Eu e Coruja estávamos sentados às margens do lago, enquanto a construção se erguia do outro lado. As paredes já estavam todas levantadas e os pedreiros trabalhavam com disposição. Vi um homem andando no meio deles com um papel que mais parecia um cartaz, parecia ser o Higor, mas meus óculos estavam sujos demais para que eu pudesse ver melhor.
Respirei fundo e tirei meus óculos, os limpando na minha camisa de uniforme, para depois recolocá-los e levar meus joelhos até meus seios, os abraçando.
- Meu pai quer inaugurar pelo menos a praça de alimentação até março. - Coruja quebrou o silêncio.
O olhei pelo canto dos olhos, observando a forma como ele estava praticamente deitado no chão, se apoiando em seu cotovelo.
- E o shopping todo? - perguntei.
- Até o fim do ano que vem, mas isso vai ser bem mais difícil. - sorriu.
- É. - desviei o olhar - Ele não vai ficar bravo por te ver aqui comigo?
- Talvez. - ouvi sua voz se aproximar - Mas, eu prefiro estar aqui com você do que com um monte de idiota na escola.
- Eles não tinham o direito. - chutei um pedaço de grama solta, pensando no que havia acontecido - Nem se eu tivesse transado com o delegado eles teriam direito. Não é justo.
- Claro que não teriam, ninguém tem. - senti sua pele do braço roçar no meu, indicando sua proximidade - Você pode transar com quem quiser e isso não dá direito de ninguém te tocar sem a sua permissão.
- Eu nunca transei. - resmunguei, sentindo uma raiva estranha e me arrependi de ter falado aquilo ao sentir meu rosto esquentar.
Por algum motivo, fiquei com mais raiva. Eu não deveria ter vergonha de ser virgem, tinha apenas 16 anos.
- Ah. - foi a única coisa que ele disse - Você... ah. Ok. - ouvi seu suspiro e me virei para olhá-lo, arqueando uma sobrancelha - O que? - me olhou confuso.
- Nada. - dei de ombros, suspirando e colocando minha cabeça entre os joelhos.
- Como você sabe, eu tenho uma irmã. - o ouvi - Ela já passou por várias coisas parecidas com o que te aconteceu... Quando eu tinha 15 anos e ela 18, um cara que ela ficava tentou transar à força com ela em uma festa. - respirou fundo - Eu nunca fui de brigar, mas, nesse dia, eu dei alguns socos no cara e levei um monte de socos também. Foi a primeira e última vez que briguei... até hj. - senti minha garganta pinicar e levantei a cabeça para vê-lo - Na verdade, mal comecei brigar e o professor chegou, só acertei o Diego uma vez. - me olhou atentamente - O que quero dizer é que vi você olhando para aquela barra de ferro e imagino o que você tenha pensado; porque quando aquilo aconteceu com minha irmã, ela me disse que queria que o cara morresse.
- Eu não pensei isso. - comprimi os lábios - Mas, queria que eles se machucassem.
- Eu imagino. - suspirou e estendeu o braço, como se fosse me abraçar, mas parou no meio do caminho, um pouco apreensivo - Eu posso te abraçar? - assenti, tentando abrir um sorriso. Seu braço passou pelo meus ombros e me puxou para mais perto, me fazendo deitar a cabeça em seu ombro e olhar nossos pés ao lado um do outro - Estou prestes a te confessar um dos momentos mais sombrios da minha vida.
- Minha vida é sombria. - inspirei seu cheiro, me sentindo segura - Fique à vontade.
- Todos temos um lado sombrio, não é? - assenti e ele acariciou meu ombro - Me senti muito impotente ao ver minha irmã sofrer, eu tinha apanhado muito mais do que batido no cara... não era suficiente para mim. Eu queria que ele sofresse o dobro que minha irmã estava sofrendo. - seu corpo ficou rígido com as lembranças - Contratei pessoas para espancar ele. - arregalei os olhos, mas não falei nada - Ele ficou completamente machucado, teve que ir para o hospital e seu rosto ficou irreconhecível por alguns dias. Pensei que aquilo faria minha irmã se sentir melhor, mas não fez. Nem eu me senti melhor. Não me senti como se estivesse protegendo ela... me senti a pior pessoa do mundo, muito pior que ele. Mas, uma pequena parte minha ficou satisfeita, mesmo que isso me fizesse sentir muito pior.
- Valeu a pena? - perguntei, pegando em sua mão que acariciava meu ombro e entrelaçando nossos dedos.
- Não, nem um pouco. - respirou fundo - Ele não prestou queixa porque as pessoas que contratei o ameaçaram. Camille perguntou se eu tinha algo haver com aquilo e jurei não ter feito nada. Ela nunca mais tocou no assunto, mas ela sabe que fui eu. Meus pais também sabem, talvez eles nunca mais tocaram no assunto porque sabiam que já estava sendo difícil para mim... não sei.
- Ainda é difícil para você, não é? - ergui os olhos, encontrando os dele. Ele assentiu, mordendo o lábio inferior com força - Do mesmo jeito que não valeu a pena contratar aquelas pessoas, não vale a pena ficar se culpando por isso... A culpa mata partes da gente todos os dias.
- Você devia ouvir seus conselhos. - sorriu, acariciando meu rosto e beijando a minha testa levemente.
- Treinador não joga, certo? - brinquei e comecei a rir, colocando a mão em seu pescoço.
- Contra fatos, não há argumentos. - seus lábios desceram até meu nariz, encostando nele. Fechei os olhos, acariciando seu pescoço e seus ombros e, por um momento, pensei ter sentido ele estremecer, como se estivesse com medo ou inseguro - Zumbi?
- Oi. - suspirei, erguendo um pouco a cabeça e encostando meu nariz no seu, sentindo sua respiração acelerada. Minhas mãos estavam tremendo, mas, impressionantemente, não fiquei com vergonha dele perceber isso. Estava bom demais ficar daquele jeito com ele.
- Nosso encontro pode ser hoje à noite?
- A gente trabalha.
- Que porra... eu ia te beijar agora, mas meu pai está olhando para cá. - resmungou e senti meu rosto queimar ao ouvir aquilo, só queria cavar um buraco e ficar lá dentro para sempre.
- Ai, não. - respirei fundo - Que vergonha.
- Aprendizado de hoje: não vir para o lago no horário de trabalho do meu pai. - balançou a cabeça, encostando os lábios na minha bochecha e senti seu sorriso - Vamos faltar ao trabalho, a gente fala que está com cinomose.
- Cinomose é doença de cachorro, Coruja. - abri os olhos, com um grande sorriso.
- É? - arqueou a sobrancelha - A Storm teve então, porque essa foi a primeira doença que veio à minha cabeça.
- Provavelmente. - ajeitei meus óculos, olhando para o outro lado do lago, percebendo que Higor realmente nos observava - Acho melhor a gente ter esse encontro de ir para outra cidade quando eu tirar essa bota ridícula do pé.
- Quando você vai tirar?
- Daqui um mês mais ou menos.
- Ah, não. - soltou um gemido de frustração e se afastou, deitando na grama - Isso é tempo demais, Zumbi. Tempo demais.
- Nossa! - olhei para minha mochila, me lembrando de algo - Eu me esqueci de ler a carta que você entregou ontem, quando cheguei em casa fui ajudar Tissa e...
- Tudo bem. - abriu um sorriso tranquilizador - Eu estava apenas agradecendo por você ter voltado a me mandar cartas e te convidando para sair... Mas, consegui fazer isso pessoalmente.
- Acho que vou ler agora. - peguei a mochila e comecei a procurar.
- Não! - se sentou rapidamente, puxando minha mochila - Eu sou bem cara de pau, admito isso... mas, tenho vergonha de algumas coisas também.
- Você tem vergonha? - arqueei uma sobrancelha.
- Claro. - abraçou minha mochila.
- Vergonha do quê?
- De você ler a carta na minha frente. - respondeu como se fosse óbvio.
- Mas não tem porquê você ter vergonha disso. - sorri, tentando puxar a mochila.
- Falou a menina que mais sente vergonha e fica vermelha por isso. - enrugou o nariz, puxando a mochila de volta.
- Eu não sou assim. - fiz uma careta, mesmo sabendo que podia ser um pouquinho daquele jeito.
- Ah, não? - arqueou uma sobrancelha, abrindo um sorrisinho de lado.
- Claro que não. - puxei a mochila com mais força, conseguindo pegá-la.
- Aham, e eu não gosto de você. - revirou os olhos, se deitando novamente e escondendo o rosto com as mãos.
- É, eu também não gosto de você. - respondi, achando a carta e me deitando ao lado dele.
- O que eu falei foi uma ironia, você percebeu, não é? - virou a cabeça, me olhando por entre os dedos que tapava seus olhos.
- Claro. - desviei os olhos para o céu azul, mordendo minha bochecha internamente.
- Então, isso quer dizer que você...
- Talvez. - dei de ombros e abri a carta.
Zumbi,
Não sei nem expressar a alegria de poder te escrever novamente. Como já te falei no trabalho, aguardo ansiosamente tudo que venha de você. Se eu escrevesse tudo que penso e aguardo, provavelmente, você se afastaria de novo. Vou ficar quietinho.
Enfim, claro que não me importo com o que os outros dizem de você, não gosto de fofocas e boatos desse tipo. A história nunca é contada toda e sempre a pior parte fica para o mais fácil de ser atingido. É aquele negócio: a corda sempre arrebenta para o lado mais fraco.
Não estou falando que você é fraca. De jeito nenhum. Você é, provavelmente, a pessoa mais forte e incrível que já conheci. Pessoas ruins gostam de destruir pessoas boas... não deixe que te destruam.
Então, eu vou tentar fazer isso pessoalmente, mas, caso não consiga, já vou deixar registrado aqui e aproveitar que você deu uma pequena abertura para que eu possa me aproximar. Lá vamos nós:
Saphira, a zumbi que roubou meu coração, você aceita sair comigo?
Sim, um encontro.
Eu devia ter deixado de ser um covarde e te convidado no dia que joguei aquela bolinha de papel na sua cabeça, porque, naquele dia, eu sabia que precisava te conhecer. Devia ter deixado de ser um covarde e não ter ficado com uma amiga sua, assim, não teria te afastado. Por isso, estou sendo corajoso agora. Espero que você também seja corajosa e aceite sair comigo.
Nada nos impede mais.
Nada nunca nos impediu, só nós mesmos.
Coruja.
Respirei fundo e o olhei pelo canto dos olhos. Ele estava certo. Sorri e passei a mão em sua testa, tirando seus cabelos lisos dali e fazendo ele rir. Então, peguei meu caderno e comecei a escrever.
Coruja,
Desde o começo, sempre soube que você me fazia bem. Mas, agora, olhando para você, sentindo seu pé encostando no meu, depois de sentir nossas testas encostadas e seu cheiro... é, eu gosto de você. Há alguns minutos você insinuou isso e acho que você queria ouvir eu dizer e sim, eu gosto. Queria ser corajosa o suficiente para dizer isso olhando em seus olhos, como você faz comigo. Mas, me desculpe, algo me impede de fazer.
Porém, eu estou escrevendo e te olhando e sei que você deve ler isso na minha frente também, assim como fiz, então isso me torna meio corajosa, né?
Muito obrigada por não ligar para o que as pessoas falam, muito obrigada por me defender na escola, muito obrigada por ter contado um pouco mais da sua vida hoje para mim. Muito obrigada por gostar de mim.
Como já disse, vamos ter sim nosso encontro, mas eu falei para esperarmos eu tirar essa bota, porque realmente quero aproveitar esse momento. Não quero ter que sair com você mancando e andando mais lenta que uma tartaruga. Quero que seja legal. Você entende isso?
Mas... a gente pode ir juntos para a festa da Kayla, não é? Tipo, sei que ela mora ao seu lado, mas se você quisesse... Aí não sei. Não sirvo para chamar ninguém para sair.
Enfim... talvez poderíamos ficar juntos na festa da Kayla. Ou... estou nervosa porque você não para de me olhar. Acho que quero dizer que poderíamos fazer companhia para o outro na festa, se isso fizer algum sentido...
Não sei o que estou escrevendo mais.
Só não quero me impedir de fazer algo que quero.
Zumbi.
Tirei a folha do caderno e a dobrei, respirando fundo. Coruja estendeu a mão direita e com a esquerda, bateu na palma da sua mão, pedindo a carta. Abri um sorrisinho sem graça e coloquei o papel em sua mão, levando minhas mãos até meu rosto, tentando me esconder.
Agora entendia a vergonha dele.
Depois de alguns segundos, senti sua mão nos meus cabelos. Levantei a cabeça, vendo que ele observava uma mecha ondulada, com um leve sorriso. Por algum tempo, ele apenas ficou olhando para meu rosto, seus olhos descendo vez ou outra para minha boca, me fazendo balançar os dedos das mãos com ansiedade.
- É, podemos fazer companhia um para o outro na festa. - falou, colocando uma mecha do meu cabelo atrás da orelha - Eu te busco na sua casa e vamos juntos, o que acha?
- Acho muito bom.
Ficamos mais alguns minutos ali, apenas aproveitando a companhia um do outro, depois, ele me acompanhou até o asilo e entrou rapidamente apenas para cumprimentar a minha avó. Falou que não poderia ficar, mas que logo voltaria para vê-la, saindo em seguida.
E, no dia seguinte, Diego e os outros três meninos apareceram na escola andando de uma maneira esquisita, com as pernas meio abertas. Então, Kayla me falou que, acidentalmente, pó de mico havia caído em suas cuecas, que provavelmente aquilo devia ter causado feridas por causa da coceira e não era para mim fazer perguntas sobre isso.
Fiquei boquiaberta e admito que uma parte minha adorou ver aqueles meninos andando daquela forma, ainda que Kayla nunca tenha me explicado o que aconteceu de verdade.