A garotinha olhou fixamente pela janela por mais um instante e depois se virou, fechando o Flatus. Com as mãos apoiadas na capa vermelha, bufou:
— Você tem realmente que falar comigo agora? Eu queria revisar a magia do vento. Embora eu mesma tenha escrito as fórmulas e as saiba de cor, gostaria de fazer alguns experimentos antes de partir para a Colônia Briosa.
— Você vai fazer seus experimentos depois. Agora, controle sua respiração, relaxe a mente e ouça o que vou ler. Seu pai me encarregou de fazê-lo, e posso lhe garantir que não é fácil ter de pronunciar estas palavras. — Eremia desenrolou o documento e começou a ler com voz trêmula.
Morte infecta. Traição honesta. Mãos jovens.
Palavras azuis escreverão a liberdade do retorno.
Nos olhos de uma jovem Imperfeita
nascida por amor
ler-se-á o fim dos Fhar.
A Bramante Branca voltou a enrolar o papel e, depois, pegou as mãos de Morga, apertando-as nas suas.
— É a antiga profecia que há séculos nos assusta, a nós, Fhar. Okrad, o Grão-Medônio, alega que este documento é falso, e todos os outros concordam com ele. Nenhum deles quer ouvir falar nisto. Somente eu e seu pai estamos convencidos de que a profecia diz mesmo a verdade.
As mãos de Morga ficaram geladas.
— A jovem Imperfeita sou eu. Certo?
— Sim. Não há dúvida. — Eremia levantou-se do tapete e, apertando o documento, sacudiu a cabeça.
— O que é Morte Infecta? — A garota saltou em pé.
— Não sei. Como você sabe, nós, Fhar, não falamos em morte. O seu nascimento estava previsto nesta profecia. É difícil prever o que vai acontecer agora — respondeu a Bramante.
— Meu pai corre o risco de morrer? — Morga estava aterrorizada.
— Espero que não. Mas a traição honesta a que se refere a profecia é certamente a minha e a do seu pai em relação aos outros Fhar. Eu também estou em perigo. — Eremia cobriu o rosto com as mãos, que tremiam como folhas ao vento.
— Eu entendo. Vocês cometeram uma traição ao me salvar, e agora eu... terei de salvar o povo de Emiós! Mas como é que eu posso fazer isso? É uma loucura! — A garotinha sentia um turbilhão dentro do peito. O destino da profecia corria em seu sangue humano.
— A magia e a alquimia vão ajudá-la. Você precisa ir embora desta casa porque é demasiadamente arriscado que fique aqui. Caso seja descoberta, será o fim de todos nós. Na Colônia Briosa, você vai viver com os outros Dakis e será mais difícil os Fhar a descobrirem. Vai precisar ficar bem alerta. — Eremia aproximou-se da porta, mas Morga a interrompeu.
— Não entendo o que preciso fazer! — repetiu a garotinha.
— A profecia vai se realizar e você saberá como agir. — A xamã não quis explicar mais nada.
— Você vai me deixar assim? Eu preciso saber! O que significa que as palavras azuis escreverão a liberdade do retorno? — implorava Morga.
Eremia olhou-a com uma mistura de ternura e desespero.
— O vento lhe dirá. Há um céu azul à espera. Você o verá.
A jovem maga abriu os braços em sinal de rendição. Não conseguia mesmo compreender o que ela devia e podia fazer.
— O céu da Terra? Mas como é que se consegue voltar para esse planeta?
— A liberdade está no retorno — sentenciou a Bramante, triste e orgulhosa, passando os dedos na chave de bronze verde que pendia de sua pulseira.
Os olhos azuis de Morga encheram-se de lágrimas ao pensar no sofrimento que ainda teria de suportar para ser livre para viver.
— Concentre-se nas fórmulas e releia o Flatus, as suas fórmulas lhe serão de enorme ajuda. E não se esqueça de estudar a Alchemios Brevis e o Plantarium.
— O Plantarium também?! — exclamou, pensando na quantidade de livros que teria de levar consigo.
— Claro, é um livro importantíssimo; o conhecimento da vegetação e das fórmulas de Medicina Kármica é fundamental. Enfim, você deve se acostumar a agir sozinha, sem contar comigo. — A Bramante saiu, seguida por seu Obolho, deixando para trás baforadas de vapor.
A garotinha virou o rosto sulcado de lágrimas em direção à janela: a neve avermelhada, os raios da lua, as árvores sacudidas por rajadas de vento gelado mostraram-lhe quanto o caminho seria difícil e tortuoso, até alcançar a verdade da profecia. Sentiu um choque percorrer seus nervos e músculos, fechou os olhos e trincou os dentes. Numa sequência de imagens velozes, voltou a ver os rostos dos seus pais e o de Yhari.
O inesperado a aguardava do outro lado das montanhas rochosas, e a vida na Colônia Briosa representaria um verdadeiro desafio. Mas, acima de tudo, o pesadelo da Ilha Límbia, para onde Gestais, Ancilantes e U'ndários iam para morrer, dilacerava seu coração. Agora, ela conhecia a mentira dos Fhar, ao passo que os Dakis não sabiam de nada.
Pegou o Flatus e apertou-o com tanta raiva que as páginas se dobraram.
— Eu sou a Maga do Vento. Sou filha de Serunte e Animea. Sou a Imperfeita da profecia e juro aniquilar o Mal dos Fhar.
A força da vontade uniu-se à magia, que corria límpida em sua mente. Apenas o vento tinha o poder de falar do Bem, que faltava naquele maldito planeta da Galáxia Esperimea.
A garota voltou a sentar-se no tapete, cruzou as pernas equilibrando o caderno vermelho sobre os joelhos e em posição perfeita pronunciou, na ordem, as dez palavras encantadas da magia do vento: Odor, Toxicum, Nullum, Inficia, Signum, Ardeo, Defensio, Directo, Oris, Fovea, Effunfo, Carcer.
Cada uma tinha um efeito diferente, e o fato de pronunciar todas juntas fez Morga sentir-se mais forte e autoconfiante. Eram uma invenção dela, mas encerravam a misteriosa natureza do ar que todos respiravam. Contudo, ninguém suspeitava que até um suspiro houvesse o pensamento da vida.
Para acabar com qualquer tensão, a garotinha gerou a Plúvia Pitta, a primeira fórmula do Vento d'Água, que consistia num tipo de corrente de ar relaxante que podia ser criada também em ambientes fechados. Ela colocou entre os dentes um pequeno seixo proveniente da zona do Laudário, no sul de Emiós. Então, levantou os braços para o teto, dobrou a cabeça para trás e fechou os olhos, soprando com força. Dos cantos da boca saiu-lhe um sopro delgado que ao subir coloriu-se de laranja; o vórtice tomou forma, girando ao redor das paredes do aposento. No centro da espiral de vento formou-se uma pequena nuvem muito densa. Morga reabriu os olhos, cuspiu o seixo e, escancarando totalmente a boca, gritou:
ODOR
O vento condensou-se, e uma chuva finíssima e perfumada caiu do teto e molhou o rosto e os cabelos da jovem maga. Em seus lábios irrompeu um sorriso orgulhoso: a Plúvia Pitta lhe saíra perfeitamente. Com desprezo, pensou estar preparada para derrotar qualquer outro diabolismo que os Fhar pudessem inventar. A calma regenerou sua força, e seu rosto tornou-se tão luminoso que as pequenas sardas roxas brilhavam como faíscas.
— Usarei a magia do Vento d'Água, de Fogo e de Terra. Varrerei a ideia insensata da eternidade. A morte infecta não me assusta. O meu sangue é mais vermelho que essa lua estúpida que mancha o candor da neve. A natureza está comigo. O vento vai me ajudar. — Morga apertou o Flatus contra o peito, jurando não recuar sequer diante das mais poderosas magias dos Fhar. Levantou-se e permaneceu parada de pé diante da janela durante dez minutos, duração exata do relaxamento provocado pela magia da Plúvia Pitta.
A harmonia das Sinfobaixas a distraiu dos seus pensamentos. Naquele momento, o Penolho marcou oito horas em ponto. A garotinha desceu correndo ao Panacedarium para ver o que Eremia estava fazendo. Debaixo do braço carregava seu caderno vermelho, a Alchemios Brevis e o Plantarium.
A Bramante estava ocupada enchendo frasquinhos de vidro e pequeníssimas caixas de madeira. Os instrumentos do laboratório funcionavam a pleno vapor: o Rôndolo estava cheio de líquidos coloridos e espirais de vidro mole já pendiam do Suflio e pingavam dentro das ampolas.
Fim da Quarta Parte.