Ela
Passado
–– Isabela, podemos conversar um minuto na minha sala? –– perguntou Soraia, a diretora do hospital particular no qual ela acabara de conseguir uma vaga, parada à porta de sua salinha. –– Preciso te inteirar em alguns assuntos.
–– É claro –– E Isabela ergueu-se da mesa pequena, levando consigo uma prancheta com algumas folhas presas. Fazia anotações sobre uma paciente com intolerância à lactose que se consultara com ela no dia anterior.
Ambas caminharam pelo corredor longo e entraram no elevador, indo até a sala da direção, que ficava no décimo sexto andar. De lá dava para ter uma boa vista da metrópole, e do lado de fora, a gritaria de uma feira perto, assim como de buzinas pela avenida, era bastante perceptível.
–– Ainda preciso te mostrar algumas fichas na administração de alguns pacientes que você vai atender nas próximas seman... –– Foi dizendo Soraia quando ambas adentraram o lugar, contudo, ela parou ao vislumbrar algo pela visão periférica. Ela virou-se para a janela, e os olhos se arregalaram tanto que quase foi possível eles saltarem das órbitas. –– Ai, meu...
Isabela virou-se na direção da janela alta, seguindo o olhar aterrorizado de sua superior. E o que ela viu nos três segundos a seguir além de também a ter aterrorizado, a marcou para sempre e ainda hoje a faz ter pesadelos.
Um avião de médio porte, daqueles que devem levar umas trezentas pessoas e que até então deveria ter pousado em segurança no aeroporto a alguns quarteirões dali assim como todo e qualquer avião, ao que parecia, se encontrava com várias turbinas pegando fogo simultaneamente e descia descontrolado do céu numa velocidade impressionante, ficando cada vez mais próximo dos prédios que rodeavam o hospital.
–– Ele vai cair! –– gritaram as duas, correndo até a larga janela e se debruçando no parapeito interior, onde vasinhos com plantinhas artificiais estavam dispostos, enfeitando o ambiente.
Soraia abriu o vidro e o barulho ensurdecedor que vinha das turbinas em chamas terminou de deixá-las em pânico.
–– Ai, meu Deus –– reiterou a chefe no exato instante que o avião fatalmente colidiu contra um prédio alto. O estrondo foi tão forte que o hospital inteiro estremeceu com força e elas se desequilibraram.
Isabela, em estado completo de choque, piscou algumas vezes, engoliu em seco sem parar, suou frio e mal conseguiu respirar, ficando a ponto de desmaiar, enquanto via o desastre se desenrolar diante de seus olhos. Isso não pode estar acontecendo, repetiu em sua cabeça diversas vezes, observando a nuvem de poeira tingir o céu de cinza e o fogaréu que vinha da construção colossal e do avião que acabara de cair ali brilhar num tom vivo de laranja por entre a mancha acinzentada.
Então ela percebeu algo. Que a deixou ainda mais aflita.
Ela conhecia aquele prédio. Ele ficava... ao lado de um posto de gasolina que ela costumava ir. Pois levava o almoço para o pai lá, todos os dias nos últimos seis anos.
Aquele prédio estava ao lado do posto onde seu pai trabalhava.
Com as mãos trêmulas e com o coração batendo rápido e alucinado, Isabela sacou o celular do bolso e discou o número do pai.
–– Atende, atende, atende –– pediu, numa prece, levando o aparelho até o ouvido enquanto andava de um lado para o outro na sala. Sirenes ruidosas soavam cada vez mais perto na cidade, fazendo seus ossos gelarem. –– Atende, papai, por favor. Atende! Atende!
–– Ah, meu Deus –– Tornou a falar sua superior, com uma mão no coração e a face coberta de lágrimas, com o olhar fixo na nuvem de fumaça.
–– Não foi possível completar sua chamada –– A voz roborizada dissera do outro lado. –– Mantenha-se na linha para... –– Isabela encerrou a ligação, discando novamente o número do pai.
Sem nem perceber, ela pegou o rumo da saída, deixando a chefe sozinha e toda se trepidando, e correu aos tropeços pelo hospital, descendo as escadarias com pressa, ainda com o celular grudado ao ouvido, e sentindo as pernas querendo ceder. Mas tinha que vê-lo. Tinha que ir até o posto e ver se ele estava bem. De repente... de repente ele nem estava lá no momento da colisão. De repente saíra para resolver algum problema. Já fazia tempo que precisava ir ao Detran e emitir uma identidade nova.
Arfando, Isabela chegou ao térreo, girando de um lado para o outro. A correria das pessoas a desnorteou por um instante, e ela se viu perdida no meio da multidão que esbarrava com tudo nela, incapaz de encontrar a saída para a rua.
Se concentra! Se concentra!, repreendeu-se, fechando os olhos por dois segundos. Fazia pouco tempo que começara a trabalhar ali, então não lembrava de toda a planta do prédio, mas, recordava-se que uma das entradas laterais dava na avenida que levava até o posto de gasolina. Entrara por lá quando chegara atrasada dias antes.
–– Ali é a farmácia... –– Ela girou, se atentando no ambiente caótico. Pelo que notara, as pessoas pensavam que se tratava de um ataque terrorista, e não um acidente. –– E ali a emergência... –– Virou-se outra vez, finalmente vendo a portinha de vidro. Acima, a palavra SAÍDA numa placa verde era evidente. Então ela foi.
Na avenida a situação era ainda pior que no hospital. Veículos a toda velocidade na contramão, diversas outras sirenes ressoando ao mesmo tempo e lhe causando dor de cabeça, pessoas disparando na calçada e no meio da avenida movimentada, uma caindo em cima da outra. Como ela era a única a ir na direção do acidente, era empurrada e derrubada praticamente a cada dois metros. Porém, sem desistir, se ergueu todas as vezes, segurando-se nas paredes dos outros edifícios, ainda tentando contatar o pai por ligação, que não atendia de jeito nenhum.
Cada vez que ficava mais próxima do local do acidente sentia a atmosfera ficar mais e mais quente e abafada, e seus pulmões lutaram com afinco para trabalhar e lhe trazer ar. O suor descia por sua testa e pelo corpo, ensopando sua roupa toda. A vertigem estava quase a vencendo e ela piscou, recobrando a consciência na marra.
Levantando a cabeça enquanto corria, tudo o que via eram labaredas altíssimas flamejando naquele prédio que antes era tão bonito. Partes gigantes do avião se desprendiam dele, caindo em chamas e causando baques retumbantes no asfalto fervente. Gritos desesperados de socorro chamaram sua atenção e ela notara algumas silhuetas no parapeito da construção, lá no vigésimo andar. Outras silhuetas também despencavam de outros andares, esborrachando-se no chão.
Mais para baixo, pequenas explosões avisavam que uma maior provavelmente levaria todo aquele quarteirão pelos ares a qualquer momento, e ignorando os gritos de policiais e de bombeiros experientes cuspindo ordens, ela desviou dos caminhões vermelhos, dando a volta neles, e, sem perceber, entrou em uma área instável.
Um estalo agudo a fez olhar para cima outra vez.
Um pedaço do que parecia ser a asa do avião havia se soltado e desabara. E cairia nela se não fosse por alguém que agira rápido e a segurara com tudo pela cintura, a puxando para trás. O alumínio que a esmagaria se estatelou ao seu lado um segundo depois. Por conta do impacto, seus ouvidos zumbiram.
–– Moça, você quer morrer? –– questionou a pessoa em cima dela, com um macacão antichamas e capacete com viseira. Um bombeiro. Com incríveis olhos esverdeados encarando-a assustado. Se ele tivesse vinte anos era muito.
–– O meu pai... –– falara ela, tentando se soltar, contudo, o rapaz era forte demais e ela estava fraca demais. –– O meu pai! Ele trabalha no posto! Por favor... Eu preciso ir. Eu preciso ajudá-lo!
E Isabela encarou o posto de gasolina há alguns metros dali, com algumas partes pegando fogo como o restante daquele inferno.
–– Vou tentar –– garantira ele, erguendo-se do chão. –– Olhe para mim! Vou tentar. Preciso que você volte por onde veio. Não é seguro!
–– Socorro! Socorro! Socorro! –– As vozes distintas continuavam a gritar, em profunda agonia. E no fundo ela sabia que muitas daquelas pessoas não conseguiriam ser salvas diante das circunstâncias. –– Alguém me ajude!
Entorpecida e limpando as lágrimas que manchavam o rosto, ela suplicou outra vez para o bombeiro, quase sem voz, pois já inalara fumaça tóxica demais:
–– Por favor, encontre o meu pai!
–– Eu prometo, mas primeiro quero que saia daqui!
Outro bombeiro veio ao auxílio do companheiro velozmente, e terminou de arrastá-la para longe do desastre e de todo aquele caos de fogo, morte e destruição.
Foi com um certo alívio que, mesmo se afastando no colo do outro, ela viu por sobre seu ombro que o rapaz que a parara antes cumpria de fato com o prometido, seguindo com pressa por naquele caminho que ela ia. Para ajudar seu pai.
Ele ia salvá-lo!
Contudo, seu alívio foi momentâneo porque um estouro poderoso e retumbante exatamente no posto de gasolina arremessou bem longe o bombeiro que ia salvar seu pai, além de derrubar totalmente a estrutura do local onde o homem que a criara com tanto amor estava.
∞
Ela arqueja de repente, assustando Sebastian, que dirige pela rodovia pouco movimentada. Com o coração aos pulos dentro do peito, respira fundo e tenta acalmar as batidas tempestuosas.
–– Pesadelo? –– questiona o namorado, olhando-a de relance, com preocupação no rosto.
Ela assente. Já fazia meses que não sonhava com a tragédia que tirara a vida do pai e de dezenas de outras pessoas, inclusive daquele bombeiro que ela jamais esquecerá. Seus olhos verdes e tão brilhantes a encarando por trás do visor é uma lembrança que nunca vai sair de sua memória.
A sensação de culpa a assola quando se recorda que ele perdera a vida porque ela fora irresponsável, se enfiando no meio de um acidente aéreo em pleno curso. Talvez, se ela não tivesse implorado que ele fosse até o posto naquele exato momento, o rapaz estivesse vivo hoje.
Não sabe sequer o nome do homem que a salvara de um esmagamento e tentara também salvar seu pai, adentrando um posto de gasolina que poderia explodir a qualquer momento. E explodiu. Matando-o na hora.
Infelizmente este é um pesar que a perseguirá enquanto ela viver.
Sem aviso prévio, lágrimas espessas descem por seus olhos.
–– O que foi, Bela? –– Sebastian quer saber, alarmado com o choro repentino da namorada. No banco de trás, seguras nas cadeirinhas, Rebeca e Gabriela dormem profundamente. Já do lado de fora, há apenas uma estrada pavimentada, que se estende até se perder de vista, cercada de árvores. O sol brilha com força, iluminando o dia. –– O que aconteceu?
–– Ele salvou a minha vida e eu sequer sei seu nome –– sussurra, finalmente encarando-o. –– É mais uma das várias cicatrizes que tenho no coração. Ele me salvou de ser esmagada.
–– Do que está falando? –– questiona, franzindo a testa.
–– Do acidente –– responde ela.
O vinco na testa de Sebastian se torna maior.
–– Você viu a tragédia?
Ela consente novamente.
–– Do momento que o avião caiu até as explosões e o desabamento do prédio atingido.
–– Meu Deus, Bela.
–– A única que sabia disso até então era a Cris. –– Então, Isabela começa a discorrer sobre o desastre para Sebastian, que, mesmo mantendo os olhos na estrada, presta atenção em tudo o que a namorada diz. –– Nunca falei para ninguém que estive lá –– fala, limpando as lágrimas com o dorso da mão. –– É doloroso demais me recordar de tudo o que vi naquele dia. É doloroso saber que meu pai perdeu a vida ali. E que um bombeiro jovem e que mal tinha começado a vida adulta também porque implorei que ele fosse para lá. –– E ela abaixa os olhos.
–– Ah, Bela... –– murmura ele, parecendo se sentir impotente. Tanto por estar dirigindo e não conseguir abraçá-la agora quanto por não conseguir livrá-la da imensa dor que a rasga por dentro. –– Eu estive lá. Trabalhei por quase 72 horas no reconhecimento das vítimas junto com outros peritos. Foi... –– Ele expira fundo. –– Foi terrível. Se para mim, que só cheguei horas depois foi horrível, imagino para você que viu todo o desenrolar. Que esteve dentro do desastre e quase perdeu a vida também. Mas nada disso foi culpa sua, meu amor. Ele era um bombeiro que estava fazendo seu trabalho e morreu honrosamente em serviço. Foi uma fatalidade.
–– Por que eu não sinto isso? –– pergunta em um murmúrio.
–– Porque você é tão compassiva que, se não consegue impedir algo ruim de acontecer, acha que deve se responsabilizar por isso –– responde, e leva a mão que estava no freio para a coxa esquerda dela, apertando-a de leve. –– Esse tipo de situação não está ao alcance de ninguém. Você é humana, Bela. Não uma super-heroína. Coisas ruins acontecem. Eu vejo o tempo todo, mas quase nunca não há nada que eu possa fazer para evitar. E eu me sinto culpado, mesmo não sendo.
Ela sabe ao que ele se refere: ter se divorciado de Milena com ela estando tão fragilizada. Mesmo fazendo o possível para vê-la melhor, ele acredita que poderia ter feito mais e que tudo o que fez não foi o suficiente. E se sente culpado por isso.
Ela sorri.
–– Bom, você é tão compassivo quanto eu, então.
Ele ri baixinho.
–– Estamos chegando –– diz, girando o volante e adentrando outra pista inclinada, cercada por uma floresta densa. Ela conhece bem esse caminho. Eles finalmente estão descendo a serra. –– Em pouco menos de meia hora chegaremos.
Ela engole em seco. Não sabe ainda se está preparada para isso.
–– Aqui é lindo. –– Isabela se pega fascinada com a paisagem, como das outras vezes, e olha atentamente para baixo, vendo as cidades da região e, mais próximo, as duas pistas de outra rodovia se "cruzando". Como uma é alguns metros mais alta que a outra, de cima, onde eles se encontram, se dá a impressão de que elas são entrelaçadas. A construção é bastante interessante.
Ainda mais embaixo, um rio reluzente segue seu curso, e há algumas casas na serra.
–– Eu gostava muito de morar aqui –– Sebastian comenta.
–– Então por que foi embora?
Ele dá de ombros.
–– Não acho que conseguiria alcançar todos os meus objetivos se continuasse aqui.
–– Já alcançou seu maior objetivo? –– inquire ela, curiosa, arqueando as sobrancelhas bem arrumadas.
Sebastian lhe lança um sorriso zombeteiro.
–– Ainda não, mas está quase. E não, por enquanto não vou te falar qual o meu maior objetivo.
Isabela estreita os olhos.
–– Por quê?
–– Você vai saber na hora certa.
–– Tá fazendo mistério demais –– acusa ela. –– Tá achando que eu sou da gangue do Scooby-Doo?
Ele explode numa gargalhada de repente, sacudindo os ombros e balançando a cabeça, o que a faz rir também. Os olhos azuis de Sebastian estão até mais claros conforme se aproximam mais de sua cidade natal, ela observa. Como isso é possível?
Então eles continuam conversando sobre o início da vida adulta. Depois da faculdade ambos ficaram um tanto desorientados sobre o que fazer a seguir e comentam sobre as dúvidas que o cercavam constantemente.
–– A vida adulta deveria vir como manual de instruções –– diz ele, divertido, e diminuindo a velocidade para fazer mais uma curva fechada na serra. –– Olha que lindo. –– E indica com um aceno a vista à esquerda deles.
Agora as cidades estão bem pertinho e juntinhas, indo de um lado até o outro, e é possível ver com bastante clareza o mar reluzindo graças ao sol.
–– Sorte de quem mora naquele bairro que acabamos de passar.
–– Ele fica duzentos metros acima do nível do mar, é o bairro mais alto de toda a baixada –– informa Sebastian. –– Uma vez, fui com a minha irmã nesse bairro. Ela foi buscar uma encomenda. Não me recordo agora o que era, mas, quando subimos, foi incrível. Deu para ver o litoral inteiro. –– E ele continua a narrar mais histórias da irmã. Por sua voz é nítido o tanto de saudade que sente.
Já terminaram a descida da serra e o pânico de Isabela aumenta, mesmo que ela tente se controlar. Eles entram na cidade pouco depois, e Sebastian conta algumas curiosidades sobre os municípios enquanto prossegue o caminho. Ela o ouve com encantamento, pensando que ele poderia muito bem ser historiador porque detalha absolutamente todos os fatos, incrementando com datas e nomes.
Espiando com o canto do olho ela nota que Gabi acordara, e observa quietinha a paisagem se transpor pela janela.
Sebastian, ainda falando os acontecimentos históricos, passa por uma rodoviária, e entra em um túnel, saindo em outra larga avenida, bem mais movimentada. Ele liga a seta e vira à direita, indo até uma rua residencial, parando na frente de um portão branco.
–– Chegamos. –– E ele suspira, um tanto ansioso, dando a volta para abrir a porta para que ela saia.
O coração de Isabela acelera quando o portão se abre e uma mulher de cabelos prateados, olhos tão azuis quanto os de seu namorado e estatura baixa sai por ele, com um sorriso gigante no rosto pouco enrugado.
–– Filho! –– Ela o enlaça em seus braços curtos, apertando-o com toda a força que possui em seu corpo franzino.
Isabela se apruma e fecha a porta.
–– Mãe, essa é... –– começa ele, olhando para ela.
–– Isabela! –– finaliza a mãe de Sebastian. E o sorriso já enorme fica maior ainda. Ela o larga repentinamente e desta vez envolve os braços ao redor da nora. –– Como você é linda!
–– É o que vivo dizendo a ela... –– E ele coça a nuca. –– Bela, essa é a minha mãe, Edite.
Sentindo o abraço carinhoso da sogra, ela percebe que ficara nervosa à toa.
–– Agora você também é da família, querida –– diz ela, segurando o rosto de Isabela com as mãos pequenas. –– Seja bem-vinda.