pagar?

MEFISTÓFELES

Depois veremos;
não é coisa de pressa.

FAUSTO

Ai, nada, nada,
que eu sei de cor as manhas dos diabos:
não dão ponto sem nó. Venha o primeiro
que pelo amor de Deus a alguém servisse.
Vamos às condições: propõe-nas franco.
No tomar um tal servo há seus perigos.

MEFISTÓFELES

Obrigo-me a servi-lo em tudo e à risca
enquanto vivo for, e obedecer-lhe
aos acenos até, sem cansar nunca.
Depois, quando lá em baixo nos toparmos
trocamos os papéis.

FAUSTO

Pouco me afreimo
do teu depois, e mais do teu em baixo!
Escavaca este mundo, e engendra um novo,
que se me dá, se é deste que deriva
tudo que me contenta, e o sol que doira
os meus males é este? Em se acabando
mundo e sol para mim, saia o que saia;
e não há mais dizer. Que me interessa
que lá se odeie ou se ame? haja ou não haja
um abaixo e um acima?

MEFISTÓFELES

Então já pode
no pacto conchavar-se. O que eu lhe afirmo
é que estes dias que passarmos juntos
lhe hão-de por minhas artes dar tais gostos
quais os não teve alguém.

FAUSTO

Pobre diabo,
que hás-de tu dar-me? O espírito de um homem
como eu sou, foi jamais compreensível
aos da tua relé? Tens iguarias
que não matam a fome; oiro que fulge,
mas que igual ao mercúrio, escapa aos dedos;
jogo em que é certa a perda; uma beldade
que até nos braços meus soltando arrulhos,
já está piscando o olho ao meu vizinho;
pompas de glória, um fumo!
O que eu preciso,
se o tens, são frutos a pender de copa
sempre frondosa, e que antes de apanhados
não tenham já por dentro o podre e os vermes.

MEFISTÓFELES

Bem; tudo isso há-de ter; conte comigo
Desde agora, amiguinho, à rédea solta.
Folgar e mais folgar! Leva de escrúpulos!
Tudo quanto bem sabe, é permitido.

FAUSTO

Se eu me acosto jamais em fofa cama,
contente e em paz, que nesse instante eu morra!
Se uma só vez com falsas louvaminhas
chegares por tal arte a alucinar-me
que eu me agrade a mim próprio; se valeres
a cativar-me com deleites frívolos,
súbito a luz da vida se me apague.
Vá! queres apostar?

MEFISTÓFELES

Se quero! Aposto.

FAUSTO

Aperto mais: Se me chegar momento
a que eu diga: «Demora-te! És formoso»
então aos teus grilhões entrego os pulsos;
então a morte aceito; os sinos dobrem;
já livre estás de mim. Dessa hora avante,
quede o relógio! Caiam-lhe os ponteiros!
Acabou-se-me o tempo.

MEFISTÓFELES

Olhe o que afirma,
que entre nós outros nada esquece.

FAUSTO

Embora!
Não me obriguei de leve. O que eu padeço
não é escravidão? Ser logo servo
de outro ou de ti, que monta?

MEFISTÓFELES

Às suas ordens,
desde já. Tem a nata dos serventes
para este bródio de barrete fora,
meu querido Doutor!
Mais uma nica.
Há morrer e viver. É bom primeiro
pôr o preto no branco: um tudo-nada;
duas regritas só.

FAUSTO

Que é! Papeladas
até no inferno, rábula! Bem mostras
entender pouco do que seja um homem.
Não vai librado o meu destino inteiro
na palavra que dou? Sendo o universo
um turbilhão perene, achas que possam
quatro letras de borra agrilhoar-me?
(E é geral todavia o preconceito)
Feliz o que tem fé: não se aventura
a coisas em que é tarde o arrepender-se.
De pôr num pergaminho uns papa-ratos,
e assiná-lo, é que todos estremecem,
por entenderem... que a palavra humana
que na pena é já morta, assume vida
se a uma pele defunta a incorporaram.
Vá! Que exiges, espírito danado?
pergaminho? papel? mármore? bronze?
letra de pena, de buril, de escopro?
Escolhe!

MEFISTÓFELES

Ih! que facúndia, e que fogachos
sem quê nem para quê! Basta um farrapo
de papel fino ou grosso, e uma gotinha
do sangue próprio, com que assigne em baixo.

FAUSTO

Se nessas pataratas fazes luxo,
vá lá!

(Arregaça o braço esquerdo; Mefistófeles pica-lhe a veia; Fausto molha no sangue a pena, e assina com ela o pergaminho que Mefistófeles lhe apresenta.)

MEFISTÓFELES

Isto do sangue é burundanga
que tem seu quê.

FAUSTO

Não te violo a avença;
não tenhas medo. As minhas posses todas,
já daqui tas obrigo. Inchei de modo
que só posso caber na tua esfera.
O Factor Sumo pôs-me em bando. Encontro
cancelos a vedar-me a natureza.
O fio do pensar quebrou-se. Há muito
que de todo o saber vivo enjoado.
Deixar-me ora engolfar em vosso abismo,
deleites sensuais, paixões fogosas!
Rompam já 'í portentos e portentos,
qual a qual mais possante a enfeitiçar-me!
Mergulhemos no vórtice dos tempos,
no encapelado mar das aventuras.
Sigam-se embora, como queiram, dores
a deleites, ou júbilos a mágoas.
Tudo, menos a inércia, o mal dos males,
o que mais vexa a dignidade humana.

MEFISTÓFELES

Não ponho restrições; peça por boca!
Se as primícias quiser libar de tudo,
de qualquer coisa (por fugaz que seja)
se quiser na voadura apoderar-se,
não faça cerimónia; e que lhe preste!

FAUSTO

Entendamo-nos bem. Não ponho eu mira
na posse do que o mundo alcunha gozos.
O que preciso e quero, é atordoar-me.
Quero a embriaguez de incomportáveis dores,
a volúpia do ódio, o arroubamento
das sumas aflições. Estou curado
das sedes do saber; de ora em diante
às dores todas escancaro est'alma.
As sensações da espécie humana em peso,
quero-as eu dentro em mim; seus bens, seus males
mais atrozes, mais íntimos, se entranhem
aqui onde à vontade a mente minha
os abrace, os tacteie; assim me torno
eu próprio a humanidade; e se ela ao cabo
perdida for, me perderei com ela.

MEFISTÓFELES

Pode crer (há muitos mil janeiros
que eu ando a roer nisto), inda não houve
homem nenhum que desde o berço à cova
lograsse digerir esse fermento.
O complexo do mundo (e pode crê-lo,
pois lho afirma um diabo) é incompreensível
a todos salvo a Deus. Só ele brilha
na luz perpétua; a nós enclausurou-nos
nas trevas sem limite; e a vós, aos homens,
alterna dia e noite.

FAUSTO

E eu quero.

MEFISTÓFELES

Entendo.
O mau é que a arte é longa, e a vida breve.
Dou que não leva a mal uma lembrança.
Tome por sócio um vate, e dê-lhe largas.
Deixe-o campear nos páramos dos sonhos,
até ao ponto de ajuntar às prendas
do meu caro Doutor os dons mais nobres:
valor leonino, rapidez de cervo,
estro d'Itália, madurez do Norte.

Deixe-o ver se, por artes de berliques,
o faz a par magnânimo e velhaco;
se lhe improvisa uns férvidos amores
como os tinha em rapaz, e juntamente
segundo o plano dele arrazoados!
Figurão tal, quem dera vê-lo! Eu curvo
chamava-o logo — «Senhor Dom Mundinho!»

FAUSTO

Mas então eu que sou, se me é defeso
ao ápice aspirar da humanidade,
alvo constante de meus crus anseios?

MEFISTÓFELES

É...? o que é... e acabou-se. Erga o toitiço
emperrucado com milhões de crespos,
ponha salto em tacões maior de vara,
que não cresce uma aresta.

FAUSTO

Em mal, que é certo.
Quanta ciência em mente de homem cabe
toda em balde juntei; por mais que explore,
força nenhuma se criou cá dentro;
não cresci a grossura de um cabelo,
e em nada do infinito estou mais perto.

MEFISTÓFELES

Senhor meu! Ver as coisas desse modo
é vê-las como o vulgo. A nós compete
pensar com mais juízo, enquanto há vida
para se desfrutar. Eu t'arrenego!
Se tem por coisa sua os pés, os braços,
cabeça, et cœt'ra... ao mais de que se apossa
porque o não tem por seu? Merco seis urcos,
de seis urcos a força ajunto à minha.
Levo-me pelo ar, porque possuo
mais vinte e quatro pés. Fora tontices!
Vamos por esse mundo. O que lhe eu digo
é que um palerma que esperdiça o tempo
em perpétuo hesitar, é como besta
levada pela beiça à roda, à roda,
por mão de um trasgo em árida charneca
insulada entre flóridos pastios.

FAUSTO

E onde nos vamos?

MEFISTÓFELES

Vamo-nos primeiro
pôr já já daqui fora, que em tal sítio
só mártires. E chama-se isto vida!
uma eterna moedeira dos rapazes
e de si próprio! Deixe-me esse inferno
ao seu vizinho Pança! Há quantos anos
anda aí como o boi no calcadoiro!
e inda assim o mais fino do que sabe
não lhe é dado ensiná-lo aos estudantes.
.................................
Passos no corredor... Algum que chega.

FAUSTO

Não me é possível recebê-lo agora.

MEFISTÓFELES

Coitado! Estar à espera há tanto tempo,
e ao cabo... Não consinto. Eu lho recebo.
Faça favor, empreste-me a batina,
mais o barrete.

(Fausto despe o trajo de Doutor, e Mefistófeles atavia-se com ele)

Cáspite! Que estampa!
que vera efígies de Doutor chapado!
Deixe por minha conta o mais da festa.
Dê-me este quarto de hora; e vá no entanto
para a nossa viajata aperceber-se.

(Fausto vai-se pela porta da esquerda para o corredor.)

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