Antes não eram esses olhos azuis. Não eram essas íris luminosas e saudáveis. Disso certamente Princesinha se lembraria. Os olhos eram escuros, densos, quase pretos. Tinha olheiras eternas de um roxo doentio. Mas agora nas primeiras horas do dia, deu com a diferença no espelho do banheiro. Seria possível? Mas seus olhos estavam tão naturalmente coloridos de azul do céu que pareciam jamais ter sido de qualquer outra pigmentação. As olheiras se existiram algum dia, virariam lenda a partir daquela manhã.
Na verdade, ela não era nenhuma princesa. Isso era apenas um apelido ridículo que as pessoas caçoavam dela pelas costas e, ultimamente, sem nenhum pudor, cumprimentavam-na como se assim sempre fora. Tais quais os olhos azuis. De princesinha ela não tinha a tez, os cabelos loiros ondulados, o corpo esguio quase flutuante, a face rósea delicada. Era uma zombaria da vizinhança. Ela simplesmente já não se importava mais e fazia de conta que o mundo era o que era na delicada alcunha que a batizaram para ofendê-la. Sabia bem como o espelho lhe devolvia a sua própria imagem: Era uma solteirona adiposa, atarracada e de peitos murchos. Os cabelos eram negros de tinta, rebeldes de tanta química. Era feia. Muito feia. O oposto de seu apelido. Se folheasse qualquer livro de histórias infantis, lá estaria a gravura que melhor a representaria: uma bruxa medonha devoradora de crianças bonitinhas e inocentes. Só lhe faltava a famosa verruga na ponta do nariz. Poderiam perguntar: e os pelos no queixo proeminente? Elas os retirava meticulosamente com um pinça. Só lhe faltava a tal verruga mesmo.
Princesinha teve medo de si mesma com aqueles belos olhos azuis no seu rosto espectral de bruxa esverdeada. Teve medo da beleza. E se outras mudanças se sucedessem repentinamente, da noite para o dia, como acontecera aos seus olhos? Como sairia pelas ruas? Talvez tivesse que enfrentar um novo apelido a ferir os seus sentimentos até que se embotassem novamente. Até que ela se acostumasse. Do que finalmente tripudiariam as pessoas ao ver no que, de fato, ela se transformara? Para os lindos olhos azuis teria que usar óculos escuros. Mas não podia se esconder por inteira. Qual seria a próxima mudança, meu Deus?
No dia seguinte, parou diante do espelho novamente. Já estava difícil acostumar-se com aqueles olhos azuis tão lindos e então notou fios loiros entre os tufos desgrenhados de seus negros cabelos tingidos. Sentiu uma vertigem. Não teve escolha, a não ser aceitar aqueles cabelos dourados como o Sol. Começaram a brotar em profusão! À medida que o Sol fazia seu caminho no céu, os cabelos loiros iam tomando conta de sua cabeça. Uma coisa pavorosa! Sedosos. Brilhantes. Como das mulheres das capas de revista. Entrou em pânico. Por que estava acontecendo isso com ela? Agora, a cada manhã, tinha que se observar nos detalhes, nos contornos, na altura, na forma e no jeito. Nos gestos? Sim, nos gestos também. Não poderia estar acontecendo tudo aquilo. Não com ela. Maldição tenebrosa era o verbo ao vento. O verbo. A palavra falada agora desencadeava inúmeros prodígios em seu corpo roliço e sem graça. Não pediu isso a ninguém. Nem mesmo a Deus. Se tentava melhorar era às suas próprias custas. Com o dinheiro de sua rala pensão. Tintas para o cabelo, condicionadores, cílios postiços, espartilhos apertados para conter o desabamento tácito de seus excessos de gordura, soutiens para disfarçar a gravidade puxando para o chão seus seios moles. Não queria ser feia, mas também não queria ser da forma como dizia a molecada pelos cantos: Princesinha! Princesinha! Princesinha! Não era para se tornar verdade o que nunca nem sequer sonhou nos seus segredos noturnos e solitários. Como enfrentar tamanha adversidade, que lhe causaria mutilação. A beleza a mutilaria sem piedade daqui pra frente. Um dia ouviu dizer da fúria da beleza. Será que isso era uma doença? Passou o dia pensando se pintaria de preto os cabelos loiros. Teve pena de fazer isso. Eram tão lindos! Compraria uma peruca preta e os esconderia para poder sair de casa. Ai, meu Deus! Lembrou do Pai Xangô. Isso mesmo! Última alternativa! Ia no terreiro do pai Xangô no dia seguinte pra ver se dava um jeito de conter aquela beleza que se apossava do seu corpo. Foi dormir chorando, quando percebeu que as suas pálpebras estavam pesadas com cílios imensos, perfeitos. Dormiu apavorada. Não precisaria mais de cílios postiços. Aquilo não iria parar. A ameaça de um novo prodígio no seu corpo físico estaria no sono, na noite dormida.
Acordou com seios tão firmes que deu um grito! A pele do seu corpo também havia sido trocada. É, trocada! Olhou para o lençol e viu a sua pele antiga lá. Teve vontade de vomitar. Trocou de pele como um réptil. Seios tão lindos e pele macia... Princesinha! Não boto a cara na janela nunca mais! Não vou mais ao terreiro de Pai Xangô. Sou prisioneira da beleza. Que loucura! Que loucura, meu Deus!
Não dormiria mais. Nunca mais. Café. Fez café. Uma garrafa cheia do líquido forte. Quando acabasse faria mais. E mais. Antídoto para aquela trapaça do destino. Não dormiria. Embebedou-se e o que ganhou foi apenas um nervosismo típico de moçoilas virgens, maçãs rosadas na face e um inchaço sedutor nos lábios que os tornara pedintes de uma boca masculina e viril. O nervosismo a fez chorar e jogou-se na cama com o peito sufocado de futuro. Futuro. Chorou até que o café não conteve o peso de suas pálpebras de longos e sinuosos cílios. Finalmente adormeceu. No quintal descuidado de sua casa, cheio de erva daninha, na noite serena e oculta, uma rosa orvalhada brotou na roseira escondida pelo matagal. O plano de beleza de Princesinha traçado pelo maquiavélico destino tinha se completado. Um novo dia ia raiar para uma mulher perfeita.