Bem quando eu acho que meu dia não pode ficar pior, o ônibus que pego todos os dias, ao final da aula, para voltar para casa simplesmente resolve quebrar. Então, como se fosse pouco, começo a sentir os primeiros pingos de água baterem contra a minha cabeça. Fecho os olhos, rezando para não ser o que estou pensando, cruzo os dedos esperançosa e só então olho para cima. Meu rosto cai na mesma hora. Nuvens escuras e pesadas passam um aviso claro de que vão se desmanchar em água gelada muito em breve. O que, para a minha infelicidade, significa um banho que vai me deixar doente.
Maravilha!
É tudo o que eu precisava agora. Quem se importa em pegar um resfriado ou até uma pneumonia?
Odeio perder aula. Não me lembro de ter perdido um único dia. Confesso que iria até numa maca, se fosse necessário, e caso eu frequentasse um colégio onde Karin Uzumaki não existisse. O fato é que desde que eu pus os pés naquele maldito instituto, seus amigos idiotas e ela me tornaram o alvo preferido das brincadeiras de mau gosto, fazendo questão de deixar claro a minha insignificância patética. A bolsista míope e esquisita que não tem dinheiro para gastar com viagens de férias e roupas luxuosas, porque tem outras prioridades. E eu me odeio por ser tão covarde. Odeio baixar a cabeça e aguentar calada os insultos. Odeio essas pessoas que se acham superiores aos outros porque são ricas. Será que são mesmo superiores?
Os pingos da chuva me trazem de volta ao presente, embaçam as lentes dos meus óculos. Travo uma batalha interna sobre enfrentar a chuva ou esperar na área coberta do ponto para vê se outro ônibus aparece no lugar. Meu pequeno impasse é resolvido no instante seguinte, quando as pessoas, que também esperam esse ônibus, começam a se dissiparem resmungando, enquanto seguem a pé.
Suspiro, olhando inconformada em volta. São cerca de uns caralhocentros metros do centro de Konoha até o Brooklyn, que, em outras palavras, significa uns mil quarteirões. Mas eu bem que posso reduzir para uns novecentos e noventa e nove se eu atravessar uma viela emergencial que sai quase em frente a minha casa. O problema é que a noite fica assustador, escuro e, às vezes, alguns garotos resolvem fumar nele. Ajeito a mochila nos ombros, bufando rendida e me obrigando a caminhar também.
É final de tarde. Talvez passe das cinco e meia. É difícil saber. Meu celular descarregou há um tempo. Tsunade vai ficar preocupada se chegar primeiro e não me encontrar em casa. Vai ligar, cair na caixa postal e pensar um monte de besteiras. Oh céus, ela vai pirar. É capaz de chamar a polícia.
Minha madrinha consegue ser exagerada quando quer. Só falta me sufocar com seus cuidados. “Tenha cuidado com isso. Tenha cuidado com aquilo. Já comeu? Que horas vai estar casa? Está com cólicas, quer que eu faça um chá?” É sempre assim. Como uma verdadeira mãe coruja faria. Ela é, na verdade. A mãe que eu conheço, que cuida de mim desde que meus pais morreram no acidente. Eu tinha apenas alguns meses de vida, por isso não tenho lembrança alguma deles. Somente uma foto que Tsunade guardou e me entregou quando eu tinha cinco anos.
Todos os anos, no aniversário de mortes deles, levamos flores. Lírios. As preferidas de mamãe. Tsunade me disse no primeiro ano que pedi para visitá-los no cemitério de Otto. Às vezes, sinto falta deles, ainda que não tenha lembranças às quais eu possa me apegar para sentir saudade. É impossível não pensar em como seria chegar em casa e encontrar um pai e uma mãe esperando, ou deixar de sentir um pouco de inveja das garotas que têm essa sorte. Todavia, eu procuro não pensar muito nisso. Tsunade fica triste, acha que não está fazendo um bom trabalho. Não quero magoá-la. Então, procuro empurrar para o fundo de minha mente.
A chuva aumenta gradativamente, as ruas estão cada vez mais desertas. É estranho o centro estar tão pouco movimentado. Tem sempre pessoas andando de um lado a outro, presas demais em seu mundo de preocupações para enxergar além de si mesmos; barulho de sirenes, buzinas, apitos, artistas de ruas, ambulantes gritando freneticamente. Um verdadeiro caos. No entanto, hoje está parado demais para o meu gosto. Um ou outro carro passando por mim, algumas pessoas com guarda-chuvas, e só. Aperto os braços em torno de mim, amaldiçoando o ônibus, a empresa e o pobre do motorista.
Parece que ter um dia péssimo na escola não é o suficiente.
Estou prestes a dobrar a esquina para entrar no meu bairro, quando um arrepio, que não tem nada a ver com o frio que estou sentindo, corre pela minha espinha. Paro um instante, antes de girar parcialmente o corpo e olhar para trás. Desconheço o motivo de fazer isto. Não é surpresa ver que tem alguém parado a alguns metros. Mas não é isso que chama a minha atenção. As lentes embaçadas dos meus óculos não estão me ajudando a enxergar com clareza a pessoa. É um homem, eu acho. Todo de preto. Não parece se incomodar com a chuva. Arrisco dizer que suas mãos estão dentro do casaco. Ele está olhando para mim? Minha garganta seca, enquanto minha pulsação aumenta.
Fico olhando para ele por longos segundos ao invés de seguir para casa. Sair dessa chuva. O que está acontecendo? Um trovão soa alto, me assustando. Olho para os céus, iluminados por um relâmpago, antes de encarar novamente aquela direção. Não encontro ninguém. Volto meu corpo totalmente, forçando meus olhos a enxergarem alguém que não está mais lá. Eu imaginei? Tinha alguém lá, em pé. Não estou ficando louca. Eu vi. Será... Será que foi... Ai, meu Deus... Uma alma?
Saio praticamente correndo, dessa vez para chegar logo em casa. Uma alma. Será?
A entrada do beco surge, e eu fico indecisa sobre andar mais um pouco ou cortar caminho. Mordo o lábio, nervosa, olhando para os lados. Está mais do que deserta essa parte do bairro, os postes da rua dando uma pouca iluminação ao beco. Pelo menos, os garotos não estão fumando aqui hoje. Vamos lá, não seja medrosa. Não seja medrosa, Sakura. São apenas alguns passos e voilà. Vai chegar mais depressa. Respiro profundamente para ganhar coragem.
A primeira coisa que sinto quando dou alguns passos, é uma sensação de estar sendo observada. Mas se não tem ninguém aqui, por que então? Engulo em seco, avançando. Não é tão comprido, um pouco estreito, tem algumas latas de lixo tampadas e caixas de papelão espalhadas. Tento não pensar em nenhuma bobagem. A chuva diminuiu. Em compensação estou tremendo até o último fio de cabelo, fora a batedeira irritante dos meus dentes.
Sabe quando temos aquela impressão de que quanto mais se anda mais o caminho fica longo? Pois é, estou com ela agora. O silêncio não é mais ensurdecedor — por causa do som dos meus dentes, minhas pisadas e o sereno fino. Quase morro de susto, quando um gatinho salta de um dos telhados e cai em cima da tampa de uma das latas de lixo. Minhas pernas tremem, e só quero mesmo chegar de uma vez em casa.
Dois passos e vislumbro a figura alta e vestida de negro se materializar como um fantasma na minha frente, tapando a saída. Interrompo a caminhada, minha respiração e, até mesmo, as batidas no meu peito. Não vejo o rosto, apenas enxergo o brilho vermelho em seus olhos. Morte. É o que grita nas íris vermelhas. Ele vai desaparecer de novo? Está me seguindo? Ele me olha, me olha e me olha por infindáveis minutos. Eu conseguiria fugir? Tento não entrar em pânico. Ele não é um ladrão, certo? Um assassino? Uma alma?
— Mon âme... — a voz aveludada é atrativa aos meus ouvidos. Estremeço. Alma penada fala? — Finalmente te encontrei.
Ele está me procurando? Para me levar com ele? Eu não quero morrer. Penso em Tsunade.
— Estava... Me procurando? Quem... Quem é você?
Ele se aproxima lentamente. Recuo com medo.
— Não sabe quem eu sou? — pergunta e há... Desapontamento? — Não se lembra de mim?
— N-Não. Quem é você? — Volto a perguntar, ainda recuando. Somente para no segundo seguinte sentir as minhas costas baterem contra a parede áspera de tijolos vermelhos. Com ele à minha frente, as mãos geladas apertando os meus braços descobertos, a respiração fria soprando contra o meu rosto e se misturando com a minha.
Como chegou tão rápido? Onde foi parar a minha mochila?
Ele está tão perto. Quase grudado em mim. Seus olhos escarlates queimando os meus, intensamente. O único ponto que enxergo de sua aparência. Engulo em seco tentando empurrar o bolo que se firmou na minha garganta e que me impede de respirar direito.
— Sinto o cheiro do seu medo — ele diz, como se estivesse distraído, ignorando as minhas perguntas, como se... Aspirasse o meu cheiro. — Não precisa ter medo, mon âme, não vou te machucar. Nunca.
Machucar. Machucar. Machucar. A palavra fica rondando a minha mente.
— M-me solta! — Consigo murmurar, sem forças para me debater.
Ele me ignora.
— Não sabe o quanto te procurei. — Ele é louco? Do que ele está falando? Procurou-me para quê? Quero perguntar isso a ele, no entanto, travo, a língua pesada na boca.
O rosto afunda no meu pescoço. O nariz e os lábios roçando a pele exposta, arrepiando-me. Mordo o lábio para não gemer. Não entendo essa reação. Quero gritar. Debater-me. Porém, isso me parece tão distante agora. As forças simplesmente não existem no meu corpo.
— Teu cheiro é tão bom, mon âme. Não sei como consegui ficar durante tantas décadas, sem você — disse, enquanto beija o meu pescoço. — Sem sentir o teu cheiro, o gosto da tua pele. Está de volta para mim e dessa vez não vai escapar. — Minha cabeça gira. Do que ele está falando? — Quero saber tudo de você. Exatamente tudo. Por isso, vou beber de ti agora.
Beber de mim? Sinto um calafrio. A boca continua um trajeto incansável pelo meu pescoço. Cheirando, beijando. Fecho os olhos, suspirando, me rendendo.
Então, sem que eu espere seus dentes cravaram na minha pele. Abro os olhos, gritando, com a dor profunda se espalhando por essa região. Dói como se ele tivesse rasgando a carne do meu pescoço. Procuro forças para me debater. Estou imobilizada, vendo um desconhecido sugar o meu sangue e sem qualquer chance de defesa.
Que tipo de pessoa bebe sangue?
Ele geme. Sinto-me tonta. Tudo ao redor gira, virando uma massa disforme, enquanto uma dormência se espalha por meu corpo. Então, nada mais existe. Apenas escuridão e, por fim, a inconsciência