Margot

By Aldemir1994

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Após presenciar a traição do namorado com sua melhor amiga, a pobre Margot decide ligar a velha moto do pai (... More

Margot

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By Aldemir1994

-Fiquem com suas vidinhas, seus moleques! – gritou Margot aos seus colegas de faculdade, enquanto chorava – especialmente você, Júlio, seu grande cafajeste!

A garota jamais poderia imaginar que seu namorado a estava traindo com sua melhor amiga, Clara, enquanto fingia fidelidade.

"Não é o que você está pensando" dizia Júlio, enquanto olhava para a pele morena, olhos castanhos cheios de lágrimas e para a expressão de sua namorada traída, sem ter como explicar aquela cena vergonhosa.

O rapaz havia sido pego em flagrante, dando um beijo cinematográfico em Clara! Na verdade, nem mesmo Zeus teria como escapar de uma situação como aquela.

Pensando bem, tudo estava na cara desde o início, com todos aqueles presentes e passeios de Júlio, bem típicos de quem esconde uma traição, mas nada daquilo importava, nem mesmo o fato de Clara (de quem Margot era amiga desde o ensino médio) ser "a outra", afinal de contas, nada poderia ser feito para remediar a questão.

Por isso Margot correu até a garagem de sua casa, sem olhar para trás, decidida a fugir daquele mundinho que lhe trouxera tamanho sofrimento.

Após cobrir o rosto e enxugar um pouco as lágrimas, Margot abriu a garagem e removeu um grande pano amarelado de cima de um objeto grande que, graças a luz daquele dia abençoado, revelou seu valor, tal como o ouro de Atahualpa...

Uma Tour Glide FLT 1980.

A moto havia pertencido ao pai que, em sua juventude, fora chefe de um grupo de motoqueiros de estradas (época que, aliás, o homem lembrava-se com saudade).

Margot costumava consertar aquele motor com seu falecido pai, mas precisou terminar o serviço quando este veio a falecer, no ano anterior, vitimado pela guerra.

Após pegar um pequeno rádio prateado (que o pai costumava chamar de "pratinha") e o celular, Margot colocou seu capacete, encheu o tanque da Tour Glide FLT, montou-a como uma verdadeira Amazona e ligou a potente máquina, partindo com ela para a estrada, sem jamais olhar para trás.

"Me desculpe, papai, você não ia gostar de ver sua menininha fugir assim", disse a garota, enquanto tentava segurar as lágrimas por baixo do capacete vermelho.

A estrada devia estar bastante quente, pois era possível ver miragens no asfalto, porém, aquilo tudo, de alguma forma, trazia ao coração de Margot a sensação de liberdade.

Sim! Ela estava longe de suas falsas amigas, namorado traidor, fuxicos cruéis dos colegas de classe e até dos olhares piedosos da mãe.

Aquela garota, de pele morena como o ébano do Oriente, olhos castanhos e lágrimas que escorriam pelo capacete, jamais seria feita de boba de novo! Nunca mais voltaria àquela faculdade ou para sua casa (onde, devesse dizer, a garota se sentia perdida sem os conselhos do pai).

Qual era o destino? Para onde ela iria? Nem o vento saberia dizer, talvez sendo esse o motivo que lhe levava a soprar com força naquela moça, como se tentasse impedi-la de se afastar demais de seu lar.

Conforme o tempo passava, já era possível ver rochas e terrenos vazios, sem demarcação, como se costuma encontrar na imensidão das estradas, mas Margot se sentia como uma águia, cruzando o céu do asfalto, com um sorriso de confiança no rosto, apesar de ainda haver algumas lágrimas.

Diminuindo um pouco a velocidade do veículo, a garota ligou o "pratinha" e começou a ouvir a emissora favorita de seu pai, tentando esquecer do beijo babado de Júlio e Clara.

"Senhoras e senhores", disse o locutor, "fiquemos agora com as notícias. À seguir, teremos uma apresentação musical e nosso 'quadro dos apaixonados'".

Parando sua Tour Glide próximo a uma árvore, Margot tirou seu capacete, revelando lindo cabelos lisos e negros, deitou-se debaixo da copa verdejante e, aproveitando aquela sombra providencial, começou a ouvir o noticiário.

De acordo com o locutor, o barril de petróleo da Sildávia havia valorizado 7% em relação ao valor do ano anterior; a guerra franco-ghalaryana prometia resultados favoráveis a aliança imperial; o imperador do Japão, Naruhito, havia recebido o embaixador do Brasil para um chá e, por fim, o "Dia dos Namorados" prometia render ao mercado de bombons 450 milhões a mais do que nos últimos três anos.

Como não queria pensar no Dia dos Namorados, Margot procurou escutar a canção anunciada pelo locutor que, com palavras solenes, disse ser a canção mais triste que já havia ouvido nos últimos seis meses: I'm So Lonesome I Could Cry.

"Papai gostava dessa música", suspirou Margot, enquanto olhava para o céu azul e limpo, para as planícies vazias à sua frente, pedras grandes e pequenas, para as ramagens daquela árvore solitária e, com lágrimas, se lembrava da traição que havia sofrido.

As palavras daquela música entravam em seu coração e lhe faziam recordar dos tempos em que o pai consertava motores junto com ela, quando a garota tinha meros 12 anos, sempre dizendo "filha, o motor é como um amigo; se você tiver paciência, ele vai dizer qual é o problema".

Uma vez, enquanto resolviam um problema com o cebolão do radiador de um carro, a garota perguntou "o que o motor está dizendo?", ao que o pai respondeu "que sua mãe vai se zangar se nos atrasarmos para o jantar", provocando risos em Margot.

Era bom relembrar daqueles dias floridos do passado, mas não poderia ficar sem rumo por muito tempo, pois agora aquela garotinha de 12 anos era uma mulher de 20, traída, decepcionada e cheia de mágoa no coração.

Por isso, enquanto limpava a poeira de sua calça jeans e abria o zíper de sua velha camisa de couro (presente de sua mãe), Margot pensou no que faria a partir dali quando, saindo de sua momentânea distração, ouviu o locutor prosseguir com a programação, com aquela voz que, para os padrões de um radialista, deveria ser formidável:
-Senhoras e senhores, agora seguimos para o mais alegre (ou triste) momento de nosso programa, o "quadro dos apaixonados", então, vamos todos... esperem um momento... desculpem todos, mas parece que há um rapaz aqui, no programa, que deseja compartilhar algumas palavras com todos. Diga meu jovem, quem é você, quantos anos tem, do que gosta e do que não gosta, sonhos para o futuro, passatempos, se quer a paz mundial, etc.

-Tudo bem – começou o rapaz – sou Lúcio, tenho 21 anos... desculpe, mas poderia repetir as outras perguntas? Tinha algo haver com a paz mundial?

-Fascinante – disse o locutor – mas agora nos diga, quem é a pessoa por quem você tem algo a dizer?

-Tudo bem, ela é uma amiga da faculdade... bom, na verdade nem sei se ela lembra de mim... nos conhecemos desde a 1° série do primário, mas acho que ela tinha outros afazeres, então ficamos um pouco distantes, ela...

-Surpreendente – suspirou o locutor, enquanto pedia um copo de água para a direção do programa – mas nos diga a todos, pois estamos morrendo de curiosidade, como se chama essa rosa no meio do deserto? Essa leoa da savana? Essa sniper siberiana?!

-O que? – disse o rapaz.

-Desculpe garoto... é efeito da guerra – disse o locutor, enquanto pegava o copo de água e aliviava a secura da garganta.

-Ahm, tudo bem, mas o nome dela é Margot Rodriguez. Nós fazemos a mesma faculdade, mas ela fugiu a algumas horas de casa porque... bem... se ela estiver ouvindo não ficará feliz comigo se eu...

-Que ótimo, meu jovem – interrompeu o locutor – mas temos um horário a cumprir e você está enrolando demais, tente ser mais franco e direto. Sei que deve estar nervoso, mas sua invasão fez a audiência aumentar, então dispensamos os seguranças, agora você pode falar de uma vez, sem medo.

Enquanto ouvia o programa, Margot ficou sem entender o que Lúcio, seu antigo colega de classe, estava fazendo naquela rádio e porque ele estava falando dela, porém, a garota começou a se preocupar que aquele rapaz, que sempre fora tão tímido, não aguentasse a tensão e revelasse ao país inteiro a traição de Júlio com Clara...

Seria uma humilhação terrível e insuperável para Margot! O que poderia fazer para terminar com aquele terror indescritível?! Sem resposta, precisou continuar a escutar as palavras de Lúcio, rezando a Deus para que o rapaz não a expusesse ao ridículo.

Enquanto a garota sentia as mãos gelarem, o locutor pediu que o rapaz continuasse, sendo prontamente atendido:

-Ok... é só dizer tudo e pronto... Margot, eu não sei se você está escutando isso, mas como gosta desta emissora, acho que está me escutando sim... você não se lembra muito de mim, ou talvez se lembre, não tenho como saber direito, já que você não fala comigo a bastante tempo. Sabe, uma vez eu me perdi no parquinho e foi você que me levou até a professora, se lembra? Você sempre esteve lá. Ainda me lembro de uma outra vez, quando você tinha 15 anos, em que eu subi no telhado para tentar pegar uma bola de tênis e a escada caiu... e eu fiquei preso lá em cima, escorreguei e quase cai... foi você que me puxou da janela e me deu um cascudo para que eu nunca fizesse algo tão estúpido de novo, hahaha... depois você me abraçou e disse "idiota! E se você tivesse caído? O que eu faria?"

O rapaz parecia bastante envergonhado com tudo aquilo, considerando seu tom de voz, mas para Margot, que estava ouvindo aquilo tudo, o momento de coragem de Lúcio era muito inesperado.

A garota começou a pensar no quanto havia se afastado de seu amigo, sem qualquer razão que não fosse o próprio tempo, afinal de contas, nem todas as amizades duravam.

"Que pena, acho que vacilei com o Lúcio" disse Margot enquanto continuava a ouvir o pronunciamento do antigo amigo:

-Sabe de uma coisa, Margot? Uma vez você disse que eu não seria tão atrapalhado ou desligado se fosse mais confiante... mas acho que confiança não é o meu ofício... desculpe. Mas você também não deve estar passando por um momento de grande confiança, quer dizer, você saiu de casa e ninguém sabe onde você está, então... eu só queria dizer que sinto muito sua falta. Não estou falando apenas desse seu sumiço, mas do nosso afastamento, entende?

-Claro que eu entendo, seu bobo! – disse Margot, que acabava de ligar para a emissora com o celular.

-Ma-Margot?! O-oi, você está bem? – perguntou Lúcio.

-Chega de enrolação! Agora fale logo o que você queria dizer a tanto tempo.

-Certo... Margot, sei que foi um dia difícil, mas só esquece essas coisas... quer dizer, você sabe consertar motores! E qualquer cara que não dá valor a isso, apenas não te merece. Além do mais, sempre achei a Clara uma mesquinha de nariz empinado... sabe, ela sempre foi tão confiável quanto remédio de charlatão.

-Hahaha – riu Margot – você sempre foi engraçadinho, mas acho que seu tempo está acabando, não é verdade?

-Sim, ele só tem mais alguns poucos minutinhos – disse o locutor.

-Tudo bem... Margot, eu gosto de você... gosto de verdade. Você tem personalidade forte, não tem medo de sujar as mãos de graxa, aprendeu a consertar motos e carros muito melhor que meu primo, o Debas, sabe a qualidade da boa gasolina e é tão bonita quanto uma ferrovia recém inaugurada... hahaha, quer dizer, você... era mais fácil falar com você quando éramos mais jovens. A questão é que... bem, eu...

-Fale de uma vez! A audiência está no topo! – falou alto o locutor, enquanto olhava os números subirem como a conta bancária de um deputado.

-Está certo! Certo! Margot... eu quero ficar ao seu lado, consolar você na tristeza... te proteger de gentalha como o Júlio... te abraçar nos dias frios, igual um esquimó... fazer gracinhas para te fazer rir, como quando éramos crianças... e torcer pelo seu sucesso. Margot... eu te amo do fundo do coração e gostaria muito que você estivesse aqui, junto comigo, para contarmos as estrelas do céu enquanto ouvimos alguma música do Elvis.

-Finalmente foi ao ponto – disse o locutor - e atingimos recorde de audiência.

-Por favor – pediu Lúcio – estou em um momento importante aqui!

-De fato – disse Margot, enquanto segurava as lágrimas.

-Margot... você quer se casar comigo? Viver em uma bela casa nas montanhas e ter 7 filhos? Depois arrumaremos dois labradores! O que acha?

-Aceito tudo – disse Margot, com risos – mas será apenas um filho e, no lugar dos cachorros, prefiro gatos.

-Fechado! – concordou Lúcio, enquanto a equipe de rádio aplaudia o casal.

Margot levantou-se da sombra de sua árvore, desligou o pratinha, montou em sua moto e colocou o capacete, preparando-se para partir em direção a Lúcio, seu príncipe encantado que caia de telhados, se perdia em parques e era fã de RPG.

Com o veículo em movimento, a garota sentiu o vento, o calor do Sol, a sensação de liberdade e, mais importante que tudo, o chegar de um novo amanhã, onde ela poderia ser tão feliz quanto fosse possível...

Ao lado de seu querido e atrapalhado amigo de infância.

FIM


NOTAS:

Tour Glide FLT 1980:

De estilo bastante ousado para os padrões da época, a Harley-Davidson FLT Tour Glide foi uma moto lançada pela Harley-Davidson em 1980, sendo muito importante para a história da empresa, não apenas por ter introduzido inúmeras recursos tecnológicos (muitos dos quais ainda são padrão no modelo Touring), mas por seu valor histórico.

O Pai de Margot tinha excelente gosto para motos!

Atahualpa:

Atahualpa (provavelmente 1502 - 1533) foi o 13° e último imperador do império Inca. Tornou-se imperador após derrotar seu irmão, Huáscar, porém, a despeito da grandeza de seu império, não pôde evitar a conquista espanhola.

Atahualpa acabou por ser capturado por Francisco Pizarro (1476 - 1541) e, apesar de ter pago uma extraordinária soma em ouro, terminou sendo morto por enforcamento, em 26 de julho de 1533.

I'm So Lonesome I Could Cry:

Escrita e gravada por Hank Williams, ainda em 1949, "I'm So Lonesome I Could Cry" (ou "Estou tão solitário que poderia chorar") fez parte do álbum "Aloha from Hawaii Via Satellite", de Elvis Presley, lançado 1973.

Apesar de Williams ter sido creditado como o criador da bela canção, existem possibilidades reais de que ela tenha sido composta por Herbert paul Gilley (1929 - 1957), um compositor e promotor de música country, nascido no Kentucky.

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