Flashback On.
Ela não sabia de nada.
Não fazia a menor ideia do que havia acontecido comigo, mas eu sequer poderia culpá-la. Também não poderia culpá-la se ela me odiasse agora, se tivesse tanto nojo e raiva de mim que quisesse se manter afastada. No final das contas, eu pedi por isso, porque agi como um cafajeste.
Eu poderia aceitar quase qualquer coisa, mas teria que fazer com que ela acreditasse que esse tempo em que nós estivemos separados foi muito mais difícil para mim do que ela imaginava. Não porque eu queria ter meu momento de mártir, mas porque ela precisava saber o mal que a falta dela me fazia.
Ao sair da Casa de Rayana no dia em que havia visto Anne pela última vez, tentei convencer a mim mesmo que manteria distância dela "para o meu próprio bem". Obviamente, aquilo se mostrou uma ideia tão imbecil que, sem exagero algum, quase me matou.
A primeira coisa que fiz ao chegar em casa foi abrir duas das minhas melhores garrafas de whisky e simplesmente acabar com elas. A culpa de ter feito o que tinha acabado de fazer e a dor que eu sentia como consequência das minhas decisões foi o que me convenceu de que encher a cara quase a ponto de entrar em coma alcoólico talvez fosse uma boa saída.
A tarefa de lidar com o desespero que minhas atitudes trouxeram mostrou-se difícil, então, como o perfeito covarde que eu sempre fui, me refugiei em várias doses.
Foi só no dia seguinte, vítima de uma ressaca que beirava à sensação da morte, que eu me dei conta de que a brilhante ideia de usar o álcool para esquecer meus problemas não tinha sido tão boa assim.
Duda ligou algumas vezes para o meu celular, talvez querendo saber o motivo que fez o chefe de uma empresa não ir para o trabalho em plena terça-feira ensolarada.
Não me importei com as chamadas e me permiti afundar na tristeza de um ex-bêbado com dores de cabeça durante todo o dia.
Para fugir das lamentações, esquecendo da estupidez em que se resumia a minha decisão de usar duas garrafas de whisky como remédio para problemas sentimentais, repeti o erro outra vez, fazendo com que o final daquele dia se tornasse esquecido no teor alcoólico em excesso que circulava em meu sangue, mais uma vez.
Não era totalmente estupidez. Na verdade, eu não me importava com o que estava fazendo. Por isso, e por saber que aquilo me fazia esquecer dos problemas, mesmo que me castigasse depois, me permiti usar esse remédio com uma maior frequência. Dia após dia, até completar uma semana.
Duda me ligava diariamente, talvez querendo saber se eu finalmente havia morrido. Atendi uma chamada sua na quarta, apenas dizendo algo como "não vou trabalhar, problemas pessoais" e desligando depois.
Esse deve ter sido o motivo pelo qual ela decidiu não ir atrás de mim até a minha casa, e eu não sabia se aquilo era bom ou ruim.
Seria bom porque eu não teria que aturar ninguém. Não que eu tivesse que "aturar" Duda, é claro, ela era minha amiga e quase sempre muito bem vinda, mas naquele momento eu não estava com cabeça para quem quer que fosse.
Eu sabia que ela me perguntaria o que aconteceu, e sabia que ela exigiria os mínimos detalhes de mim, como todas as mulheres resolvem fazer quando se dispõem a escutar. Mas falar sobre aquilo doeria muito, porque só pensar já era doloroso. Eu teria que lidar com aquilo sozinho, já que havia tomado aquela decisão sem a ajuda de ninguém.
Eu precisava ser forte e não encher a cabeça dos outros com os meus problemas.
Ainda assim, eu sentia a falta dela, porque embora eu não quisesse falar sobre o que estava acontecendo comigo, ela era possivelmente minha única válvula de escape, a única pessoa com a qual eu poderia dividir um pouco do meu sofrimento. Mesmo que isso significasse contar a ela aquela história desde o início, e mesmo que eu tivesse quase certeza de que ela me odiaria por não seguir seus conselhos, talvez fosse bom desabafar com alguém.
Desabafar tudo aquilo que eu sentia.
Toda aquela mistura de coisas que já estavam me deixando enjoado. A vontade de correr novamente para Anne e abraçá-la sem o menor cuidado, pedindo desculpas por tudo o que eu havia dito. Uma dor dilacerante por saber que ela não me perdoaria, por saber que eu provavelmente havia a machucado. A saudade agora crescente em não vê-la conforme os dias iam se passando, sem saber se ela estava bem.
Estávamos no sábado quando recebi uma outra ligação de Duda. Depois de alguns segundos pensando se deveria ou não atender, finalmente peguei o telefone e respondi.
– Alô.
– Obrigada por atender, agora sei que você ainda tem braços. O que diabos está acontecendo?
– Eu já disse, problemas pessoais.
– Eu entendi essa parte. Quero saber o que especificamente.
– Nada que você possa me ajudar.
– Me conte e eu decido se posso ou não te ajudar.
– Eu não quero te contar.
– Por que não? Eu sou sua amiga!
– Não é nada importante.
– Bruno, eu não insistiria se não soubesse que era algo importante, e você sabe disso. O que quer que seja, tem uma importância relevante, já que consegue te colocar bêbado às dez da manhã.
– Por que acha que estou...
– Sua voz está arrastada. Por favor, me conte. Eu posso tentar te ajudar.
– Me dá um tempo, Eduarda. Eu só preciso ficar sozinho.
– Até quando? Você já está há uma semana sem trabalhar. Quantas mais precisa?
Minha vontade era responder que o número de semanas que eu precisava para me recuperar era diretamente proporcional ao número de semanas que eu precisaria para esquecer Anne. Mas isso só traria discussões que eu estava tentando em evitar.
– Não sei até quando. Nunca fiz muita diferença nessa empresa, você pode tomar meu lugar em um piscar de olhos. Por que está tão preocupada com isso? Banque a chefe e seja feliz.
– Não seja imbecil, estou preocupada com você, e não com o seu trabalho!
– Não é o que parece. Você quer mandar em mim o tempo todo, mesmo sendo só minha secretária! Se quer o cargo de patrão, é só pegar. Ele está à disposição. Só não me venha mais tagarelar ordens, porque eu não aguento mais.
Não esperei que ela respondesse, desligando logo em seguida. Ela ficaria irritada comigo, eu sabia, mas aquela era minha decisão. Afastá-la de mim parecia prudente, evitando com que ela se preocupasse comigo em excesso.