(1954 palavras)
Ash
Eu ainda não sabia como reagir diante das alterações de humor de Felicity, mas uma coisa era certa: o fato de imaginá-la chateada comigo era doloroso. No momento em que falei que tudo o que ela significava para mim era a esperança de trazer Ariela de volta, confesso que seu olhar triste sacudiu alguma coisa dentro do meu ser. Afinal de contas, por quê eu havia dito aquilo? Tudo bem que este havia sido o principal motivo desde o início, mas agora... Talvez eu realmente a considere como uma amiga. De que outra forma eu me preocuparia tanto com seu bem-estar?
Sei que demorei muito tempo para deixar alguém fazer parte da minha vida novamente, nunca mais fiz amizades pelo fato de que sempre todos acabam sofrendo por minha causa, mas Felicity de alguma forma mudou isso. Eu poderia mentir para mim mesmo, mas isso não seria justo com ela, não seria justo fingir que não me importo e que ela é só uma serva, quando na verdade gosto muito de sua companhia e amizade.
Inspiro pausadamente toda a água que consigo e solto de uma vez, na tentativa de aliviar toda a frustração que eu sentia nesse momento. Eu era um tolo! Como pude deixar isso acontecer? Por minha causa ela havia sido ferida e quase morta! Eu não podia deixar isso acontecer novamente, tinha que mantê-la longe e segura de todo esse caos, e é por isso que rejeitei seu plano estratégico.
Devo confessar que era um bom plano, mas não quero seu nome relacionado a nada que possa despertar a ira do assassino em sua direção. Desta forma, fiz questão de deixá-la descobrir por si mesma quem é o general encarregado pela proteção durante a Festa dos Sete Mares, assim eu mesmo poderia conversar com ele antes dela.
Saio do castelo e nado em direção a área de treinamento do exército marinho real, avistando logo de cara o general Kristoff analisando o combate das tropas. Aproximo-me com calma e o chamo:
— General Kristoff.
Ele se vira em minha direção e quando nota quem sou, faz uma reverência demonstrando seu respeito.
— Majestade, a que devo a honra de sua visita?
Kristoff tinha a mesma altura que eu, mas não poderíamos ser mais diferentes. Seus olhos eram castanhos enquanto seus cabelos de um tom muito vivo avermelhado que combinava com a cor de sua cauda igualmente vermelha. Ao contrário de mim, seu humor era sempre alegre e divertido, e o sorriso só deixava seu rosto nas horas de tensão extrema.
Mas apesar do jeito bobo e descontraído, era um bom general, íntegro em suas convicções, respeitável com todos os seres do mar e nunca se vangloriava diante dos menores. Além disso, muito capacitado para o cargo, apesar de ser melhor em combate do que em planos estratégicos. De qualquer maneira, suas qualidades sobressaíam sobre os defeitos e isso era um dos motivos pelos quais o escolhi como general. Outrora, havíamos sido grandes amigos, mas acabei me afastando após todas as mortes que me rodearam.
— Eu precisava conversar com você por um momento. Na verdade, te pedir um favor — falo me aproximando ainda mais e abaixando o tom de voz.
— Um favor? — ele parecia surpreso com minhas palavras, mas logo se recompôs — É claro que darei o meu melhor para fazê-lo, majestade. Do que se trata?
— Provavelmente daqui alguns minutos você receberá uma visita um tanto... inusitada, digamos assim.
— Uma visita?
— Sim, o nome dela é Felicity, é a enviada de Karpata.
— Oh, eu ouvi falar muito sobre ela pelos arredores do palácio, dizem que é uma figura! — ele diz rindo, como se lembrasse das histórias que ouviu.
— É ela... ela é incrível — respondo sorrindo sem perceber.
Kristoff me observa com um sorriso estranho no rosto, mas logo diz:
— E o que ela virá fazer aqui? — ele pergunta desconfiado.
— Ela criou um plano estratégico para a segurança da Festa dos Sete Mares e quer a minha aprovação. Então eu disse que ela precisaria te convencer.
— E onde é que entra o favor que você quer?
— Quero que você dificulte ao máximo as coisas pra ela, não a deixe conseguir o seu consentimento!
— O plano é tão ruim assim?
— Na verdade, o plano é muito bom.
— Então eu não entendo seu pedido, se o plano é bom, poderíamos usá-lo. Você e eu sabemos que o meu plano não ficou dos melhores.
— Eu não a quero envolvida com isso — falo convicto, talvez até um tanto exaltado.
— Ela deve ser bem importante pra você, afinal veio aqui pessoalmente sendo que poderia apenas ter mandado alguém — ele responde estreitando os olhos — pensei que esse coração de pedra jamais se abriria novamente para o amor...
— Não tem nada a ver com isso! — respondo endurecendo meu semblante — ela é apenas uma amiga que está me ajudando com alguns assuntos pessoais. Preciso da atenção dela voltada para este assunto e não para a segurança do palácio.
— Ei, ei, calma aí — ele fala erguendo as mãos em sinal de rendição, enquanto ri divertido — está tudo bem, não está mais aqui quem falou.
— Você vai ou não fazer o que te pedi? — pergunto impaciente.
— Eu darei o meu melhor, mas se ela for tão implacável quanto ouvi, temo que vai ser uma tarefa difícil.
— Então faça como falou, dê o seu melhor!
Viro as costas e saio nadando de volta para o palácio com a cabeça fervendo em raiva. Como ele ousa insinuar que eu teria um suposto interesse amoroso na Felicity? Isso... Isso está totalmente fora de cogitação! Felicity é apenas uma amiga a qual tenho um certo carinho de amigo, nada além do que isso!
Felicity
Nado pelos corredores do palácio à procura de alguém que, com certeza, saberia me informar o paradeiro do tal general. Avisto de longe Melody e começo a nadar rapidamente para alcançá-la, mas por obra do destino — ou do meu azar — sou interceptada por Caden no meio do caminho.
— A senhorita parece com pressa — ele fala sorrindo.
— Acontece que estou mesmo — respondo com um sorriso amarelo — Preciso encontrar alguém.
— Talvez eu possa te ajudar... — ele sugere.
— Eu... Acho melhor não — sorrio forçado.
— Eu insisto, conheço praticamente todos aqui no palácio, sei que posso ajudá-la.
Ai senhor que cara chato! Será que ele não entende o significado da palavra "não"?
— Bem, se é assim... Preciso me encontrar com o general do palácio, sabe onde ele está?
— Com certeza! — ele responde animado — Kristoff e eu nos conhecemos há muitos anos.
Ele fala e fica parado me encarando com um sorriso feliz no rosto, como se esperasse eu perguntar algo sobre o assunto ou pelo menos ficar surpresa com sua declaração, mas na verdade eu não me importava com isso, ainda não confiava nesse cara.
— A gente pode ir então ou...? — deixo a pergunta no ar.
— Claro! Por aqui, senhorita — ele aponta o caminho.
— Obrigada — respondo e sigo na direção que ele indicou.
Ele que não se atreva a tentar fazer algo contra mim, penso. Eu sei muito bem me defender e não vou ter piedade.
— Então... Permita-me perguntar qual o assunto que irá tratar com Kristoff? — ele questiona.
— Você é do tipo curioso, né?! — pergunto.
— Me desculpe — ele pede parecendo envergonhado — fui indiscreto.
— Infelizmente não posso te dizer o que é, quem sabe um dia — respondo dando de ombros.
— Você não vai muito com a minha cara, não é?! — ele pergunta.
— Não muito — respondo direta.
— Au! — ele fala levando a mão ao coração — Essa doeu!
— Foi você quem perguntou — digo — eu não costumo mentir.
Mentirosa!, meu cérebro grita condenando-me.
— Não foi o que pareceu quando me fez pensar que era muda — ele fala rindo.
— Aquilo foi... Eu nunca disse que era muda... Você concluiu isso só porque eu não estava falando.
— Você balançou a cabeça afirmando quando eu perguntei se era muda! — ele fala divertido.
— Eu estava alongando o pescoço! — rebato na defensiva.
Caden começa a rir e eu fecho a cara emburrada, sou uma piada agora?
— Desculpa — ele pede ainda rindo — Agora eu entendo porque o rei quer tanto te manter por perto, você é engraçada.
— Eu realmente não sei qual foi a graça! — falo colocando as mãos na cintura.
— Você sempre tem resposta pra tudo, não importa se é mentira ou verdade, eu admiro isso.
— Então você admira a mentira? — pergunto erguendo uma sobrancelha.
— Às vezes convém mentir — ele pisca pra mim.
Dou risada diante da sua constatação, talvez ele não fosse tão ruim quanto eu pensava...
— O que está acontecendo aqui? — ouço a voz do rei atrás de mim e arregalo os olhos com a rispidez do seu tom.
— Majestade — Caden faz uma cara de deboche e uma reverência exagerada — Estava apenas ajudando a adorável senhorita Felicity com algumas coisas.
Ash se aproxima e vejo que estreita os olhos para Caden.
— Acredito que a adorável senhorita Felicity não precisa da sua ajuda — ele fala colocando ênfase no adjetivo usado por Caden.
— Ela me parecia um pouco perdida procurando pelo general então é claro que eu, como um bom cavalheiro, ofereci-me para acompanhá-la.
— Bom, eu posso acompanhá-la a partir daqui, sua ajuda não é necessária — Ash fala pegando na minha mão.
— Tenho certeza de que vossa Majestade tem coisas melhores para fazer, eu a acompanho — Caden segura minha outra mão e me sinto como um brinquedo disputado por duas crianças.
— Sabe... eu estou bem aqui, posso escolher...
Tento falar mas eles não me escutam, então apenas me permito curtir o momento, afinal, não é todo dia que sou disputada por tamanhas belezas. Tudo bem, eu sabia que a disputa não era exatamente por minha causa e sim pela rixa que ambos tinham um pelo outro, mas prefiro acreditar na primeira opção.
— Eu estou com tempo hoje — Ash responde — Vamos.
E assim, antes que Caden pudesse dizer outra coisa, Ash me arrasta ao lado dele para longe. Percebo a carranca em seu olhar e decido ficar quieta enquanto o acompanho. Assim que nos afastamos chegando ao lado exterior do castelo, Ash diz:
— Pensei que não confiasse nele.
— Não confio! Mas ele foi bem convincente... — dou de ombros — Além disso, não me pareceu tão mau quanto pensei que fosse.
Ash me encara intensamente e não consigo decifrar o que seus olhos querem dizer. Não suportando a força de seu olhar, abaixo minha cabeça e vejo nossas mãos ainda coladas uma na outra. Ash percebe nossa aproximação e solta rapidamente minha mão. Olho para ele sentindo-me magoada, mesmo sem saber o porquê.
— Por que sempre faz isso? — pergunto.
— Isso o quê? — ele pergunta sem olhar para mim.
— Sempre se afasta de mim como se eu fosse contagiosa. O simples ato de me tocar é tão repugnante assim pra você?
Por algum motivo, sinto um nó se formar em minha garganta e tento engolir o mais rápido possível. Qual o problema comigo?
— Não tem... nada a ver com você, Felicity — ele fala baixo e sem olhar em meus olhos.
— Olha só pra você, não consegue nem olhar nos meus olhos enquanto fala isso — solto um riso sem diversão — Quer saber? Eu posso encontrar o general sozinha, não precisa me acompanhar.
— Felicity... — ele tenta falar mas logo o interrompo.
— Até mais tarde.
Viro as costas e nado em direção ao local onde avisto diversos seres que me parecem muito com soldados. Percebo uma pequena lágrima escorrer de meu olho esquerdo e trato de limpá-la rapidamente. É humilhante chorar sem nem ao menos saber o motivo.
Aproximo-me do local e logo avisto aquele que, com toda certeza, era o general, afinal, estava proferindo ordens para aqueles que pareciam ser soldados. Crio coragem o suficiente para me aproximar e tentar conversar com ele...