Ele usa uma roupa simples, e seu cabelo castanho está levemente bagunçado. Não faço ideia de como ele chegou aqui, mas não vou deixar este homem ferrar com todo o meu plano.
Me revelo para eles. Imediatamente, a face de Toran se esbranquece. Lowan me encara enquanto aponto minha arma firmemente para seu pai.
— Saia — ordeno, ríspidamente.
— Emma — ele suplica — por favor, peço que deixe-me cuidar desta situação.
— Toran, saia.
— VOCÊ OUVIU ELA, TORAN, SAIA DAQUI! — Lowan grita em agonia. Novamente, seu peitoral se encontra aberto, e apenas algumas poucas e antigas cicatrizes não foram completamente abertas. Me concentro na mira tentando repelir as náusas que sinto por seu corpo completamente desfigurado e em carne viva. Já é um milagre que continue vivo, e nós estamos perdendo tempo.
— Lowan, você não está em condições de opinar. Você precisa de ajuda — Toran censura. Meu companheiro mutilado levanta a cabeça para o teto, suspira. Ele aperta seus olhos para conter qualquer nova manifestação de raiva.
— Não — eu replico, sem realmente me preocupar com o tom de voz. Ninguém pode nos ouvir daqui. — Você podia ter ajudado a qualquer momento — digo entre os dentes. — Agora, eu vou ajudar de verdade. Você nunca ligou para nós, então pare de agir como se você ligasse!
— Você sabe que isso não é verdade, Emma.
Então por que você mandou me cortarem?
Seis minutos.
— Toran sai da minha frente antes que eu atire em você.
— Emma...
Atiro em suas pernas, sem hesitar; esperei quase oitenta anos por isso. Lowan encara Toran agonizando no chão enquanto puxo o líquido da fonte de cura e despejo tudo sobre seu corpo. Eu poderia ter trazido uma curandeira aqui, mas demoraria muito para que tudo estivesse em seu lugar e nós não temos esse tempo. Eu atiro em uma das correntes que segura um de seus braços, agora soltos, embora as algemas continuem em seus pulsos. Atiro no outro, Lowan cai em meus braços sem controle do próprio corpo e eu o seguro. Sinto o baque que sua pele — ainda em parte, coberta por sangue e ferimentos abertos. Engulo em seco; ele não diz nada.
— Tudo bem — eu consolo, efetuando minha melhor máscara para ignorar os gritos de agonia de Toran. — Trouxe roupas para você.
Lowan está chorando.
— Obrigado — sussurra, sua voz está tão fraca que parece finalmente ter se rendido à exaustão.
— Me agradeça depois que estivermos fora desse Purgatório. Agradeça a Callia também, esse plano só existe por causa dela. — Lowan olha em meus olhos com rapidez, desacreditado. Seus olhos vermelhos carregam o peso de muita coisa, todavia ele não diz mais nada. Eu puxo uma blusa cinza surrada da mochila e tento ajudá-lo a colocar. Infelizmente, ele só poderá usar o resto das roupas depois que estivermos fora de Syfer.
Deixo que Lowan deposite todo seu peso sobre minhas costas para que possamos andar até o estábulo.
Três minutos.
Não me despeço de Toran quando saímos, mas faço questão de trancá-lo dentro do calabouço. A energia do palácio parece ter mudado desde quando desci até agora. Algo muito poderoso está nos rodeando, mas não tenho tempo para ir a fundo disso. E além disso, um calor desumano toma conta de minhas costas. Quando olho para trás, o corredor está em chamas.
Dois minutos. Lowan incendiou um corredor.
— Lowan, o que está acontecendo?! — eu pergunto enquanto nos carrego por outro corredor.
— Eles vão pagar — ele sussurra, com dificuldade. — Eu vou fazer eles pagarem.
— Você vai desmaiar se se sobrecarregar assim! Esse fogo não tem fonte, você é a fonte! Isso é perigoso demais — eu tento explicar, mas nosso corredor já está em chamas, e ele não quer me ouvir.
Um minuto.
Começo a investir mais velocidade conforme todo o caminho que já trilhamos vai sendo engolido por chamas e gritos, eu não tenho como impedir isso, porque se eu parar, nós vamos perder tempo.
Finalmente, eu nos atravesso em uma situação delicada para o estábulo. Os ombros de Pontiac relaxam.
— Arriscado — Norvell aponta.
— Estamos vivos — eu respondo, começando a arrumar os cavalos.
Três shires serão mais úteis em uma fuga do que qualquer outro tipo de raça. Eles são firmes, e podem aguentar mais de um corpo sem problemas. Ajudo Lowan a subir em um deles. Este foi encontrado perto da muralha na tarde anterior do desaparecimento de Wez, oferecendo coices a qualquer um que tentasse acalmá-lo. Quando voltaram para o estábulo, ele voltou à linha.
— Norvell, está na hora de você fazer aquela coisinha — sujiro. Ele assente. Em questão de segundos, a Governanta está na nossa frente. Lowan engole em seco.
— Que cheiro de queimado é esse? — Helus pergunta. Dou de ombros, no intúito de arrumar menos confusão tentando explicar que meu amigo torturado incendiou o palácio e nós precisamos ser duas vezes mais rápidos agora.
— Puta merda, você está idêntico a maldita — Pontiac suspira, sorrindo. — Mas... o — ela gesticula, fazendo círculos invisíveis em volta de um de seus olhos. Norvell-Governanta arregala os olhos.
— Aqui — Helus diz, passando pela cabeça de Norvell-Governanta seu tapa-olho. — Nós dizemos que foi um imprevisto de algum dias atrás. Não importa muito, na verdade. Agora você é a autoridade máxima — ele termina piscando seu olho azul para o espião, que nos oferece um sorriso preocupado.
Tiro da bolsa um par de algemas grossas, entrego-as a Helus.
— Coloque isso em mim. E faça calor o suficiente nas correntes de Lowan para que elas se juntem novamente.
Ele me obedece, me algema e trabalha com seu fogo para juntar as correntes, outrora cortadas por mim.
Nós montamos nos cavalos — Pontiac e eu ocupamos um, Lowan e Helus em outro, e Norvell-Governanta no meio com o que restou — e começamos a nos distanciar de nada mais do que um palácio em chamas, prontos para sair da província pela porta da frente. Eu pego meu último sinalizador, e antes que já estejamos floresta à dentro, atiro em diagonal para entre os dois. O último aviso de que agora, só falta a última etapa: Escapar.
Há sentinelas guardando a única entrada da muralha, entretanto, eles estão parados demais; abatidos demais.
— Nós precisamos escoltar a Governanta e seus prisioneiros — Helus informa. Nenhum deles parece prestar atenção. Confusão estampa meu rosto. O que está havendo?
Helus e Pontiac se entreolham. Uma das sentinelas espuma pela boca, horrorizada com algo impossível de notar. A dupla desce do cavalo, caminhando com cautela até as sentinelas. Seguimos os olhos delas para onde eles se direcionam, mas eles não olham para nada específico. Parece algo muito mais psicológico do que físico. Norvell-Governanta lança um olhar discreto para trás, e nego com a cabeça como quê dizendo que também não faço ideia do que possa estar havendo. Ele desce do cavalo e vai até sua irmã.
— Me parece algo que você faria — comenta.
— Não, é diferente. Quando Medusas atacam, os olhos das vítimas ficam petrificados. Os olhos deles estão apenas... cegos — Pontiac diz.— O efeito é parecido, e talvez eles também estejam vendo seus piores pesadelos, mas isso não foi obra de uma Medusa — aponta observando cada detalhe da sentinela paralisada à sua frente. — Na verdade, quem quer que tenha feito isso, tem muito controle sobre seus dons. Isso definitivamente não é algo fácil, e todas as sentinelas parecem estar em transe.
Norvell-Governanta engole em seco.
— Elas vão acordar? — Helus questiona.
— Não tão cedo — nega Pontiac.
Com dificuldade, desço de um dos cavalos e cambaleio até os portões. parecem fechados, entretanto, observando com mais atenção, ele parece ter sido escancarado. A violência de seja lá o que fez isso causou um impacto capaz de danificar as grandes e firmes dobradiças de aço tungstênio. A fresta discreta, mas significativa, deixada nos dá a perfeita visão de Powal. Talvez o tamanho seja suficiente para que os cavalos possam passar.
Caminho para a floresta para checar a atividade dos Golens antes de pensar em escoltar os cavalos para fora. A chuva está mansa e a floresta escura como sempre.
Todos estão ajoelhados, em posição de reverência á um único ponto aleatório. Franzo o cenho. O que diabos está acontecendo aqui? Balanço a cabeça no intuito de clarear a mente. As coisas estão estranhas, mas não há tempo para questionar, o que importa agora é que tudo está ao nosso favor.
Comunico a meus aliados a situação do lado de fora e trabalhamos para passar os cavalos até Powal. De lá, nos montamos na mesma formação e cavalgamos floresta à dentro.
Eu ativo a bomba que resta em meus quadris e aproveito a fresta que os portões fazem. Antes que estejamos longe demais, jogo-a dentro da fronteira. Não haverão mais sentinelas guardando a fronteira de Syfer e Powal quando minha mensagem for transmitida para todas as Elites de Syfer. E depois, só nos restará assistir ao espetáculo de longe.
Nós fugimos, mas não podemos parar ainda.
Cavalgamos até um canto escondido, onde Syfer há muito já não pode mais ser avistado. Ninguém diz nada; nem uma palavra sequer. Tiro da mochila a maleta de primeiros socorros que Nox me deu. Desta vez, há uma quantidade mínima de linha e fita, sobre a qual consigo trabalhar nos maiores cortes, embora boa parte disso seja impossível de ser costurada. Precisamos de curandeiras, precisamos da fonte, precisamos de qualquer magia que possa nos ajudar. Porque Lowan não vai durar tanto tempo desta forma.
◇
Quando fui expulsa do palácio e fui me despedir de Lowan às escuras e contei meu plano de fuga, Lowan me perguntou se as curandeiras poderiam transformar seu corpo em um novo.
— Pelo tempo que você chegar, com certeza ele já estará completamente aberto — ele disse, ofegando. — Você acha... que elas poderiam me consertar?
Tentei não transparecer a dor que essa frase me causou. Um nó no estômago se formou em mim, e eu o encarei, no fundo dos olhos.
— Você não está quebrado — eu disse.
— Você acha, que elas conseguem? — ele insistiu, sua voz instável e baixa demais. Seu peitoral estava uma bagunça. Centenas de cicatrizes misturadas e tonalidades de pele que se misturavam com sangue e suor. Haviam algumas curando com a pouca quantidade de água da fonte, poucas que conseguiram absorver seu líquido, algumas outras estavam pela metade, abertas, outras eram impossíveis de saber onde começavam e onde terminavam. Era tão triste vê-lo acorrentado nesse estado.
Eu limpei a garganta, e disse:
— Talvez.
Eu precisava dar algo para ele se agarrar. Até então achávamos que Callia se foi, e eu tinha um plano que se Nox não aceitasse, não seria realizado. Eu precisava dar uma nova esperança para Lowan.
— Provavelmente — me corrigi. — Mas você precisaria sobreviver à tempo.
— Eu já sobrevivi até agora — ele ri. — Eu quero me sentir eu mesmo novamente.
Assenti, sem dizer mais nada.
— Emma — ele sussurra, deixando sua cabeça pesar sobre o corpo. Encontro seus olhos novamente. — Eu estou tão cansado.
— Eu também, Lowan. Eu também.
◇
— Emma, nós precisamos parar aqui. Não vai adiantar cuidar de Lowan manualmente nesse estado — Pontiac tira as palavras da minha mente. Mas nós não temos tempo, é isso que eu digo. — Ele também não. — É o que ela responde. — Isso não é uma situação como as "normais". Não são alguns cortes precisos para trabalharmos. São todas as cicatrizes, abertas de uma forma que mãos como as nossas não vão curar, Emma. Você só está aumentando o sofrimento dele.
— Eu quero... uma curandeira — Lowan sussurra, fraco demais para elevar a voz. Engulo em seco. Ara se aproxima de seu rosto.
— Lowan, uma curandeira vai demorar mais tempo. Emma conhece as fontes de cura por aqui. Nós vamos parar e te curar, antes que as coisas piorem.
— Mas... as cicatrizes... — ele tenta argumentar. Puxo Pontiac pelo braço, me aproximo para sussurrar.
— Se a fonte curar isso, o peitoral de Lowan vai ficar completamente desfigurado.
— Ou então ele vai ficar aberto, e vai morrer — ela responde, sem paciência.
— Se ele for curado pela fonte, as curandeiras não poderão desfazer o que já foi feito.
— Você vai deixá-lo sofrendo por um capricho? — Ara cospe. — Emma, você sempre foi tão racional, o que está acontecendo com você?
— Ele está desacordado — Helus diz, mal percebi quando se aproximou de nós. — Com febre.
Desculpe, Lowan. Suspiro, digo:
— Vamos para a fonte.
◇
Ara, Norvell e Helus estão esperando dentro da floresta. Lowan ainda está inconsciente enquanto o seguro com apenas a cabeça para fora da fonte, pensando em como vai ser quando ele acordar.
Me lembro de um dia, na nossa infância, quando ele foi torturado pela primeira vez. Ele chorou tanto que temi que iria desidratar a qualquer momento, ele me perguntava se isso era para o bem dele, se sua mãe ainda iria amar ele, e eu não conseguia responder porque estava ocupada tentando me obrigar a fingir que não estava sentindo remorso para que a Governanta não soubesse que eu sentia algo.
"Generais não podem sentir nada."
Acho que nunca contei para Lowan sobre o corte nas minhas costas. Eu me lembro tão vividamente do dia em que isso aconteceu. Me lembro de arregalar os olhos com a visão completamente obstruída por lágrimas e tampar bem minha boca com minhas mãos completamente trêmulas para que meus gritos não saíssem. Eu nunca me senti tão sozinha. Minha cicatriz repuxa com essa memória, eu endireito a coluna para aliviar o nervosismo.
— Eu não consegui, não é? — A voz tão fraca e risonha de Lowan me puxa à realidade.
— A culpa não é sua.
Ele não responde, acho que seus olhos estão fechados novamente.
Quando não há mais sangue na água e nenhum corte parece aberto, eu o tiro de lá e apoio seu corpo em meu colo. Ele está curado, da pior forma possível. Seu peitoral forma linhas, elevações, depressões e formas que um corpo não deveria ser capaz de fazer. Acho que a pele de alguém que sobreviveu a um incêndio com oitenta porcento de seu corpo levado pelo fogo ainda estaria em melhores condições do que isso. Me pergunto se Lowan teria durado tempo o suficiente se não houvesse se sobrecarregado ao incendiar o palácio. Mas como poderia culpá-lo? Se eu pudesse, eu os teria levado ao inferno há muito mais tempo atrás.
Disponho uma blusa e calça novos em meu companheiro e o carrego até onde meus companheiros nos esperam. Ara me encara preocupada, seus lábios formam uma linha. Repilo todo o tipo de sensação possível que seu olhar poderia me causar. Encaro o chão conforme subo em um dos cavalos.
— Vamos, não temos tempo a perder — apresso com a voz baixa.
Pela manhã, já passamos do meio de Powal. Oriwest ao longe coberto por muita névoa e chuva.
Eu solto meu último sinal de fumaça.