''Tenho medo de homens de terno, eles usam tal qual uma arma para iludir'.' - Nilton Mendonça
Com grande felicidade dirijo em direção ao campo de tiro, após o caso anterior, Emilly havia me oficializado dentro da equipe. Eu apenas preciso passar na avaliação de campo, que basicamente consiste na disposição física e nas habilidades com armas. Fichinha para mim, não querendo me gabar.
No campo de tiro, os instrutores me deram uma arma e colete, mostraram o pequeno percurso que teria que percorrer onde apareceriam ''suspeitos'' e ''inocentes'' de papelão em possíveis situações de risco. Foram quinze minutos de completa concentração e foco. Após o percurso, dirigia-me para a ala onde apenas acertaria alvos, sem precisar desviar de coisas e olhar entre portas.
Na ala de alvos, uso óculos de proteção e fones para abafar o barulho dos tiros, me coloco em uma das cabines livres e começo os disparos certeiros. Após finalizar, deixo meu óculos de proteção e arma sobre a pequena bancada que havia na cabine, virando o corpo para chamar um dos instrutores, acabo por me deparar com uma figura alta de terno.
— Reid? — perguntei com certa dúvida, não esperava encontrá-lo aqui.
— Rodrigues, você é realmente boa com armas como diz em sua ficha — coloca suas mãos no bolso e encara os alvos com disparos exatamente em pontos vitais.
— Você andou olhando minha ficha, doutor Reid? — sorrio de lado e mordo o lábio.
— Na verdade, a Penélope me obrigou a olhar e...— tenta se justificar rapidamente enquanto coça a cabeça, ele sempre parece constrangido comigo.
— Sei, a Penélope — cerro os olhos, será que eu assusto ele?
— Ficamos sabendo que a Emilly oficializou você — sorrio fechado e ergue A sobrancelhas, fugindo das minha alfinetada.
— Pois é, parece que irei atazanar vocês todos os dias — finjo tristeza na voz — Mas o que você está fazendo aqui? Reavaliação? — não consigo segurar minha curiosidade. Será que ele é tão bom com mira quanto eu?
— A alguns meses aconteceram algumas coisas e tenho que fazer avaliações semestrais — ok, e fugiu muito da resposta agora, não tem problema!
— Melhor avaliação do que ser mais um número na crescente estatística do desemprego...— torço a boca. Vejo ele soltar uma risada nasal. Logo o instrutor aparece, recolhe os pertences e explica como funciona o resultado. Caminho para fora do lugar, esperando na frente do lugar, já que não me despedi decentemente de Reid.
...
Apoio no carro e jogo um joguinho aleatório no telefone, faziam uns vinte minutos que aguardava Spencer aparecer para então ir embora. Prestes a desistir de esperar o doutor, o vejo cruzar a porta do local e guardo o celular no bolso, desencosto do carro e caminho devagar até ele.
— Ei, eu nem me despedi de você — esclareço antes que ele pense que sou uma doida que o stalkeia ou algo assim.
— Tudo bem, não é como se não fossemos nos ver todos os dias, não é? — seu tom de voz sai tranquilo, mais do que antes.
— Você está sempre coberto de razão, amigo — concordo com a cabeça. Talvez eu só queria ver ele mais um pouquinho, não sei. Vejo um sorriso de canto aparecer em sua face — Veio a pé? — sorrio de lado, tentando olhar em seus olhos quase fechados pelo sol forte.
— Trem — ajeita sua pasta costumeira e mexe nos cabelos.
— Você sabe quantos germes tem lá? — faço careta, ele é germofóbico, não?
— 637 tipos de bactérias e outros organismos com DNA desconhecido — convicto e astuto, como se tivesse a informação sempre na ponta da língua. Quantas vezes ele já não deve ter falado sobre isso?
— E você mesmo assim pega trem? — arregalo os olhos, surpresa. Corajoso.
— Sim, melhor germes do que bater o carro em algo — diz, tranquilo, rio.
— Ou alguém, né. Você quer carona? — ofereço, quase apontando para o carro a certa distância da gente.
— Eu gosto de andar de trem — balança suas mãos como se negasse minha proposta, parecendo receoso? Constrangido? Intimidado?
— Então, eu te deixo próximo ao ponto ou seja lá como chama — encerro e caminho ao carro, sem dar oportunidade para uma negativa.
— Você nunca andou de trem? — escuto seus passos me seguindo.
— Não curto muito lugares com muitas pessoas — entro no veículo, acho que tinha esquecido de trancar ele.
— Fobia social ou claustrofobia? — parece me avaliar pelo banco do carona.
— Você está me perfilando? — levo as mãos a cintura e nego com a cabeça, Reid pisca rapidamente os olhos e desvia o olhar.
— Só curiosidade — responde, tira sua bolsa do ombro e ajeita em seu colo. Aceno com a cabeça e dou partida no carro. Curiosidade, sei.
...
O caminho até a estação de trem havia sido coberto de perguntas, de ambas as partes, mas sem muitas respostas. Parecia aquele jogo onde as pessoas só podem conversar através de perguntas. A explicação mais cabível para nós seria de duas crianças curiosas e teimosas.
— Você não quer tomar um café, Reid? — estaciono próximo a estação e vejo uma cafeteria na frente, bem jeitosinha ela.
— Você não bebe apenas chá? — solto uma risada ao perceber que não conseguimos parar o ciclo vicioso.
— Deve ter chá ali também — sorrio de lado, amo chá de pitanga.
— Vamos então — seus lábios se curvam e ele pega sua bolsa. Recolho a chave, saindo do carro em seguida e aguardo Spencer estar ao meu lado para então atravessar a rua.
Ao entrarmos, vamos em direção ao balcão da cafeteria e nos sentamos nos bancos dali. Reid deixa sua bolsa sobre a mesa e analisa o pequeno folheto de opções sobre o balcão.
— Qual seu café favorito? — olho para ele, que parece gravar o menu.
— Café preto — veloz, ainda com seus olhos fixos no cardápio .
— Você deveria experimentar algum chá. Sabia que café demais deixa seu coração doidinho, sem soninho, ansioso e outras coisas? — mordo o lábio, esperando que seus olhos deixem o objeto em suas mãos e se voltem a mim.
— Sim, por conta disso comecei a tomar chá verde — olha-me e sorri fechado
— Ainda tem cafeína, espertalhão — enrugo a testa e reviro os olhos, ele infla as bochechas e chama a garçonete com a mão. Parece que te peguei, doutor.
— No que posso lhes ajudar, jovens? — pergunta a senhora vestida de garçonete, simpática.
— Gostaria de um chá de hibisco, por favor — digo, a senhora acena positivamente com a cabeça.
— E você, querido? — se dirige a Spencer.
— O mesmo que ela — responde, parecendo um pouco constrangido. Ele fica todo todo muito fácil. A senhora logo sai.
— E quais são os benefícios, hm? — desafia-me, erguendo uma das sobrancelhas.
— Perda de peso, diminui a pressão, hidrata e é gostoso — conto nos dedos e dou de ombros. Ele cerra os olhos e volta a ler o cardápio.
— Você está olhando a mais de dois minutos esse panfletinho, Spencer. Por acaso é uma forma de fugir das minhas perguntas? — Ou fugir de mim? Alguém que lê 20.000 palavras por minuto, jamais iria ficar empacado em meia dúzia de palavras e gravuras.
— Por que fugiria das suas perguntas? — rebate.
— Não aguento mais esse bate e volta — reviro os olhos. Escuto Spencer rir.
— Vamos parar? — pergunta.
— Você promete? — digo — De novo — arregalo os olhos em descrença. Ergo minha mão, deixando apenas o mindinho à mostra.
— Que isso? — olha minha mão, confuso.
— Promessa de dedinho — respondo movendo o dedo, ele (mesmo parecendo confuso ainda) ergue seu mindinho para perto do meu. Enlaço meu dedo ao dele — Promessa feita — sorrio, cúmplice.
Logo a senhora chega com nossos chás, finalizando com nosso momento de promessas e perguntas. Observo as expressões de Spencer ao bebericar seu chá, na crendice que ele nunca havia tomado chá de hibisco antes.
— É gostoso, não? — pergunto e começo a beber o meu.
— Cítrico mas bom — uma careta surge após o primeiro gole.
...
Com a barriga cheia de chá, voltamos ao nosso objetivo inicial, ir para casa. Atravesso a rua junto a Spencer e aproximo-me do carro.
— Acho que é aqui que nos despedimos — mexe na alça de sua bolsa, inquieto.
— Você não quer mesmo uma carona até sua casa? — giro a chave no dedo, solicita. Sua companhia é agradável, não me importaria de levá-lo até em casa.
— Não precisa, na verdade eu moro aqui perto — mexe no cabelo com a mão livre.
— Ah, então tudo bem. Até o trabalho, doutor Reid — sorrindo e aceno com a mão.
— Até — acena de volta e caminha opostamente a estação. Pelo jeito ele morava perto mesmo. Entro no carro e dou partida. Um dia tranquilo.
''Volta ligeira que eu tô te esperando
Eu te pinto um quadro
Tu me ensina um tango
Mas vem depressa que eu passei café...''— O Lado Vazio do Sofá, Rodrigo Alarcon