Garotas também gostam de garo...

By gsllyart

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Samantha Bishop achou em suas idas à praia, um conforto e uma motivação para suportar suas tediosas férias. E... More

• Garotas também gostam de garotas •
• Epígrafe •
• Prólogo •
• Capítulo 1: A estranha •
• Capítulo 2: Encontros •
• Capítulo 3: O píer e uma mancha •
• Capítulo 4: Um temporal •
• Capítulo 5: Furta-cor •
• Capítulo 6: Paradoxo •
• Capítulo 7: Como a água flui •
• Capítulo 8: Campo de trigo com ciprestes •
• Capítulo 9: Elisa •
• Capítulo 10: Primeiro dia •
• Capítulo 11: Nada de errado •
• Capítulo 12: Fenômeno transcendental •
• Capítulo 13: Desafio •
• Capítulo 14: Rosas e algumas dores •
• Capítulo 15: Sem termos •
• Capítulo 16: Dia dos Bishop •
• Capítulo 17: Rumo a lugar nenhum •
• Capítulo 18: O resto das estrelas •
• Capítulo 19: Azul, vermelho e roxo •
• Capítulo 20: Noite da pizza •
• Capítulo 21: Questionamentos •
• Capítulo 22: Bola amarela •
• Capítulo 23: Coragem •
• Capítulo 24: Nós •
• Capítulo 25: Garotas e garotos •
• Capítulo 26: Amendoeira em flor •
• Capítulo 27: Estudos de biologia •
• Capítulo 28: Sam versus Elisa •
• Capítulo 30: Céu, sol e mato •
• Capítulo 31: Amar e ser amada •
• Capítulo 32: Coração cheio •
• Capítulo 33: A coisa sem nome •
• Capítulo 34: Entre pai e filha •

• Capítulo 29: Pintando telas •

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By gsllyart

24.05

Hoje deixei parte de mim na cama e o restante que sobrou saiu às cinco da manhã para ir ao treino. Ontem, em uma reunião com a equipe de natação, decidi que irei participar do campeonato em julho. Terei que comparecer em todas as aulas das sextas e as extras nos sábados. Admito que na euforia do momento, nem me incomodei em ter que acordar cedo, mas agora estou pagando por isso com a minha alma. Não estou arrependida, de modo algum, Carol tinha razão quando me disse que essa disputa será como uma despedida para mim. Contudo, acabei indo dormir tarde demais, quando acordei mal me reconheci no espelho.
Poderia facilmente ter saído de um apocalipse zumbi, quando na verdade somente passei a noite toda respondendo questões de física e pensando em Elisa, no meu tio, no meu pai.

Quarta-feira, após a ligação de Hernando, fiquei momentaneamente em choque com o que ouvi. Achei que ele iria me dedurar, que viria correndo até minha casa para falar com Peter. Achei que anunciaria para o colégio inteiro como um aviso, ou pior, que telefonaria para meus pais e os chamaria para comparecerem à diretoria no dia seguinte. Tantos cenários passaram pela minha mente, e em todos, tudo saía incrivelmente mal. A ideia de meu pai descobrir sobre meu namoro através de outras pessoas posou em meu ombro e tem me assombrado desde então.

Meus pulmões travaram, minhas pernas enfraqueceram. Meus ossos amoleceram como geleia, meu coração lentamente aparentou parar de bombear sangue pelo meu corpo. Eu me encorajei, repeti frases motivacionais e tentei convencer meu organismo de que não estávamos enfrentando o fim trágico do universo. Consegui me poupar de ter outra crise horrível na frente da minha namorada, mas resquícios do meu pânico se alojaram entre meus órgãos e ainda estão lá. Eu estava me sentindo tão exausta, sufocada e agoniada, que só conseguia pensar no alívio que seria apenas despejar todos os meus sentimentos em uma bandeja e entregá-la a Peter.

Elisa também não ficou muito bem quando descobriu. Parecia enjoada, levemente deprimida, como se tivesse recordado repentinamente dos riscos. Acho que ela adivinhou os meus pensamentos quando abri a porta do quarto, confrontando minhas emoções. Ela me disse que não era assim que devia ser, me disse que não queria que eu me assumisse sem pensar no que estava fazendo. O que pareceu ironia, porque eu estava pensando em tanta coisa ao mesmo tempo.

Elisa me assegurou de que tudo ficaria bem e me puxou para dentro do cômodo, nos trancando novamente. Nos aninhamos em minha cama, entrelaçamos nossas mãos e descansamos no carinho uma da outra. Fiquei alegre em tê-la comigo exatamente naquele momento.

Não sei muito bem o que se passou na mente do meu tio, mas na quinta-feira nós conversamos em particular e o mesmo me falou que não contaria a ninguém o que viu. Por um instante achei que aquilo fosse uma piada, mas ele não riu, nem me criticou com um discurso. Surpreendentemente, apenas me aconselhou a ter cuidado com esse tipo de coisa, já que ainda não falei com minha família. Também sugeriu que eu falasse com sua filha, sem ter noção de que já tinha feito isso. Eu havia me esquecido de que Loren é assumida para seus pais. Talvez Hernando tenha me poupado porque me compreende, mesmo que bem pouco.

Apesar da situação ter sido resolvida superficialmente, continuo incomodada. Não falei a Elisa, mas eu venho sentindo vontade de conversar com meu pai sobre nós duas antes mesmo de começarmos a namorar de fato. Agora esse desejo só aumentou. Estou me preparando emocionalmente para isso. Enfrentando a sensação de que estou decepcionando todos e que decepcionarei ainda mais. Eu nunca quis ser um completo fracasso, muito menos para quem me criou com tanto carinho, porém, não posso viver nas sombras deles. Antes de mais nada, não quero ser uma decepção para mim mesma.

Ao chegar em casa, a primeira coisa que fiz foi me despertar bebendo uma xícara enorme de café sem açúcar. Antes de me refugiar em meu quarto, ajudei Dakota a preparar bolinhos de mirtilo e a limpar nossa bagunça. Meu cansaço quase me arrastou diretamente para cama, mas eu sabia que se deitasse, só levantaria à noite. Não quis perder o restante do dia. Me estabeleci no chão, com uma porção de bolinhos a minha direita, a tela de pintura a minha frente e meus materiais no outro lado. Esse foi meu método de descanso, pintar até meus dedos ficarem formigando. Deixei Imagine Dragons tocando e me acolhi nos meus pincéis e potes de tinta. A arte é meu consolo.

A primeira imagem que piscou em minha cabeça foi a vista que tive no dia em que eu e Maya acompanhamos Loren até seu apartamento. O mesmo dia em que fomos ao shopping e pintei meu cabelo, que já se encontra desbotado. A visão noturna de vários prédios gigantes e o aglomerado de luzes coloridas. Havia luz na lua, luz nas janelas, luz dispersa em minúsculos pontos pelo céu. Essa cena ficou congelada em meus pensamentos, apenas aguardando o dia em que eu me permitiria pintá-la.

Tracei meticulosamente cada linha e despejei as cores pela tela. Uma bagunça de tons escuros que devagarinho tomou formatos diferentes. Um conjunto de edifícios, um ao lado do outro, um atrás do outro. De diversos tamanhos e detalhes únicos que só são perceptíveis se olhados de perto. O céu monótono em um azul claro meio acinzentado, como fica exatamente após o sol se pôr e cumprimentar a noite. E então veio o encanto proporcionado pela iluminação. Eu quase podia me ver dentro da pintura, observando tudo outra vez.

Desenhei estrelas por todos os espaços livres que lhes pertenciam. A escuridão se tornou algo mágico e misterioso, com pontos luminosos em amarelo, roxo, azul, branco, rosa e verde. Formando as aberturas das janelas, o céu estrelado e o belo luar em um suave prateado, cuja luz atingia gentilmente os topos dos prédios.

Eu passei cerca de quatro horas ininterruptas trabalhando. Quando concluí a primeira parte, havia tinta até nas minhas pernas. Só me desliguei quando Peter apareceu elogiando a pintura e me chamou para almoçar. Tive que me recompor e descer para o almoço em família, mas enquanto todos falavam, eu ainda estava presa com as estrelas em minha mente. Elas me lembraram tanto de Elisa, que acabei recordando do dia em que contou-me sobre seu pai enquanto estávamos sob o capô da picape.

As estrelas são lembranças boas dos momentos em que os dois compartilharam. Eu gostaria que ela pudesse enxergá-las sempre que quisesse, gostaria que jamais esquecesse do amor dele e do meu. Em meu íntimo, floresceu um sentimento morno e tênue, doce e frágil. Algo que gostaria de eternizar e que me deu a melhor ideia que já tive. Eu sabia o que tinha de fazer quando enviei algumas mensagens para Elisa.

Confirmei que ela estava trabalhando com Marisa no restaurante e lhe avisei que estava indo até sua casa, com a desculpa de que queria fazer companhia ao seu irmão até ela chegar. Me despedi de meus pais sem dar muitas explicações, entrei em Arya e dirigi até sua casa, sorrindo durante todo o trajeto. A região da praia sem as pedras estava movimentada. Havia um sol forte e sem nuvens esquentando as ruas entupidas de pessoas.

Ao chegar em meu destino, cumprimentei Rose e Julian, que me receberam no portão. O garoto se apressou em segurar minha mão e levar-me para dentro. Sua avó foi buscar um pouco de água para a menina afobada que mais uma vez invadia sua residência.

— Eli avisou que você estava chegando. Veio brincar comigo? O que está carregando? Quer sentar?

Sorri com sua enxurrada de perguntas e me aconcheguei no sofá, ele permaneceu em pé, olhando para o que eu carregava.

— Não exatamente. E essas são algumas coisas que me ajudarão a preparar um presente para sua irmã — segurei e abri a bolsa, lhe exibindo meus itens de pintura. — Você gostaria de me ajudar?

Julian sentou-se no chão e pegou minha mochila, analisando melhor o conteúdo, como se fosse preparar uma resposta após checar tudo.

— Você já almoçou, Samantha? Gostaria de algo para comer? — Rose retornou, entregando-me o copo d'água, e sentou-se no outro sofá, segurando uma xícara de algo que parecia café ou chá preto.

— Almocei sim, não desejo nada no momento, obrigada. Mas provavelmente mais tarde irei lhe incomodar com um pouco de café, estou usando ele de combustível hoje.

— Por que? Está cansada? Não deveria descansar? O que fará com essas tintas? — Julian continuou remexendo nos materiais, parecendo ler até os detalhes das embalagens. — Vai pintar o quê para a Eli?

— Não será incômodo. Se quiser repousar antes de começar, pode ficar no quarto dela, tenho certeza que minha neta não se importará.

Encarei-a, com um sorriso bobo querendo aparecer em minha face. De acordo com Elisa, a saúde de Rose continua melhorando devido ao tratamento, talvez até possa voltar a morar sozinha caso deseje. Embora não pareça algo que os outros gostariam, eles parecem adorar ter outra companhia.

— É melhor não, realmente preciso entregar o presente hoje. Ele precisa estar finalizado antes que ela chegue do trabalho, quero surpreendê-la — bebi a água em um único gole e me ergui. — Mas precisarei ir ao quarto mesmo, irei pintar no teto dele.

— No teto? — Ele perguntou com tanto ânimo e curiosidade, que seus olhos até brilharam. Fez eu me questionar sobre como faria o que tinha planejado. Rose parecia surpresa, mas não falou nada.

Concordei e Julian se levantou, segurando os itens amontoados em seus braços. Quando sugeri que eu mesma poderia levar, ele não aceitou.

— Sou forte para a minha idade, a Eli que disse. Posso carregar isso para você.

— Não exagere muito, na última vez que disse isso, quase derrubou tudo no chão e se machucou.

— Não se preocupe, vovó — disse, piscando para ela. — Vamos, Sam.

Rose suspirou e nós trocamos olhares rapidamente, lhe assegurei de que ficaria atenta a Julian e cuidaria dele.

— Estarei aqui na sala caso precisem de alguma coisa.

Nos despedimos dela e seguimos em um curto caminho que me ligou ao tão esperado cômodo. Ele cheirava à limpeza recém-feita e ao aroma cítrico de Elisa. Logo de início fiquei tentada a me abrigar no seu perfume e me aninhar entre aquelas quatro paredes que já me viram de todas as formas possíveis. Era o cantinho dela, mas também víamos como nosso.

Julian ajeitou todo o conteúdo da mochila sob a cômoda, separando os materiais por categoria.  Assim que estudei a tela um pouco fora do comum, estruturei mentalmente a base de como seria a arte que faria. Peguei a escada que estava nos fundos da casa e levei-a ao quarto. Depois que coloquei meus óculos de proteção, tudo que se passou em minha mente foi o quão chocada Elisa ficaria. Sinceramente, eu não sabia o que estava fazendo, foi tudo decidido rápido demais. Tentei evitar de pensar que seria um desastre e ficaria horrível, e confiei na minha capacidade, assim como ela gostaria.

Pelos móveis e chão, espalhei dois lençóis velhos que trouxe comigo e fui ajustando-os conforme avançava, evitando que fossem sujos no processo. Pintei todo o teto com uma camada de roxo escuro, quase preto, pois essa cor deixa o efeito ainda mais bonito e realista. Enquanto a tinta secava, limpamos meus pincéis e potes, escolhemos as cores comuns e as fluorescentes. Expliquei minha ideia para Julian e o que havia me motivado a pintá-la. Nós passamos longos minutos conversando sobre ele, sobre seu pai, sobre Elisa.

— Sam?

— Sim?

— Quer que eu te chame de cunhada? — Nesse instante eu travei e quase caí da escada. — Eu prefiro te chamar de Sam. Eli falou que você gosta de ser chamada assim.

— Eu gosto.

— Mas aí depois ela apareceu dizendo que vocês são namoradas e que somos cunhados — Falou sem me encarar, estava folheando um caderno. — Como quer que eu te chame?

Fiquei quieta por breves segundos, olhando para baixo e observando a pequena e loira figura sentada no chão. Não sabia que resposta lhe dar. Acho que ser chamada de cunhada seria divertido, mas parece um pouco estranho e formal demais.

— Continue me chamando de Sam, está ótimo assim.

— Certo — Ele olhou para mim e sorriu, um sorriso tão angelical quanto o de sua irmã. Se ele gostasse de receber abraços apertados, eu teria feito exatamente isso. — Sabia que a Eli escreve bastante sobre você?

— Sabia, ela me mostra algumas coisas que escreve.

— Que bom. São textos bonitos, seria chato e triste se não fossem lidos.

— Concordo totalmente. Você os leu?

— Só alguns. Parece que há muitos que não podem ser lidos por crianças.

Novamente, quase caí da escada. Não sei se era o sono, o cansaço, a surpresa e vergonha, ou tudo junto. Engoli em seco e toquei meu rosto, sentindo-o levemente quente.

— E o que acha disso? — Molhei a esponja na tinta lilás diluída e continuei pressionando-a aleatoriamente pelo teto.

— Não me importo. Eli tem me emprestado alguns de seus livros, então sempre tenho algo para ler.

— Qual está lendo?

— Acho que o título é Percy, tem outros nomes na capa, mas não lembro agora.

— Percy Jackson? São livros muito bons.

— Isso, eu tô gostando muito. Deve ser legal ser filho de um deus.

— Será? Acho que eu não gostaria muito.

— Por que?

— Porque não receberia muita atenção dele, talvez nunca o conhecesse, e também seria perigoso.

— Verdade. Mas deuses não podem morrer, eu acho, pelo menos não tão facilmente. Se meu pai fosse um, ele talvez não estivesse comigo, mas estaria vivo em algum lugar. Isso parece ser o bastante.

Meus lábios se separaram, como se algo tivesse entalado em minha garganta e querendo ser dito, mas os juntei. Meu peito apertou, nunca tinha escutado algo assim dele antes. O que eu poderia falar? Julian estava certo. Minha justificativa foi completamente refutada. Olhei para ele, não vendo uma alteração aparente em seu comportamento e semblante. Contudo, sabia que internamente, era provável que estivesse sofrendo. Remoendo memórias, sentimentos e sensações com alguém que jamais entraria pela porta novamente. Engoli o choro, se ele estava aguentando, eu também seria capaz.

— Tem razão, seria incrível ser filho de um deus.

Ele apenas concordou e nós ficamos em silêncio. Quando acabei a primeira etapa do trabalho, comecei a usar um pouco da tinta acrílica branca, da verde clara e da amarela, esguichando elas e criando formas abstratas espalhadas pela tela. Dentro de duas horas, havia uma variedade de respingos coloridos, uns minúsculos e outros bem maiores dispersos pelo teto. Com um pincel, fiz pontos brancos dentro dos pingos para criar constelações. Alguns ficaram mais fortes, por causa da cor mais concentrada que criou contraste e a impressão de que brilhavam com luz.

A primeira pausa foi um pouco longa, para descansar meus membros e recarregar minhas energias. Julian preparou sanduíches de queijo, Rose nos fez uma limonada gelada e deliciosa. Ficamos sentados no batente da última porta da casa, olhando o quintal traseiro. O espaço é pequeno, mas possui algumas plantas floridas e até uma mini-horta de temperos e folhas. Me disseram que foi Jonas que plantou tudo, e agora a família toda cuidava.

Retornando à pintura, finalmente iniciei com a tinta fluorescente branca, construindo pontilhados casualmente pelo espaço. Com o verde claro, fiz pontos ainda menores dentro das bolinhas anteriores. Repeti o processo com o roxo acrílico concentrado, criando mais pontilhados e esguichando em partes aleatórias. Uni o amarelo com o rosa, e foi essa mistura que usei. Fiz pontos de tamanhos diversos dentro das áreas roxas que criei. Posteriormente, repeti o procedimento utilizando novamente a tinta de cor verde clara. Nisso se foram mais duas horas.

Na pausa seguinte, comi biscoitos, bebi duas xícaras de café e rezei para que desse tempo de eu fazer tudo. Com o branco fluorescente, contornei suavemente os lugares que sobraram com a cor base escura do fundo. Fiz o mesmo usando as tintas verde limão e laranja, mas com essas desenhei apenas alguns poucos detalhes. Quando concluí o sombreamento dos contornos com a cor azul, eu não sabia mais se seria capaz de sentir minhas pernas pelos próximos dias.

Julian pediu para pintar também, então o ajudei a subir na escada, deixando-o dois degraus acima de mim e observando-o com cautela. Ele fez algumas estrelas pelo teto, usando o rosa. Quando foi começar a pintura do local acima da cama de Elisa, desenhou uma estrela um pouco maior que as demais.

— É para simbolizar o nosso pai. A Eli sempre costuma olhar o céu à noite, mas às vezes as estrelas não aparecem. Agora vai poder olhar aqui também.

Toda vez que Julian citava Jonas, meu coração doía como se fosse a primeira vez.

— Isso mesmo, e ela vai amar.

Às 20h, encerramos nossa obra, pintando suavemente algumas nuvens minuciosas com a tinta verde. Eu tenho consciência de que acabei completamente com meu estoque de tintas acrílicas e ainda terei que contar ao meu pai que usei misteriosamente a tinta roxa, que ele comprou achando ser preta. Quando Peter der por falta dos potes, explicarei detalhadamente e com muito cuidado.

Rose e Julian me auxiliaram com a arrumação do quarto. Guardamos os lençóis sujos, limpamos uma mancha ou outra. Devolvi a escada, lavei os materiais e caí meio morta no sofá. Tentei lutar contra o sono se apossando do meu corpo, mas perdi para ele. Julian se esticou ao meu lado e deitou sua cabeça no meu colo, eu simplesmente apaguei depois disso. Me recordo apenas de ter sonhado com um gato gigante e amarelo, e da cena de eu e Elisa correndo por uma praia muito linda.

Não sei quanto tempo permaneci adormecida, mas o cochilo não conseguiu expulsar as dores dos meus dedos e a fadiga impregnada em mim. Em algum momento, Rose apoiou um travesseiro fofo atrás de minha cabeça e nos cobriu com um cobertor. Não os senti quando foram colocados, notei somente quando abri brevemente os olhos e uma sensação de conforto me agraciou. Somente um indício da presença de Elisa me fez despertar realmente, a sua voz. Não sabia se tinha ouvido em meus sonhos ou se era real até vê-la ajoelhada na minha frente, segurando minha mão com delicadeza e me chamando.

— Sam? Amor?

Eu quis dormir novamente e novamente para escutá-la me chamar assim outras vezes.

— Quer que eu te leve para minha cama?

Deixei de encará-la e percorri meu olhar pelos arredores. Julian estava sentado na mesa de jantar, Marisa e Rose preparavam algo na cozinha. Elisa ainda vestia o uniforme do restaurante. Havia chegado há pouco tempo.

— Prefere jantar antes? — Sua mão repousou em minha bochecha. Ela me olhava como se eu fosse a pessoa mais doce do mundo. — Trouxemos macarronada e batata frita.

Bocejei e beijei a palma de sua mão. Em seguida, meu estômago reagiu à menção de comida, fazendo um barulho alto o suficiente para Elisa escutar e rir.

— Acho que isso responde minha pergunta.

Esperei ela se levantar, e então fiz o mesmo. Fiquei encarando-a pelo que pareceu uma infinidade.

— Finalmente acordada?

— Não totalmente. Mas é bom te ver.

Nós sorrimos uma para outra, como sempre fazemos, e então acomodei meu corpo no seu através de um longo e gostoso abraço. Acariciei sua nuca e parte de seu cabelo, me afogando na comodidade que o ato me proporciona. Elisa me apertou e beijou meu pescoço, me fazendo estremecer. Nossas peles, cheiros, texturas, já se reconhecem, e tão bom.

— Como foi o seu dia? — Sussurrei, ainda envolvida nela.

— Foi cansativo, fizemos várias horas extras. Hoje arrumamos as prateleiras do mercado e recebemos alguns ingredientes frescos dos fornecedores do restaurante. E o seu?

— Foi divertido e um pouco cansativo também. Mas eu gostei.

— O que fez?

— Tive treino de natação logo cedo e depois pintei pelo restante da manhã. Fiquei a tarde toda trabalhando em uma coisa incrível.

— O quê? — Nos separamos e Elisa ficou brincando com meu cabelo.

— Você verá.

Ela me olhou sem dizer nada, apenas com uma expressão curiosa. Eu sorri, depositei um beijo em sua testa e segurei sua mão, levando-a onde todos estavam.

— Boa noite, querida — Marisa pôs uma enorme travessa de macarrão sob a mesa, o aroma de molho de tomate e queijo imediatamente me alcançou. — Vai ficar para o jantar? Por favor, diga que sim.

Me perguntei se até ela havia escutado as reclamações do meu corpo faminto também.

— Boa noite — falei, indo abraçá-la. — Irei ficar sim. E sabemos que Elisa não me deixaria sair antes de comer.

— Provavelmente ela te amarraria na cadeira.

— Aposto que colocaria a comida no seu prato até criar pilhas de batata e macarrão.

— E a daria na sua boca — Julian complementou Marisa, fazendo todos rirem. Elisa conteve a risada, mas não os contrariou.

— Sim, sim. Agora vamos jantar, estou com muita fome também — disse, já colocando os pratos em seus devidos lugares. Eu fui ajudá-la, arrumando os talheres e copos. — Hoje irei me alimentar por dois.

Rose começou a preparar outra limonada e Marisa disse que ainda iria terminar de fritar as batatas, portanto, teríamos que aguardar um pouco. Nos oferecemos para ajudá-las, mas isso nos foi negado. Pediu que fôssemos descansar em um bom banho, e nos convenceu quando disse que tudo estaria pronto na nossa volta.

Julian foi correndo para o banheiro, Elisa me arrastou em direção ao seu quarto. Eu estava completamente entregue ao nervosismo. Já estava tarde o suficiente para as tintas estarem quase totalmente secas e prontas para brilharem no teto como uma complexa, intensa e linda galáxia. Mas também poderia não funcionar, ou não ser do agrado dela. Quando permitiu que eu entrasse em seu quarto, ela não sabia que eu acabaria pintando nele.

Ao Elisa abrir a porta, eu fechei meus olhos, implorando para que no exato minuto em que encarasse o teto, tudo estivesse perfeito como estava em meus pensamentos.

— Por que está de olhos fechados?

Abri um deles por um segundo, encontrando o quarto com a luz acesa e o teto levemente cintilante. A porta estava entreaberta, ela ainda não havia olhado para dentro, estava me observando ao invés disso. Eu não lhe respondi, apenas alcancei o interruptor e apaguei a luz.

— Entre.

Elisa ergueu as sobrancelhas e não disse nada, só me obedeceu. Com o cômodo totalmente exposto, senti o ar pesar e não sabia por qual razão. Estava novamente com a visão afetada, com meus olhos cobertos pelas minhas mãos. Esperei ela dizer algo, qualquer coisa seria aceitável. Aguardei algum protesto, um comentário, ou até mesmo xingamentos. Mas o silêncio foi tão profundo que me perguntei se ela não havia parado para observar o teto colorido que horas atrás era branco. Impossível não perceber a diferença.

O único som que me atingiu foi o de choro, um choro baixo e controlado, que me rodeou e quase me derrubou. Eu parei de respirar. Não sabia se era isso que estava esperando.

— Meu amor? Te deixei triste? — Já estava com o olhar grudado nela, cujo corpo estava estático observando a pintura.

Elisa olhou pra mim, a iluminação do corredor alcançava onde estávamos e me fez visualizá-la parcialmente. Lágrimas desciam de seus olhos brilhantes por suas bochechas e se perdiam trilhando caminhos diferentes. Eram tantas, ela nunca tinha chorado dessa forma comigo ao seu lado. Fiquei sem chão. Elisa apenas balançou a cabeça em sinal de negação e me abraçou. Seu peso estava tão leve em meus braços que me fez questionar se ela cairia. Acariciei suas madeixas e permanecemos quietas até o momento em que começou a me agradecer repetidamente.

— Obrigada, obrigada, obrigada.

Sua voz parecia um sussurro em meio ao choro que continuou se estendendo. Mal notei quando comecei a chorar também, percebi ao sentir o tecido um pouco úmido de sua camisa. Distribuí selinhos pelo seu ombro e fui subindo até chegar a sua face. Beijei as maçãs de seu rosto corado, a ponta vermelha de seu nariz, seus lábios rosados. Beijei suas têmporas, sua testa e suas pálpebras. Passei as pontas de meus dedos na região abaixo de seus olhos, enxugando suas lágrimas.

Elisa sorriu, competindo com o brilho no cômodo. Voltamos a encarar a pintura e vagarosamente fui mostrando os principais detalhes, até chegarmos à estrela maior que Julian fez. O teto superou todas as minhas expectativas. Ele tornou-se parte de nosso universo registrado em tinta.

Após mostrá-la cada lugar pintado e contar sobre como cheguei até aquela ideia, tomamos banho e nos juntamos a todos no jantar. Quando me recordei da existência do meu celular, havia tantas notificações de mensagens e ligações, que levaria horas para olhar e responder. Decidi ignorar e aproveitar a felicidade estampada no rosto de Elisa. Eu esqueci do resto do mundo durante os minutos que passamos juntas.

Às 23h retornei para casa, apesar de boa parte de mim apenas ter desejado aceitar o convite da minha namorada para dormirmos juntas. Eu havia sumido e esquecido de enviar mensagem para meus pais, isso é grave demais. Eles não ficariam satisfeitos, se além disso, eu também dormisse fora. Como o esperado, fui recebida com uma sequência avassaladora de perguntas. Por que estava suja de tinta? Por que não atendi suas chamadas? Por que não falei que iria passar horas fora?

Os dois me obrigaram a lavar as louças que deixaram na pia. Pude ouvir Dakota rindo enquanto admirava a bela cena. Ao me questionar o que tinha acontecido, lhe falei resumidamente sobre minha ida à residência de Elisa. Eu estava tão radiante que poderia lavar o dobro e ainda limpar a casa inteira. Minha irmã sabe sobre meu namoro e gosta quando eu a mantenho atualizada. Acho que ela poderia passar horas me escutando sem nem olhar o relógio. E eu poderia fazer o mesmo, não me importo de falar sobre nós duas e o que temos. O que eu e Elisa compartilhamos aquece todas as partes do meu ser.

Sei que não é possível escolher a dedo a quem iremos destinar nosso afeto amoroso. Mas podemos escolher se iremos manter o sentimento ou largá-lo para o esquecimento. Eu escolhi manter o meu, e ela fez o mesmo. Nós aceitamos o que achamos merecer. Estamos juntas porque esse amor calmo, bom e gentil é o que reconhecemos como nosso. Eu irei continuar reconhecendo-o até onde nos for possível vivê-lo. E anseio que isso signifique um período infindável.

Ao finalmente me aconchegar em minha cama,
Ninfadora invadiu meu espaço e deitou-se bem em frente ao meu rosto, ronronando e me encarando como se conhecesse todos os meus pecados. Eu sorri, fechei os olhos, pensei em Elisa e adormeci.

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