— Está mesmo bom? — Joohyun perguntou enquanto via Jinyoung saborear em colheradas fartas o ensopado de tofu.
Fazia bastante frio naquele dia em especial. Mesmo que o pequeno restaurante estivesse com todas as portas e janelas fechadas, o vento parecia conseguir se esgueirar pelas frestas e adentrar os ossos. Joohyun não conseguia conter a própria ansiedade.
Foram quase doze anos inteiros esperando pela soltura de Jinyoung. O marido tinha sido preso após se envolver em um escândalo de desvio de dinheiro público quando trabalhou na campanha política de reeleição do então prefeito de Seoul. Ele era funcionário pequeno e acabou pagando pelo crime que os outros não precisaram pagar pelo seu poder de capital. Jinyoung sempre jurou ser inocente, Joohyun nunca nem ao menos se permitiu pensar o contrário.
Mas tinha chegado ao fim, finalmente tinha chegado ao fim.
— Você está ainda mais linda do que da última vez que a vi — ele falou depois de comer. Tinha ganhado peso, não era mais o adolescente franzino por quem ela tinha se apaixonado, mas estava também ainda mais bonito do que ela se lembrava. Era difícil visitá-lo na prisão devido a distância, porque a passagem não era barata e com a saúde da sogra declinando cada vez mais, ela não tinha mais com quem contar para ajudá-la com Soobin.
— Senti tanto a sua falta, yobo — ela sussurrou segurando a mão dele. O apelido parecia tão deslocado em sua voz, como se estivesse chamando um completo estranho de querido. Mas ela tentou exibir seu melhor sorriso quando ela apertou seus dedos com ternura.
Quando entraram no carro e fecharam as portas, o frio ficou do lado de fora sem poder tocá-los através da proteção da lataria. Soobin tinha dito à mãe várias vezes para que ela vendesse o veículo, os custos com a manutenção tinham sugado grande parte das economias da família nos últimos anos, no entanto, ela sabia o que o carro significava para ela e o marido.
Ao descobrirem que estavam esperando um filho, mesmo em uma idade tão jovem, eles sofreram um baque terrível. As famílias não ficaram nada felizes com a notícia e eles não tinham qualquer condição de criar uma criança. Jinyoung então a colocou dentro do carro recém-comprado com as economias de dezenas de empregos de verão e a levou até um mirante. Choraram juntos, de alegria e de medo, e souberam que manter o bebê era uma escolha que já tinha sido tomada no silêncio que fizeram sendo observados apenas pelas estrelas.
Foi naquele carro que Jinyoung a levou para o hospital para ganhar seu filho, foi naquele carro que eles decidiram, em tom de sussurro enquanto o filho dormia, qual seria o nome daquele serzinho adorável. Foi aquele carro que a levou até a delegacia quando descobriu que seu marido tinha sido preso. Foi naquele carro que ela levou o filho para a escola pela primeira vez. Foi com ela que ela foi, sozinha, a formatura de Soobin no fundamental. E agora era ele quem os levava de volta para casa.
— Agora, vamos tocar a mais pedida de toda a manhã — o locutor da rádio disse em seu tom de voz metalizado enquanto entravam na interestadual. — Deep, da solista Hyo.
— Essa eu gosto — Jinyoung disse animado, aumentando o som do rádio. Ele não reparou quando Joohyun se virou para a janela.
Ela demorou um pouco para descobrir que a coreógrafa do novo sucesso de verão era ela. Por muito tempo Joohyun apenas ignorou a canção, não era exatamente o seu tipo de música, mas acabou se vendo presa em um vídeo curto de um cover nas redes sociais e, quando abriu a sessão de comentários para deixar seu elogio, viu o nome dela creditado na legenda.
O primeiro sentimento foi orgulho. Joohyun sempre soube que aquela garota faria sucesso em qualquer coisa que se propusesse a fazer e sempre costumava dizer isso a ela. Estava lá quando a mais nova decidiu mudar sua formação para dança, frustrada por não ter dinheiro para se manter em belas artes.
O segundo sentimento foi a raiva. Se ela não fosse tão imatura, se ela não fosse tão teimosa... Por fim, mesmo tentando resistir, a saudade a encontrou. Como ela estaria? Será que estava feliz, além de realizada? Chegou a se perguntar se ela teria trocado o número de seu telefone, mas por fim decidiu que aquilo era ridículo porque ela jamais ligaria.
Afinal, não o fez nos últimos dois anos, por que agora?
— Está tudo bem? — Joohyun se virou para o marido e sorriu. A música na rádio agora era outra, BTS cantava sobre dinamites e estar nas estrelas.
Kang Seulgi não fazia mais parte de sua vida há tanto tempo, quando deixaria também seus pensamentos?
— Claro, tudo certo.
•
— Eu só não sei se é o momento — tentou argumentar enquanto sentia o olhar de Yeri pesar sobre si.
— Essa desculpa funcionou por um tempo, agora você sabe que não está enganando nem a si mesma.
— Eu me sinto muito bem enganada, obrigada — Seulgi disse logo dando uma risada alta quando encontrou o rosto indignado de Yeri a encarando de forma incrédula. — Ora, não comece a agir como se você também não estivesse solteira.
— Mas no meu caso eu não estou tentando superar meu amor por uma mulher hétero. Por anos! Tentando por anos! — Yeri argumentou, soando mais engraçada e menos irritada do que gostaria. Seulgi apenas riu soprado e deu de ombros.
— O tempo é relativo.
A verdade é que Seulgi não tinha certeza se estava realmente tentando esquecer Joohyun durante todo aquele tempo, ou se ela se agarrava pateticamente às memórias com a outra. Já tinha cedido a culpa de tudo aquilo a sua juventude, a carência, até mesmo quis colocar Joohyun como a vilã de coração gélido de sua história de amor ridícula e seu coração partido, mas sabia que tudo aquilo era mentira.
Era ela quem não se deixava seguir em frente. Ela era culpada de tudo no final das contas.
— Falando em superar, você decidiu se vai continuar na ÉssiM? — A pergunta de Yeri arrancou de Seulgi um suspiro cansado.
Desde que se formou, a vida fez com seus sonhos o que ela quis. Nunca conseguiu expor suas pinturas além daquelas que compunham seu portfólio para conclusão do curso e mesmo que amasse dançar, ser coreógrafa não estava em seus planos. Mas ela precisava de dinheiro e Sooyoung, uma amiga da faculdade, a indicou para a vaga.
O trabalho lhe abriu muitas portas para continuar se aprofundando na área e ela passou a estudar mais e mais, e quando notou, tinha um emprego fixo e um bom salário. Mas a indústria não era nada do que ela imaginava.
— Entreguei minha carta de demissão ontem — respondeu a melhor amiga depois de um tempo. Yeri se sentou ao seu lado, repousando uma mão em seu ombro. — Provavelmente nunca mais vou conseguir trabalhar na área, mas eu não tenho mais estômago pra ver o que eles fazem com aqueles garotos.
— Você vai conseguir algo melhor, tenho certeza — Yeri disse sorrindo largo e Seulgi retribuiu a abraçando. Ela não tinha muita certeza do que faria a partir daquele momento, mas era bom não estar sozinha.
Seulgi não sabia que naquela mesma noite Sooyoung voltaria a entrar em contato para contar de um projeto, pedindo por ajuda. Não podia imaginar também, para onde, ou para quem, aquilo a guiaria.
•
— Pode entrar! — Joohyun gritou após ouvir batidas na porta de seu quarto. Logo Soobin entrou no cômodo trazendo um folheto em mãos. — Vem cá, deita comigo.
Ainda era um baque todas as vezes que ela notava o quanto ele tinha crescido. Aquele bebezinho menor do que todos os outros recém-nascidos da UTI neonatal agora era um garoto de 14 anos que já tinha quase a mesma altura da mãe. Ele tinha os seus olhos melancólicos e covinhas adoráveis enfeitando suas feições delicadas. Joohyun se orgulhava tanto do ser humano que ela vinha educando, da sua bondade e seu cuidado com as pessoas.
Ela já não podia mais abraçá-lo do nada e cobrir seu rosto de beijos como fazia antes, não sem levar sermão sobre como aquilo era vergonhoso. Então ela sempre aproveitava ao máximo aqueles breves momentos em que ele procurava por ela em busca de abrigo e ela podia, por alguns instantes, sentir como se fosse alguma espécie de deus e tivesse voltado no tempo.
— Quando foi que suas pernas ficaram tão compridas? — ela perguntou cutucando seu filho nas costelas. Soobin riu logo rolando os olhos antes de responder:
— Você sempre fala isso, sempre a mesma coisa. Não é mais uma garotinha, mas ainda é muito nova para ter lapsos de memória — provocou recebendo beliscões sem força de Joohyun que ria junto dele.
Bem, a aparência podia mesmo lembrar a ela em diversos aspectos, mas a personalidade era definitivamente a do pai.
— Você não sabe o quanto você era...
— Pequeno, tão pequeno que cabia na mão do seu pai e como todas as enfermeiras falavam que você era o menor bebê que elas já tinham visto... — ele interrompeu arrancando uma expressão indignada de Joohyun. — É, mãe, você já falou.
— Hum... Será que estou mesmo tendo lapsos de memória? — ela perguntou fingindo uma careta reflexiva. Soobin riu, negando. — Mas, ei, o que o traz aqui em meu gabinete?
— Vim pedir uma audiência, oh jovem senhora — Soobin respondeu em um tom teatral, entrando na brincadeira.
— Jovem senhora, é? Hoje vamos jantar brócolis, seu favorito. — Ele respondeu com um resmungo e ela riu se ajeitando na cama para olhá-lo. — O que foi?
— Quinta é meu primeiro dia na escola de dança nova e eu queria saber se você pode me levar. Depois eu vou sozinho, maior mico a mãe ficar carregando a gente por aí — ele adicionou apressado — , mas amanhã um responsável precisa ir pra fechar a matrícula.
— Mas seu pai tinha combinado de te levar — ela respondeu confusa.
— Jinyoung nem sabe como chegar lá e ele nem sabe o que eu vou fazer lá, perguntou se balé não é coisa de menina e que não faz sentido nenhum um garoto perder tempo com isso — Soobin retrucou na defensiva. Joohyun suspirou cansada.
— Querido, seu pai passou muito tempo longe, mas ele está tentando seu melhor para se reaproximar de você — tentou argumentar. — Não vai ser fácil assim de primeira, mas você também precisa tentar.
Soobin se levantou da cama, um olhar ferido em seu rosto. Joohyun também se levantou, todo e qualquer poder que ela sentiu ter quando tinha seu filho em seus braços mais uma vez, agora estavam ausentes.
— Eu odeio ele e odeio como você tem agido desde que aquele homem voltou pra casa — Soobin disse com lágrimas nos olhos. — Jinyoung nem se importa com a gente.
— Isso não é verdade — Joohyun falou tentando alcançá-lo, mas Soobin se afastou mais.
— Ele nunca escreveu! Ele nunca me escreveu em meus aniversários, nem fazia questão de falar comigo ao telefone. Só procurava você quando precisava de alguma coisa! — ele estava gritando agora, lágrimas em seus olhos e Joohyun não sabia o que fazer.
— Soobin! — ela gritou também e odiou tudo sobre isso.
— Todo mundo sabe disso, todo mundo consegue enxergar menos você! — ele disse se afastando mais dela. — Eu sinto falta da família que a gente tinha.
— É o que estou tentando trazer de volta! — Joohyun disse suspirando. — Estou tentando trazer nossa família de volta!
— Não ele, ele nunca fez parte da nossa família — Soobin disse sorrindo amargo. — Eu sinto falta da Seulgi-noona. Sinto falta de quem você era.
Joohyun não conseguiu dizer mais nada. Ficou parada enquanto ele deixava o quarto com o rosto, tão parecido com o dela, lavado de lágrimas também semelhantes.
•
Eram só os dois mais uma vez dentro daquele carro velho e sempre cheio de problemas. No rádio tocava as músicas de Bebe Rexha em uma tentativa de cativar de Soobin de alguma forma, mas o garoto mantinha os olhos fixos na janela, a mochila na frente do corpo em uma pose defensiva.
Ela tinha tentado falar com Jinyoung sobre a paixão do filho pela dança, como o balé era importante para e sobre como aquilo poderia ajudá-lo a se aproximar mais do filho, mas Jinyoung se mostrou resistente desde o início e na manhã de quinta-feira ele disse ter uma entrevista de emprego de última hora e entregou para ela as chaves do carro.
Soobin não falava com ela desde a briga. Ela estava acostumada com o temperamento cada vez mais espinhoso do filho, já tinha tido sua idade, e sempre era a primeira a procurá-lo, provocá-lo até que falasse. Mas daquela ela não sabia o que falar e não conseguia deixar de pensar no que ele tinha dito.
Ela também sentia falta de quem ela era ao lado de Seulgi. Sentia falta da forma como a mais nova a fazia se sentir invencível, a mais incrível das mulheres. Céus, ela sentia falta do senso de humor horrível da Son, a forma como ela fazia as piadinhas mais ridículas e mesmo assim nunca, nem mesmo uma vez, falhava em lhe arrancar risadas sinceras.
Quando na noite de seu aniversário de 30 anos, Seulgi confessou para ela seus sentimentos, Joohyun disse aquilo que pensou ser o correto para as duas: "É melhor a gente não se ver mais".
Talvez tenha mesmo sido melhor para Seulgi, talvez fosse a melhor decisão para o futuro da mais nova seguir em frente e procurar alguém menos quebrado para quem direcionar seus sentimentos, mas, por mais que doesse como inferno, Joohyun tinha entendido há anos que não tinha sido o melhor para ela.
A volta de Jinyoung tinha tornado tudo ainda pior porque ela não conseguia estar na companhia dele sem pensar em como aquilo já não fazia mais sentido, sem entender que aquilo que ela sentiu por Seulgi não estava presente por ele. Como o passado tinha ficado, inevitavelmente, no passado.
Menos quando se tratava dela. Porque para ela o tempo não parecia passar, as memórias não desbotavam, pareciam se entranhar mais e mais em sua mente de acordo com o que a saudade aumentava e agora elas a assombravam o tempo todo ao ponto de não conseguir mais sentir o cheiro de morangos frescos, o cheiro dela, sem sentir vontade de chorar.
Daquela vez ela não sabia o que dizer a Soobin e a viagem de carro foi um show silencioso daquele cantor canadense que ela detestava, porque ela não era capaz de mentir para o filho e já não tinha mais certeza se seria capaz de mentir para si mesma.
— É aqui — Soobin disse apontando para um prédio de arquitetura gótica no centro da cidade. Joohyun estacionou na primeira vaga que encontrou e logo o viu desprender o cinto para sair.
— Filho... — começou a falar e ele a olhou já colocando a mochila nas costas.
— O que? — ele perguntou depois de ela ficar em silêncio por um longo período. Joohyun olhou em volta como se procurasse por algum bote salva-vidas para a situação e o encontrou pendurado no retrovisor interno.
— A máscara — disse recebendo um olhar decepcionado de Soobin que pegou a máscara dentro da mochila antes de sair do carro. Joohyun suspirou desligando o rádio. — Cala a boca, Bebe.
•
Recepcionista de uma escola de dança não era exatamente o seu emprego dos sonhos, mas o salário era bom, Sooyoung precisava de alguém para quebrar aquele galho e ela precisava de grana. O casamento perfeito.
Quando entregou sua carta de demissão, ela recebeu também o aviso de que se desse continuidade no processo judicial contra a empresa ela jamais conseguiria emprego na área. E, sinceramente, Seulgi vinha repensando seriamente se valia mesmo tanto a pena ser um ser humano correto e com alguma decência porque eles não estavam mentindo sobre aquilo e as contas continuavam chegando.
Claro que no fundo ela não se arrependia. Vários dos trainees que vinham tentando processar a empresa de entretenimento há anos vinham conseguindo resultados graças ao depoimento dela. E por mais que as cartas, cestas de café da manhã e caixas de chocolates não pagassem o aluguel, ela sabia ter feito a escolha certa.
Então, é, recepcionista não era tão ruim assim.
Pelo menos não até aquele momento. Era dia de dar início em cinco novas turmas de cinco novas professoras, tudo estava um completo caos. Já eram 12:54 da tarde e ela só tinha comido uma maçã pela manhã e bebido várias garrafas de água ao longo das horas. O resultado era o miserável combo de estar com muita fome e com muita vontade de fazer xixi. E, pra piorar sua situação, a sua colega de recepção estava com diarreia e estava no banheiro por minutos e mais minutos.
E agora ela tinha certeza de que esse conjunto de infortúnios começava a afetar sua percepção da realidade porque ela podia jurar estar vendo Bae Joohyun vindo em sua direção.
— Seulgi-noona! — Quando viu Soobin, ela já não sabia mais se tinha desmaiado de fome, se estava tendo uma alucinação ou se era só o mundo sendo um ovo mais uma vez. — Meu Deus é você mesmo!
— Binnie? É você mesmo? — perguntou olhando do garoto para Joohyun que a encarava tão incrédula quanto ela. A mais velha estava com os olhos esbugalhados encarando-a como se tivesse acabado e ver uma assombração.
Ficaram as duas se olhando por algum tempo, completamente confusas, até que Seulgi teve certeza de que morreria naquela tarde mesmo, quando Joohyun abaixou a máscara e sorriu antes de dizer, assim como naquela noite em que se conheceram:
— Você está péssima, precisa dormir um pouco.
•
Ice Americano e bolo de morango. As duas só notaram a ironia dos pedidos quando eles já estavam sobre a mesa.
A ideia de ir em um café partiu de Soobin que estava convencido de que as duas tinham planejado tudo aquilo para surpreendê-lo. Joohyun se perguntava se devia se preocupar com a dificuldade em ler a sala que seu filho claramente tinha porque ela e Seulgi ainda olhavam uma para a outra como se fossem alguma espécie de miragem.
Agora estavam sozinhas. Ice Americano e bolo de morango sobre a mesa. Soobin tinha conhecido um garoto chamado Yeonjun em sua turma de balé e agora estava sentado com ele nos balanços discutindo como diabos ele tinha três pais.
— Ele cresceu tanto, quando as pernas dele ficaram tão compridas? — Seulgi finalmente interrompeu o silêncio, encarando o adolescente com incredulidade. Joohyun riu alto concordando.
— Eu sempre falo isso, ele até me acusa de estar ficando velha e perdendo a memória, mas são enormes, são as pernas mais compridas que já vi! — As duas riram finalmente encostando em suas bebidas. Seulgi sorriu para Joohyun quando seus olhares se cruzaram e a mais velha retribuiu.
— Você não está nada velha, continua incrível, unnie.
Joohyun desviou o olhar enrubescendo e Seulgi logo riu voltando a atrair o olhar da outra.
— Você sempre ria de mim por ficar vermelha, é bom ver o jogo virar — explicou arrancando outro sorriso de Joohyun.
As duas comeram em silêncio por algum tempo, ambas sem saber por onde começar ou se ao menos deviam mesmo começar aquela conversa. Seulgi sabia que não seria muito estranho de sua parte se inventasse alguma desculpa e fosse embora, mas ela não se via capaz de se mover naquele momento, não com o motivo de sua insônia ali, bem diante de seus olhos depois de quase quatro anos.
Joohyun continuava linda. Os cabelos escuros estavam agora mais longos, uma franja dava a ela um ar mais juvenil. O tempo parecia não passar para ela. Seulgi se perguntava o que ela tinha achado de seu cabelo escuro e sem franja pela primeira vez, já que a mais velha sempre disse gostar muito de seus cabelos coloridos.
— Você ficou ótima com o cabelo castanho — Joohyun disse como se pudesse ler seus pensamentos. — Ótima não — riu balançando as mãos no ar do jeito que sempre fazia ao se sentir envergonhada. — quem elogia com "ótima"? Você ficou linda, muito bonita.
— Obrigada, unnie.
— Olha só! — Joohyun disse rindo e apontando para Seulgi que a olhou assustada. — Aí está o moranguinho, vermelha como um.
Seulgi riu alto e Joohyun a imitou. O tempo parecia não passar para elas.
— Eu senti sua falta, Joohyun-ssi — Seulgi falou depois de um tempo e Joohyun sorriu triste concordando.
— Eu também senti a sua. — Estendeu a mão para segurar os dedos da outra entre os seus da forma com que faziam antes e Seulgi retribuiu ao carinho. — A gente devia... Não sei, sair para algum lugar qualquer dia desses. Soobin com certeza vai amar e... Bem, eu também vou! — disse animada. Seulgi sorriu triste e apertou sua mão uma última vez antes de se desvencilhar de Joohyun que a encarou confusa.
— Foi muito bom rever vocês e ver que estão bem, unnie — Seulgi disse soando tão triste que Joohyun sentiu seu coração doer em seu peito. — Mas eu soube que seu marido voltou para casa e por mais feliz que eu fique por vocês, talvez não seja uma boa ideia a gente voltar a se ver.
— Mas...
— A unnie disse que como eu estava confundindo as coisas era melhor a gente se afastar e eu me ressenti de você por isso durante muito tempo, mas hoje quando eu te vi de novo eu percebi que você tinha razão. — Ela se levantou jogando a mochila sobre os ombros. — Perder você partiu meu coração e mesmo assim eu me sinto da mesma forma como me sentia naquela noite. Voltar a te ver e ser sua amiga quando eu ainda sou apaixonada por você acabaria comigo. Me desculpa.
Ela tentou fazer com que a mais nova voltasse para a mesa, mas ela não sabia o que diria se Seulgi finalmente decidisse ficar, então ela a viu partir mais uma vez sem saber de seus sentimentos.
•
Existem vários crimes cometidos pela humanidade que deveriam ser punidos e não são, o sorvete sem lactose devia ser um desses.
Seulgi tinha assistido filmes de comédia romântica demais e agora tentava, sem sucesso, se afundar na fossa do jeito que as protagonistas sempre faziam: comer sorvete no chão da cozinha enquanto alguma música triste tocava no rádio. O problema começava com o sorvete (criminoso de ruim), passava para o chão da cozinha que estava terrivelmente frio como era de se esperar de uma noite de outono e termina com a música triste porque sua playlist era uma bagunça e agora tocava touch my body do SISTAR e ela estava com preguiça demais para se levantar e mudar de música.
— Nem curtir fossa eu sei direito — resmungou para a parede, o que não ajudou muito a levantar sua auto-estima.
Podia ligar para Yeri e pedir socorro a amiga, mas teria que ouvir um longo sermão antes sobre como ela tinha avisado que ignorar os próprios sentimentos não era uma boa estratégia e ela só queria um abraço. Sem dizer que mesmo seu sorvete sem muito ruim, ela não queria deixar sua melhor amiga acabar com ele todo em cinco minutos. Ainda era sorvete no final das contas.
O sorriso de Joohyun não deixava sua mente, a forma como ela segurou sua mão e o jeito com que elas ainda se davam tão bem. Aquilo tudo era muito injusto e a outra só ter ficado ainda mais bonita com os anos era covardia. Sua vida era uma piada e agora Akon estava tocando.
— Aí já é demais — reclamou finalmente se levantando para mudar a estação. Pulou várias músicas até ter BTS cantando sobre ser cinza e azul. — Essa é boa — disse satisfeita e pronta para voltar para o chão frio, mas a campainha tocou.
Pensou em deixar tocando, mas se lembrou que estava há meses esperando o síndico mandar alguém para consertar seu aquecedor e aquele parecia o momento perfeito para ter um lugar quentinho onde sentar, então ela foi.
— Já vou! — gritou enquanto enfiava o sorvete no congelador e vestia o roupão.
Mas quando abriu a porta soube que não poderia ainda aposentar o cobertor extra, mas não fazia a mínima ideia do que Bae Joohyun poderia estar fazendo em sua porta com um cartão e um copo de café.
— Oi — ela disse encarando a mais velha com uma expressão confusa que só piorou quando Joohyun respondeu:
— Oi... Café?
•
— Entende que essa é a melhor decisão para todos, não entende?
Jinyoung estava falando sobre pedir o divórcio e, por mais que aquilo ferisse um pouco seu ego, sim, ela concordava com ele. Eles não tinham mais nada a ver. Durante todos aqueles meses, Joohyun vinha se esforçando ao máximo para fazer aquela relação funcionar e vinha falhando cada vez mais miseravelmente.
Segundo o marido a aproximação com Soobin seria muito mais fácil se ele visse os pais felizes, isso logo antes de citar um novo amor que Joohyun duvidava ser tão novo assim levando em consideração que era um homem que esteve preso junto de seu marido e o fato de ele estar solto a poucos meses.
Ela tinha certeza de que deveria estar com o coração partido naquele momento, mas ela só sentia muita vontade de rir.
— Qual a graça? — Jinyoung perguntou quando ela não conseguiu mais segurar.
— Desculpa, desculpa, é que... Meu Deus eu queria tanto que isso desse certo, mesmo quando no fundo eu sabia que não daria, eu transformei esse casamento em um projeto pessoal e me esqueci de prestar atenção em nós como... Como humanos! — riu recebendo um olhar confuso de Jinyoung. — Eu não vou deixar que você parta o coração do nosso filho sendo ausente, não depois de tudo pelo que passamos — disse séria — , mas eu concordo com você e sinceramente, acho que eu também estou apaixonada por outra pessoa e se esse Mark for pelo menos 1% tão incrível quanto ela, eu sei que você vai ser muito feliz.
Então, depois de deixar seu marido — em breve ex-marido — na sala com uma expressão completamente confusa. Joohyun não pensou duas vezes antes de entrar em seu maldito carro velho que ela trocaria em breve, passar na primeira livraria que vendesse cartões e ligou para Yeri torcendo para que a outra não tivesse trocado de número. Teve que ouvir um longo sermão da melhor amiga de Seulgi sobre como ela tinha sido estúpida e como ela fez a outra sofrer, mas no final das contas conseguiu o endereço.
Agora estava lá, sentada ao lado de Seulgi no sofá dela, segurando um cartão e um copo de café, sem saber por onde começar.
— Acho que está errada — falou recebendo um olhar estranho de Seulgi. — Sem ofensas.
— Do que você está falando, unnie?
— Veja — disse entregando o cartão para a mais nova. Seulgi girou o objeto entre os dedos e voltou a olhá-la sem entender. — É Pisa, a torre na Itália. O vendedor me disse que as pessoas compram muito esse para fingir que viajaram, não é engraçado? — Joohyun falou rindo sem graça.
— Bem... É, mais ou menos?
— Ok, ok, mas não é isso que vim falar, eu tenho uma metáfora — explicou pigarreando para limpar a garganta antes de continuar: — A torre está um pouco torta e parece que não tem mais jeito, mas os anos passaram e ela ainda não caiu. Parece que tem alguma explicação científica pra isso, mas... O que eu tô querendo dizer é que... Que a nossa torre está torta, mas que ainda tem jeito porque todos esses anos se passaram e ela ainda não caiu.
Ao terminar de falar, a voz abaixando cada vez mais porque ela já não tinha certeza do que ela estava falando, Seulgi a encarava confusa. Só naquele momento Joohyun notou o quanto estavam perto.
— Nós temos uma torre na Coreia? — a mais nova perguntou tombando a cabeça para o lado.
— Ah, que se dane — Joohyun anunciou antes de beijá-la.
A boca de Seulgi tinha um gosto doce muito enjoativo e ela estava gelada como se tivesse andado mastigando gelo. Elas bateram os dentes na primeira tentativa de aprofundar o toque e ambas colaram as testas para rir. Era o pior beijo da vida de Joohyun e já era o seu favorito.
— Unnie, o que está acontecendo? — Seulgi perguntou e Joohyun odiou como ela parecia frágil e confusa.
— Me desculpa — sussurrou deixando um carinho na nuca da outra.
— Tudo bem — Seulgi se apressou em falar. — Se você fez isso por impulso e tudo mais, essas coisas acontecem...
— Não! Não é por isso que estou me desculpando — Joohyun disse se afastando apenas para olhá-la nos olhos. — Estou me desculpando porque eu sou uma bagunça, um desastre que continua em pé e porque... Porque eu estou inegavelmente apaixonada por você, Kang Seulgi.
As duas se beijaram muito mais vezes depois daquela estranha primeira vez. Bateram os dentes mais algumas vezes, mas baniram o sorvete sem lactose da dieta. Seulgi demorou meses para finalmente se convencer de que não estava em coma e tendo sonhos lúcidos e Joohyun não demorou nada para perceber que tinha feito a escolha certa.
Soobin tinha sua família de volta.