— Ana? — Escuto Jorge me chamar.
— Sim?
— Você me ouviu?
— Não, me desculpa. O que dizia?
— Eu estava falando para você sobre o estacionamento de carros usados que um amigo meu abriu no Brooklyn. Como outro dia você havia dito que estava querendo comprar um carro, eu pensei em levar você lá para dar uma olhadinha, o que acha?
— Eu gostei da ideia, mas... não acha cedo demais? — Carolina me encara.
— Tenho mais de vinte anos mãe.
— Idade não é justificativa para nada.
— Meu amor, a Ana já é maior de idade, precisa ter o seu próprio carro. Ela não vai ficar dependendo do nosso carro a vida toda.
— Eu não me importo. Carros servem para pessoas com muita responsabilidade.
Jorge a encara incrédulo.
— Mais do que a Ana já tem?
Se eu não tivesse feito merda nas minhas férias, estaria dando razão a ele.
— Ando duvidando disso.
Nós duas nos encaramos. Jorge ficou sem entender a troca de olhares.
— Hãm... bom, pense melhor sobre o assunto Ana. Não precisa ter presa.
— Está na hora mesmo deu ter o meu próprio carro. Podemos ir hoje mesmo se o seu amigo não se importar.
— Claro, vou ligar para ele assim que chegar na loja.
— Obrigada, Jorge. — Sorri.
Eu nunca estive preparada para ter o meu próprio carro, sempre adiei essa possibilidade e conquista na minha vida, alegando para mim mesma que aquele momento não era apropriado.
***
— Ana! Ana! — Escuto Gina me chamar assim que eu desço do ônibus.
— Oi.
— Bom dia!
— Bom dia!
— Eu te assustei?
— Não, claro que não.
— Que bom. Eu vou tomar café no Blue Bottle, quer se juntar a mim?
— Não sei se é uma boa ideia, podemos nos atrasar para a aula.
— Estamos vinte minutos adiantados. — Ela rebate com desdém.
— Oh... é... bom... pode ser. — Sorri.
Seguimos para o Blue onde encontramos o professor Richard sentado no mesmo lugar de antes, acompanho por diversos papeis e seu notebook.
— Olha, é o professor Richard. Vou cumprimenta-lo.
— Eu acho que ele está ocupado.
— Bobagem. — Gina se aproxima rapidamente. — Bom dia, professor.
Richard a encara sério, mas ao perceber que se tratava de Gina ele automaticamente sorri.
— Bom dia, Gina. — Não percebi que era você, peço desculpas.
— Tudo bem, o senhor deve estar muito ocupado.
— Um pouco na verdade. Estou corrigindo provas.
— Eu o atrapalhei? — Gina questiona apavorada.
— Não, claro que não. — Richard me encara. — Bom dia, Ana.
— Bom dia, professor.
— Vieram tomar café?
— Sim, o senhor gostaria de se juntar a nós?
— Hãm... não quero incomodar.
— Não vai incomodar. — Gina sorri.
Ajudamos Richard a guardar o seu material de correção. Ao segurar a sua agenda, para poder lhe entregar, um convite cai sobre o chão.
— Richard... professor, esse convite caiu da sua agenda. — Pego e entrego.
— Oh, muito obrigado.
— Você foi convidado para ir a uma festa? — Gina observa o convite.
Eu a repreendo com o olhar. Gina se tornou em minha vida, uma segunda Tiffany. Era tudo o que eu não precisava.
— Na verdade sim.
— Que legal.
— Mas eu não vou.
— Por que?
— Eu não me dou muito bem em festas. Eu ajudo o instituto, mas...
— Instituto? — Questiono.
— Instituto para mulheres e crianças.
— Eu não fazia ideia de o que senhor...
— Ajudava as pessoas?
— Sim.
— As pessoas tem mesmo essa impressão sobre mim, mas eu vivo as surpreendendo.
Assim como me surpreendeu. Não julgue a aparência sem conhecer o seu coração. Muitas vezes o que mostramos para as pessoas é aquilo que gostaríamos que elas conhecessem e não o que deveriam conhecer. Milhares de pessoas vestem todos os dias uma máscara para obter sucesso na vida enganando as outras. Muitas das vezes é necessário, assim como muitas das vezes é desnecessário.
— Imagino.
— Assim como você.
— Eu? — Fico surpresa.
— Sim você. Tenho a impressão que dentro do seu coração a algo que você não quer mostrar ou dizer para alguém.
— Está errado. Dentro do meu coração não a nada que eu não queria mostrar ou... dizer para alguém. Eu sou por dentro o que sou por fora. — Franzo o cenho.
Não estou gostando do rumo que essa conversa está tomando. Odeio falar sobre mim e principalmente sobre os meus sentimentos, ainda mais com pessoas que eu só troquei algumas palavras. Eu não sou um livro aberto, sou um diário fechado a sete chaves.
— Eu fiz apenas uma suposição. — Diz. — Então, vamos tomar o café?
— Claro. Nos conte mais sobre o instituto. — Pede Gina ao se sentar.
— Como quiser. O instituto ajuda não só mulheres e crianças que sofreram qualquer tipo de abuso dentro de casa, mas também para mulheres e crianças que são portadores de doenças ou câncer.
— É um grande instituto então?
— Sim. Nesse final de semana teremos uma festa para comemorar os dez anos do instituto.
— Dez anos? Tanto tempo assim? Como eu nunca ouvi falar?
— Adolescentes como você, só querer saber de festinhas e saidinhas, ainda mais em uma cidade como essa. A cidade que nunca dorme.
Gina fica em silencio de cabeça baixa.
— Isso passou a mudar para mim. — Diz ela, com um meio sorriso.
— Por que?
— Minha mãe, foi diagnosticada com BRCA1.
— Eu sinto muito.
— Estou tentando convence-la a fazer tratamento de prevenção antes que seja tarde demais, mas... ela é muito cabeça dura.
— Por que não a leva no instituto? Lá tem várias outras mulheres com o mesmo caso que a sua mãe.
— Sério?
— Sim. Mas para visitar o local e os pacientes você precisa agendar um horário.
— Tem algum dia especifico para visitas?
— Qualquer dia menos finais de semanas ou feriados. Eu vou te dar o cartão com o telefone. — Richard tira um pequeno cartão branco de dentro da sua bolsa e entrega para Gina.
— Obrigada professor. Eu vou... tentar ligar.
— Como achar melhor. Mas se me permiti lhe dar um conselho, não insista muito em fazer algo que a sua mãe não quer fazer. Quando se aprofunda muito nos problemas das pessoas você acaba fazendo parte dele, e quando se der conta será tarde demais. A decisão tem que partir da sua mãe, querer ser ajudada, e não de você. Você é filha, você vai apoia-la e cuidar dela, não estou querendo dizer para você fazer ao contrário, deixar ela de lado, mas não será a sua decisão ou força de vontade.
Gina sorriu compreendendo e aceitando o conselho de Richard.
— Obrigada Professor.
Richard sorri.
Tomamos o nosso café e seguimos para a Columbia. Enquanto eu estava sentada, na mesa de traz da mesa da Gina, escuto ela e sua amiga, Amy, conversar sobre uma festa de confraternidade da faculdade. Nunca me dei o prazer de ir nesses tipos de festa, nem quando eu era uma caloura, então para mim tanto faz como fez.
— Você quer ir Ana? — Questiona Gina.
— Hmm?
— Na festa de confraternização, você quer ir?
— Melhor não.
— Por que? Vai ser legal.
— Eu não gosto de ir em festas.
— Bom, eu vou te mandar a localização caso mude de ideia. — Gina manda a localização do local da festa por mensagem. — Prontinho.
— Obrigada. — Sorri.
Amy me encara arqueando uma de suas sobrancelhas me intimidando com o olhar. Essa menina realmente não gosta de mim, e sinceramente eu também não gosto dela. Amy é do tipo de pessoa que eu nunca teria uma amizade, não por causa do seu jeito despojado e sim pela falta de caráter e falsidade que está estampado no seu olhar.
Todos já haviam se retirado da sala e eu fiquei terminando de guardar os meus livros.
— Ana. — Escuto Richard me chamar.
— Sim?
Richard estava contraído enquanto se aproximava de mim. Com vergonha de algo que gostaria de dizer, mas que estava com dificuldades.
— É... eu... como você se demonstrou muito interessada no instituto que eu ajudo, eu pensei em... te convidar para ir a festa comigo. Claro, se você quiser.
— Professor, seria uma honra para mim, mas... o senhor sabe que não cai bem um aluno e um professor...
— Eu sei. — Ele sorri e abaixa a cabeça.
Respiro profundamente. Tenho o desejo de conhecer o instituto e as crianças. Não estaríamos fazendo nada demais.
— Mas nós dois não estaríamos fazendo nada demais, não é? — Sorri.
— Claro.
— Para quando é a festa?
— Sábado agora.
— Daqui dois dias. — Afirmo.
— Sim. — Richard retira de sua bolsa, dois convites iguais aquele que eu havia, sem querer, derrubado sobre o chão na cafeteria. — Aqui, este é o seu. — Ele me entrega um dos convites.
— Obrigada.
— Amanhã podemos combinar como iremos para a festa. Se você quer ir sozinha ou se você quer uma carona.
— Claro.
— Então... até amanhã?
— Até amanhã.
Sem jeito, Richard se esbarrou em uma das mesas.
— Opa! Culpa minha.
— Culpa sua.
Espero Richard sair da sala para poder ir embora.
***
— Ana, o que você achou desse carro? — Questiona Jorge ao lado de um Ford Crown Victoria.
Encaro Jorge com desdém. Ele deve estar gozando da minha cara.
— Jorge, eu não tenho cara de policial.
— Policial? — Ele franze o cenho confuso. — Ah! Verdade. Nossa, havia me esquecido. Deixa esse carro para lá. E aquele? É um Ford também, mas não é de polícia.
— Eu gosto desse modelo mais... a cor é...
— Cor de merda? — Questiona Ken, o amigo e dono do estacionamento.
— Sim.
— Também destilo dessa mesma opinião. E aquele? — Ken aponta para um Renault.
— Fora do orçamento.
— Poço emprestar o dinheiro, depois você me paga. — Diz Jorge.
— Melhor não.
Observo todo o estacionamento até encontrar o carro que mais me agradou, Ford Focus 2010.
— Eu vou ficar com aquele carro. — Aponto.
Todos os carros no estacionamento estavam com os preços escritos sobre o para-brisa.
— Tem certeza? O motor dele não é muito bom.
— Não tem problema, é o que cabe no orçamento.
— Bom, então... negócio fechado? — Ele estende a sua mão.
— Negócio fechado.
Ao finalizar a compra do carro, segui para a minha casa dirigindo o meu próprio carro escutando a primeira música que estava tocando no rádio, Holy – Justin Bieber e Chance The Rapper.
Eu estou tão feliz em ter comprado o meu próprio carro que nada, nem mesma a cara feia e descontente da minha mãe poderia mudar isso.
— Você comprou mesmo o carro? — Questiona minha mãe vindo em direção do carro.
— Tanto que eu comprei que eu vim até dirigindo ele sozinha. — Observo Jorge estacionar logo atrás de mim.
— Jorge é louco por ter deixado você vir sozinha.
— Ele não ia deixar o carro dele no estacionamento né dona Carolina, além do mais eu já disse que eu sou adulta. Você precisa parar de me enxergar como uma criança
— Eu não a enxergo como uma criança, eu só... me preocupo com você.
— Agradeço, mas eu estou bem. — Sorri e entro.
Vou para o meu quarto para poder tomar banho. Deixo as chaves do meu próprio carro sobre a minha escrivaninha e a encaro por alguns minutos. Meus olhos lacrimejam ao lembrar de tudo o que eu fiz para chegar onde eu cheguei, eu não tenho o carro do ano e muito menos o melhor emprego do mundo, mas foi esse emprego e a minha determinação quem me deram esse carro.
Meu pai teria orgulho de mim.