Shirley (1843)

By ClassicosLP

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Obra da inglesa Charlotte Bronte. More

Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37

Capítulo 28

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By ClassicosLP

Phoebe

Nessa noite Miss Keeldar entendeu-se muito bem com Sir Philip, pois desceu na manhã seguinte com um excelente humor.

– Quem quer dar um passeio comigo? – perguntou para as primas Isabella e Gertrudes.

Tal convite da parte de Miss Keeldar às suas primas era coisa tão rara que elas hesitaram antes de aceitar. Como Mrs. Sympson aprovou a ideia, as moças puseram os chapéus e partiram.

Elas não tinham o hábito de caminhar juntas, porque Miss Keeldar não procurava muito o convívio com as mulheres, com exceção de Mrs. Pryor e Miss Caroline Helstone.

Era amável com as primas, embora habitualmente pouco tivesse a lhes dizer. Todavia, naquela manhã excepcional Miss Keeldar também estava com um humor excepcional. Encontrou assuntos para uma conversa de interesse das três que fez brilhar o seu espírito.

Por que estava ela tão alegre? As causas da sua alegria deviam vir, provavelmente, dela própria. O dia não estava bonito, era um dia de outono, pálido e enevoado. Os caminhos dos bosques estavam úmidos e o céu coberto e, contudo, o coração de Miss Keeldar parecia conter toda a luz e todo o céu da Itália.

Ao regressar a Fieldhead, algumas instruções que tinha que dar ao jardineiro obrigaram-na a ficar para trás das primas. Quase vinte minutos se passaram entre o momento em que as deixou e o seu regresso a casa. Durante esse tempo falara com o jardineiro e detivera-se depois no pátio, próxima à porta de entrada. O toque da sineta para o lanche a fez entrar. Pediu desculpas e subiu para o andar superior.

– A Shirley não vem lanchar? – perguntou Isabella. – Ela disse que estava com fome.

Uma hora depois, como não saiu do quarto, uma das primas foi procurá-la e a encontrou sentada na cama com a cabeça apoiada nas mãos. Estava muito pálida, pensativa e quase triste.

– Está doente? – inquiriu a prima.

– Um pouco indisposta – respondeu Miss Keeldar.

Estava, contudo, bem diferente de duas horas atrás, mas a mudança de humor não foi explicada; uma mudança que se dera em dez minutos, fosse qual fosse sua causa, o certo é que passasse tão repentinamente como havia chegado, como uma nuvem de verão. Miss Keeldar, portanto, menos exuberante, tomou parte na conversa durante o jantar e durante o serão. Interrogada sobre os pormenores da sua saúde, afirmou sentir-se perfeitamente bem; fora apenas uma fraqueza momentânea, que não merecia qualquer reparo. E, contudo, via-se bem que se dera uma transformação na moça.

No dia seguinte, na semana, na quinzena, aquela sombra nova e particular permanecia no rosto e nas maneiras de Miss Keeldar. No seu olhar, nos movimentos e até na sua voz fazia-se notar uma estranha inquietação. Não tardou a tornar-se evidente que falar-lhe dessa mudança era contrariá-la. Procurava evitar o assunto, e depois, se persistiam, repelia-o com a altivez que lhe era peculiar. Se lhe perguntavam se estava doente, ela respondia efusivamente que não.

Fazia grandes esforços para se mostrar alegre e parecia indignar-se contra si própria por não conseguir.

"Como ousa deixar ver suas fraquezas e trair suas imbecis ansiedades? Desapareça com elas, eleva-te acima delas e, se isso não lhe for possível, esconda-as", falava consigo própria.

E para escondê-las fazia o que podia. Tornou a ser resolutamente alegre em sociedade. Quando estava cansada do esforço, procurava não a solidão do seu quarto, mas a solidão mais selvagem dos campos, os quais ela podia percorrer montada na sua jumenta Zoé. Passava metade do dia em passeios a cavalo.

Tinha a mesma resposta para quem a interrogava: "Estou perfeitamente bem, não tenho nada!"

E, na verdade, era preciso que estivesse bem de saúde para suportar as intempéries as quais se expunha. Chovesse ou fizesse sol, houvesse calma ou tempestade, ela não deixava de dar o seu passeio diário a cavalo até o pântano de Stilbro, com o Tártaro, infatigável, ao seu lado.

Por duas ou três vezes os olhos dos curiosos, esses olhos que estão em toda parte, observaram que, em vez de cortar na direção de Rushedge, ela seguia direto para a cidade. Não faltaram espiões para ver para onde ela se dirigia. Garantiram que ela descia à porta de um tal Pearson Hall, notário e parente do pastor de Nunnely. Os Pearsons Hall eram, de pais para filhos, agentes da família Keeldar. Algumas pessoas afirmavam que Miss Keeldar fora arrastada para os negócios da fábrica de Hollow e que tinha perdido dinheiro; outros conjecturavam que ia se casar e andava a tratar dos preparativos.

*******

Louis Moore e Harry Sympson estavam ambos na sala de estudo; o preceptor esperava por uma lição que o aluno parecia muito ocupado em preparar.

– Harry, despache-se! A tarde está acabando. Não acabará esta lição?

– Ainda não aprendi uma linha!

Mr. Moore ergueu a cabeça, pois o tom na voz do rapazote fora muito peculiar.

– A sua tarefa não tem dificuldade, Harry, mas, se as encontra, venha aqui e trabalhemos juntos.

– Não posso trabalhar, senhor.

– Meu rapaz, deve estar doente.

– Senhor, não estou mais doente do que de costume, mas tenho o coração pesado.

– Feche o livro, Harry, venha para perto do fogo.

Harry adiantou-se, manquejando. O preceptor deu-lhe uma cadeira. O rapaz tinha os lábios trêmulos e os olhos cheios de lágrimas. Pousou a muleta no chão, curvou a cabeça e desatou a chorar.

– Harry, você teve qualquer desgosto? Explique-me, talvez eu possa ajudá-lo. Qual é a causa?

– A causa, senhor, é Shirley... diz respeito exclusivamente a Shirley. Acha que ela está mudada, senhor?

– Todos os que a conhecem acham-na mudada.

– Enquanto ela teimou que estava bem, acreditei nela. Quando eu me sentia triste, recuperava a minha alegria na presença dela. Agora...

– Agora o quê, Harry?... Ela lhe disse alguma coisa? Esta manhã estiveram juntos no jardim durante três horas. Vi que ela lhe falava e que você a escutava. Agora, meu caro, se Miss Keeldar confessou que está doente e lhe pediu que guardasse segredo, não lhe obedeça. No interesse da existência dela, confesse tudo. Fale, meu rapaz!

– Ela confessar que está doente? Parece-me que, ainda que estivesse à beira da morte, diria apenas, sorrindo: "não sofro."

– Então o que soube? Que nova circunstância?...

– Soube que ela acaba de fazer um testamento.

– De fazer testamento?

O preceptor e o aluno ficaram calados.

– Ela disse-lhe isso? – perguntou Louis Moore depois de alguns minutos.

– Ela me disse com seu ar mais alegre. Não como em uma circunstância de funesto presságio como eu pensava. Disse-me que eu era a única pessoa, além do notário, de Mr. Helstone e de Mr. Yorke, que sabia alguma coisa a esse respeito. Disse que queria explicar para mim, em particular, as suas disposições.

– Continue, Harry.

– Ela me disse fitando-me com aqueles belos olhos: "Porque." Oh! Como seus olhos são belos, senhor! Eu amo-os! Eu amo-a! Shirley é a minha estrela! O céu não a deve reclamar. Shirley não é um anjo, é uma mulher e deve viver com os homens. Os serafins não irão levá-la!

– Harry Sympson, continue... e o que mais lhe disse Shirley?

– "Porque", disse ela, "se eu não fizesse este testamento e viesse a morrer antes de você, e eu não quereria que assim fosse, embora esteja certa de que tal coisa não desagradaria seu pai. Mas você terá a sua propriedade, que é grande, maior do que Fieldhead; as suas irmãs ficariam sem nada. Então eu deixei algum dinheiro para elas, embora eu não tenha por elas juntas a metade do amor que tenho por metade de um caracol do seu lindo cabelo." Ela disse-me isto, chamou-me de querido e consentiu que eu a beijasse. Em seguida, disse-me que deixara algum dinheiro para Miss Caroline Helstone; que este solar, com os móveis e a biblioteca, me era legado, pois não queria que a antiga morada da sua família passasse para as mãos de estranhos, e que todo o resto da sua fortuna, que se eleva a cerca de doze mil libras esterlinas, excluídos os legados feitos às minhas irmãs e à menina Helstone, o tinha deixado, não a mim, que já sou rico, mas a um homem bom, que fará melhor uso dele do que qualquer outro ser humano seria capaz de fazer; um homem, disse ela, que é, ao mesmo tempo, terno e valente, forte e compassivo; um homem que não faz ostentação de princípios religiosos, mas que sabe professar uma fé pura e sem mácula perante Deus. Depois me perguntou: "aprova o que eu fiz, Harry?" Eu não pude responder nada, porque as lágrimas me sufocavam, como agora.

Louis Moore concedeu ao aluno um momento para dominar sua emoção e em seguida perguntou-lhe:

– Que mais ela lhe disse?

– Quando eu lhe manifestei o meu pleno acordo com as condições do seu testamento, ela disse-me que eu era um rapaz generoso e que tinha orgulho de mim. E liquidamos, entre nós, dois dos três assuntos de família.

– Que eram...

– Mas o senhor está rindo. Eu não poderei sorrir pensando em Shirley nesse estado de espírito.

– Meu rapaz, eu não sou nervoso, nem entusiasta, nem inexperiente. Vejo as coisas como elas são: não se dá o mesmo com você quanto ao presente. Diga-me, quais eram esses assuntos de família?

– Pusemo-nos de acordo sobre alguns pontos: que, se eu vivesse para herdar a propriedade de meu pai e o solar de Fieldhead, tomaria o nome de Keeldar e faria de Fieldhead a minha residência. E assim será: o nome e o solar dela têm vários séculos, ao passo que Sympson Grove data de ontem.

– Vamos, nem um nem o outro estão em véspera de ir para o Céu. Nutro as melhores esperanças a respeito deste parzinho de águias ainda meio implumes. E, agora, que conclui de tudo o que acaba de me contar?

– Que Shirley está morrendo.

– Ela referiu-se ao seu estado de saúde?

– Nem uma única vez; mas garanto-lhe que está a definhar. Suas mãos estão magras e o rosto também.

– Sabe onde ela está agora, Harry? Está em casa? Ou cavalgando?

– Com certeza ela não está passeando, senhor. Olha como está chovendo!

– É verdade. O que não quer dizer que ela não possa dirigir-se neste momento, a galope, para Rushedge.

– O senhor recorda-se de como o tempo estava chuvoso e feio na quarta-feira passada? Na volta eu lhe perguntei se ela não receava apanhar uma constipação. Ela respondeu: "de modo algum. Quem me dera! A melhor coisa que podia me acontecer era apanhar uma boa constipação ou uma boa febre e morrer como todos os cristãos." Bem vê o senhor que ela está doente.

– Doente, decerto! Vá e descubra onde ela está para mim. E, se puder lhe falar sem chamar a atenção dos outros, peça-lhe que venha aqui um minuto.

– Sim, senhor.

Pegou a muleta, ergueu-se e saiu.

– Harry!

Ele voltou-se.

– Quando precisar de você, o chamo de volta. Até lá fica dispensado das lições.

Harry saiu. Mal ficou só, Louis Moore levantou-se. "Posso ser muito frio e muito altivo com Harry", pensou ele. "Vejamos se posso conservar a mesma atitude perante ela. Sir Philip pode corar quando os seus olhos encontram os dela, mas se um dos seus caseiros se mostrar susceptível e sentimental diante dela, merecerá simplesmente uma camisa de força. Até hoje tenho me saído bem. Ela tem se sentado ao meu lado e eu não tenho ficado mais trêmulo do que se estivesse sentado à minha escrivaninha. Suportei os seus olhares e os seus sorrisos como... um preceptor que sou. Nunca fui nem servo nem servidor dela, mas sou pobre e o meu dever é velar pela minha própria dignidade. O que quis ela dizer com aquela alusão às pessoas frias que transformam a carne em mármore? Gostei daquilo! Nunca me permito perscrutar nem a linguagem nem sua atitude, pois, se o fizesse, poderia perder o sentido da realidade e acreditar em romance."

Sua mente ficou vazia por alguns instantes à escuta.

"Ela virá ou não virá?", perguntava a si mesmo. "Se vier, o que lhe direi? Em primeiro lugar, como justificar a liberdade do convite? Não devo deixar de ser o professor... de outro modo... ouço uma porta se abrindo."

Pôs-se a escutar. Passaram-se mais alguns segundos. "Ela se negara a vir ou o Harry ainda não a encontrou. Ela recusou. O meu pedido foi presunçoso demais aos olhos dela. Que venha e lhe mostrarei então que o contrário é que é verdade. Prefiro que se mostre um tanto intratável, pois sempre me espicaça."

A porta se abriu e Miss Keeldar entrou. Parecia que o recado a tinha encontrado com um trabalho de agulha, pois trazia a costura em sua mão. Nesse dia não fora cavalgar; era bem evidente que o passara tranquilamente. Estava com um delicioso vestido de interior e um avental de seda. A sua fisionomia nunca tinha manifestado tão pouca altivez; uma espécie de doce e infantil timidez pesava-lhe sobre os cílios e espelhava-se em seu rosto. O preceptor, de pé, contemplava-a em silêncio.

Ela deteve-se entre a porta e a escrivaninha.

– O senhor precisa de mim?

– Tomei a liberdade de mandar chamá-la, Miss Keeldar, isto é, de lhe pedir uma entrevista de alguns minutos.

Ela esperou, continuando com a costura.

– E então, do que se trata, senhor?

– Queira sentar-se antes de qualquer coisa. O assunto o qual quero lhe falar demorará alguns instantes. Talvez eu não tivesse o direito de abordá-lo, mas a liberdade que tomei tem sua origem numa conversa que tive com o Harry. Este rapaz está bastante impressionado com seu estado de saúde. Aliás, todos os seus amigos estão inquietos a tal respeito. Bem, é da sua saúde que eu quero lhe falar.

– Sinto-me perfeitamente bem – respondeu ela, muito depressa.

– Contudo, está mudada.

– Isso só a mim pode interessar. Todos nós mudamos.

– Não quer sentar-se? Outrora, Miss Keeldar, eu tinha certa influência sobre a senhorita. Ainda terei hoje? Poderei crer que o que eu lhe disser não será tomado como presunção minha?

– Deixe-me ler francês, Mr. Moore. Talvez eu queira até uma lição de gramática latina, mas deixemo-nos de discussões...

– Não, não. Chegou a hora dessa discussão.

– Discuta, então, mas não me tome por texto. Eu sou uma pessoa sã.

– Não lhe parece que é feio afirmar e voltar a afirmar aquilo que no fundo é falso?

– Já lhe disse que me sinto muito bem; não tenho tosse, nem dores e nem febre.

– Não haverá qualquer equívoco nessa afirmação? Será a verdade?

– A pura verdade.

Louis Moore olhou-a fixamente.

– Eu próprio – disse ele – não consigo descobrir indício de doença; mas, então, por que está mudada? Não só perdeu o sono, o apetite e emagreceu – prosseguiu Louis Moore – o seu espírito também está constantemente em ebulição. Além disso, lê-se nos seus olhos um pavor, há nas suas maneiras uma inquietação nervosa que ninguém conhecia.

– Ficaremos por aqui, senhor. Acertou, sou nervosa. Agora falemos de outra coisa. Como o tempo está mau! Que chuva torrencial e contínua!

– Nervosa, sim! E se Miss Keeldar anda nervosa não é sem motivo. Deixe-me procurar esse motivo. O mal não é físico, já o tinha suposto. Veio repentinamente. Sei em que dia foi, pois observei a mudança; posso afirmar que o sofrimento é moral.

– De maneira nenhuma! Não é nenhuma coisa tão nobre, é apenas nervoso. Oh! Deixemos este assunto!

– Quando o tivermos esgotado, antes não. Os alarmes nervosos devem ser sempre comunicados para poderem ser dissipados. Bem que eu gostaria de ter o dom da persuasão e poder convencê-la a falar livremente. Receio que a confissão, no seu caso, equivaleria à cura.

– Não – disse Miss Keeldar, bruscamente – bem desejava que isso fosse provável, mas receio que não.

Ela interrompeu o trabalho por um momento. Estava agora sentada, com um cotovelo sobre a mesa e a cabeça apoiada numa das mãos. Louis Moore parecia convencido de que houvera finalmente alguns progressos. Ela estava séria e o seu desejo deixava adivinhar uma importante confissão. Agora já não podia afirmar que nada lhe fazia mal.

– Prefiro dizê-lo ao senhor ao invés de alarmar minha tia ou minhas primas, ou mesmo meu tio – disse ela. – Todos eles fariam tal reboliço! É sobretudo isso que eu receio: o alarme e as cenas. Em suma, nunca gostei de me ver no centro de um turbilhão doméstico. O senhor é capaz de suportar um pequeno choque, não é assim?

– Até grande se for necessário.

Nem um músculo daquele homem estremeceu e, contudo, o coração batia-lhe descompassadamente. Que iria ela dizer-lhe? Que irreparável desgraça teria acontecido?

– Se me tivesse parecido que havia conveniência em me dirigir ao senhor, nunca teria lhe feito segredo disto por um momento que fosse – continuou ela – teria lhe dito francamente a verdade, pedindo-lhe sua opinião, mas parecia-me que não tinha direito algum a dar-lhe preocupações. Aliás, talvez não desse mau resultado. Deus o sabe!

Louis Moore não pediu explicação imediata. Não se permitiu trair-se com impaciência ou qualquer gesto ou palavra. A sua calma tranquilizou Miss Keeldar.

– Podem vir grandes efeitos de pequenas causas – disse ela, tirando do braço uma pulseira, depois desabotoando a manga e arregaçando-a em parte. Disse a Louis Moore: – Olhe para aqui.

Mostrou uma marca, ou antes, um entalhe profundo que tinha no braço, embora cicatrizado: não era bem a marca de uma queimadura nem de um golpe.

– Eu não queria mostrar isto fosse a quem fosse em Briarfield, exceto ao senhor, porque pode receber isso com calma.

– Decerto, nada há nessa pequena marca que possa meter medo. A sua história me dará a explicação.

– Por pequena que seja, não deixou de tirar-me o sono, de tornar-me nervosa, de fazer-me emagrecer, porque esta pequena marca me faz pensar numa possibilidade que me traz medo.

A manga foi novamente apertada e o bracelete voltou para o seu lugar.

– Sabe que a menina está me fazendo sofrer uma dura prova? – disse Louis Moore, sorrindo. – Eu sou um homem muito paciente, mas sinto que as minhas pulsações se precipitam.

– Aconteça o que acontecer, conto com sua amizade, Mr. Moore. Colocará o seu sangue-frio ao meu serviço? E não me deixará à mercê de covardes e aterrorizadores?

– Por ora, não faço promessa alguma. Conte-me a história e exija depois a promessa que quiser.

– É uma história muito breve. Dei um passeio com Isabella e Gertrudes há cerca de três semanas. Elas voltaram para a casa antes de mim. Eu tinha ficado para trás a fim de falar com o jardineiro. Depois de tê-lo deixado, demorei-me um pouco do lado de fora, onde tudo era calmo e verde. Eu estava encostada no portão, mergulhada em pensamentos muito agradáveis sobre o meu futuro, porque, nessa manhã, parecia-me que os acontecimentos começavam a tomar um rumo que eu desejava havia muito... – "Ah! Sir Philip tinha estado com ela na tarde da véspera!", pensou Louis Moore... – quando ouvi uma respiração ofegante, era um cão que corria para a estrada. Conheço quase todos os cães da vizinhança, era a Phoebe, a cadela de caça de Sam Wynne. O pobre animal corria de cabeça baixa e língua pendente. Parecia esgotada e nas últimas. Chamei por ela, pois tencionava trazê-la para dar-lhe qualquer coisa de beber e de comer. Estava certa de que a tinham maltratado, já que Sam Wynne é um covarde e bate cruelmente nos cães. Ela estava demasiado desorientada para me reconhecer e, quando tentei acariciar a sua cabeça, voltou-se e mordeu o meu braço. Mordeu-me até sangrar e depois fugiu ofegante. Momentos depois apareceu o empregado de Mr. Wynne de espingarda em punho. Perguntou-me se eu tinha visto a cadela. Respondi que tinha visto a Phoebe. "Seria melhor prender o Tártaro, minha senhora", disse ele, "e dizer à sua gente que não saia de casa. Vou atrás da Phoebe para matá-la", o criado partiu noutra direção. "Ela está com raiva."

Louis Moore encostou-se na cadeira e cruzou os braços sobre o peito. Miss Keeldar pegou novamente na costura e continuou a bordar um festão de violetas.

– E não disse a ninguém, não procurou nenhuma assistência, nenhum tratamento! Nem sequer veio falar comigo?

– Eu não tinha o menor direito...

– É monstruoso! E não fez nada?

– Fiz. Fui direto à rouparia, onde se passa a ferro durante quase toda a semana, agora que tenho tantos hóspedes em casa. Enquanto as criadas estavam entretidas a passar a ferro e a engomar, tirei do fogo um ferro e apliquei a ponta, ao rubro, sobre o meu braço. Enterrei-a bem. Ele cauterizou a pequena ferida. Depois subi para o meu quarto, pois sentia-me muito infeliz; nem firme nem tranquila e sem calma de espírito.

– Havia calma na sua pessoa. Recordo-me de ter estado à escuta durante todo o tempo que estivemos sentados lanchando, para ver se ouvia algum movimento em seu quarto, mas tudo estava tranquilo.

– Estava sentada na cama, desejando que a Phoebe não me tivesse mordido.

– E sozinha. Gosta da solidão? Com sua forte inteligência, deve julgar-se independente de qualquer socorro, de qualquer conselho, de qualquer solidariedade.

– Que seja assim, já que assim lhe agrada.

Ela sorriu. Continuava a bordar rapidamente e com cuidado, mas seus cílios tremeram, depois brilharam e uma lágrima caiu.

Louis Moore inclinou-se sobre a escrivaninha, mexeu com sua cadeira, mudou de atitude.

– Se não for assim? – perguntou ele, dando à sua voz uma expressão de doçura muito particular. – Diga-me o que devo pensar? – e acrescentou: – Não sei. Não quer falar, quer guardar tudo trancado dentro de você.

– Porque não merece ser comunicado.

– Porque ninguém pode lhe dar o elevado preço que põe à sua confiança. Ninguém possui a honra, a inteligência e o poder que exige do seu conselheiro. Não há na Inglaterra um ombro digno de lhe servir de apoio, e menos ainda um peito onde quisesse descansar sua cabeça. É por isso que tem que viver só.

– Eu posso viver só, se isso for necessário, mas o problema não está em saber como viver só, mas, sim, como morrer só. Esta ideia aparece-me sob as cores mais tristes.

– Receia os efeitos do vírus?... Pensa numa ameaça indefinida, num destino terrível?... – ela inclinou-se. – É muito nervosa e muito mulher. Se tudo isso fosse examinado e discutido friamente, tenho certeza de que se provaria que não está de forma alguma em perigo de vida.

– Amém! Tenho muita vontade de viver, assim Deus o permita! A Vida tem-me parecido doce.

– Como ela poderia deixar de ser meiga com você? Com seus privilégios e sua natureza? Esperava realmente ser atacada de hidrofobia e morrer com a raiva?

– Esperava, mas neste momento não receio nada.

– Nem eu, depois do que me contou. Duvido de que tenha entrado no seu sangue a menor parcela do vírus e, mesmo que isso tivesse acontecido, deixe-me dizer-lhe que, jovem e saudável como você é, nenhum mal lhe virá daí. De resto, vou verificar se a cadela estava realmente doente, pois tenho a impressão de que não.

– Não diga a ninguém que ela me mordeu.

– Por que haveria eu de falar se me parece que essa mordida foi tão inocente como seria um golpe com este canivete? Tranquilize-se. Eu estou sossegado, embora para mim sua vida tenha tanto valor como a minha parte de felicidade na vida eterna. Levante a cabeça e olhe para mim. A nuvem está dissipada?

– Nada receio agora.

– O sol voltou a brilhar na sua alma?

– Estou muito contente, mas preciso que me prometa uma coisa.

– Fale.

– Se a desgraça que eu receio vier a me acontecer, eles perderão a cabeça. Escuse de sorrir, por favor: perderão a cabeça, como sempre. Meu tio ficará cheio de horror, de fraqueza e de precipitação. Perderá a cabeça, como único expediente de emergência. Ninguém terá sangue-frio aqui em casa a não ser o senhor. Prometa que me ajudará, que manterá Mr. Sympson afastado de mim, que não deixará o Harry se aproximar, pois tenho receio de que eu lhe faça mal. Lembre-se também de que deve ter cuidado consigo, mas ao senhor eu não faria mal, tenho certeza. Feche a porta aos médicos, ponha-os para fora se entrarem. E, enfim, se eu me tornar perigosa, dê-me pelas suas próprias mãos um poderoso narcótico; uma dose de láudano que não possa falhar. Prometa que me fará tudo isso?

– Prometo tudo o que me pede, sem comentários e sem reservas.

– Se for necessária a assistência de uma mulher, chame a minha governanta, Mrs. Gill. Se eu morrer, ela é que deve me vestir. Ela me é dedicada. Tem me enganado, muitas vezes, e muitas vezes lhe perdoei, pois ela gosta de mim e não me tiraria um alfinete. A minha confiança tornou-a dedicada. Hoje posso contar ao mesmo tempo com a honestidade, a coragem e a afeição dela. Chame-a, mas conserve a minha tia e as minhas primas longe de mim. Prometa outra vez.

– Prometo.

– É muito bonito da sua parte – disse ela, sorrindo e erguendo os olhos para ele, ao mesmo tempo que ele se inclinava para ela. – Na realidade, eu não sou assim tão forte e não tenho tanto orgulho na minha força como o senhor supõe. Também não sou assim tão desdenhosa da simpatia, mas quando tenho algum desgosto receio comunicá-lo àqueles a quem amo com receio de afligi-los, e aos que me são indiferentes não sou capaz de me queixar. Afinal, não deve censurar-me tanto por minha puerilidade, porque, se tivesse sido tão infeliz como eu fui durante estas três últimas semanas, o senhor também sentiria a necessidade de um amigo.

– Todos nós precisamos de um amigo, não é assim?

– Pelo menos, todos aqueles que têm alguma coisa de bom em sua natureza.

– E a miss tem Caroline Helstone e Mrs. Pryor.

– Sim... E o senhor tem Mr. Hall e o seu irmão, Robert.

– Estamos ambos bem providos... Mostremo-nos, pois, reconhecidos. Pela minha parte, estou quase satisfeito neste momento. Gosto de fruir, devagar, a felicidade. Devorada às pressas, nem deixa sentir o sabor.

Encostado no espaldar da cadeira de Miss Keeldar, Louis Moore acompanhava com os olhos os rápidos movimentos dos dedos da moça, sob os quais o festão verde e púrpura ia crescendo. Após longa pausa, ele voltou a perguntar:

– Não voltará a alimentar em silêncio esses sentimentos dolorosos, não é?

– Não, se me atrever a falar.

– Servindo-se da palavra atrever, a quem faz alusão?

– Ao senhor, tão austero, tão reservado... tão orgulhoso.

– Orgulhoso, por quê?

– Isso eu gostaria de saber, mas se não quer me dizer...

– Talvez porque eu seja pobre. A pobreza e o orgulho andam, muitas vezes, de mãos dadas.

– Que linda razão! Ficaria encantada se descobrisse outra para emparelhar com essa. Complete o par, Mr. Moore.

– Imediatamente. Que diria da união da sóbria pobreza com o capricho?

– O senhor é caprichoso?

– A menina eu sei que é...

– Calúnia! Eu sou firme como a rocha, fixa como a estrela polar.

– Miss Keeldar, eu tive outrora, durante dois anos, uma aluna que se tornou muito querida para mim. O Harry é especial, caro para mim, mas ela era mais ainda. O Harry nunca me dá preocupações, ela, contudo, me dava muitas. Creio que me atormentava vinte e três horas em vinte e quatro.

– Ela nunca estava com você senão três ou seis horas por dia, no máximo.

– Às vezes ela entornava a bebida do meu copo; escondia as coisas de que eu me alimentava; depois de ter me deixado o dia todo de dieta... e isso convém-me pouco, pois sou magro como vê e, além do mais, tenho o costume de saborear minhas refeições com um prazer razoável...

– Bem sei, conheço seus pratos prediletos.

– Bem, ela tirava-me essas iguarias saborosas e, ainda por cima, fazia pouco de mim. Eu também gosto de dormir bem. No tempo da minha tranquilidade, quando eu era eu próprio, sozinho, nunca amaldiçoava a noite pela sua demora nem o leito pelos seus espinhos.

– Senhor!...

– Tendo me tirado a tranquilidade do espírito e a doçura da vida, ela privou-me ainda da sua presença; deixou-me friamente, como se pensasse que, se partisse, o mundo continuaria para mim o mesmo que antes. Passados dois anos, eis que novamente nos encontramos sob o seu próprio teto onde ela era a senhora. Como lhe parece que ela se conduziria comigo, Miss Keeldar?

– Como uma pessoa que tinha aproveitado muito bem as lições aprendidas com o seu mestre.

– Recebeu-me com altivez. Mediu um largo espaço entre nós e manteve-se afastada pela sua reserva, olhar distante e uma voz calma e cortês.

– Mostrava-se uma excelente discípula. Tendo-o visto tão indiferente, tinha aprendido a sê-lo. Admita, peço-lhe, nessa altivez havia um sensível progresso sobre à sua própria frieza.

– A minha consciência, a minha honra e as mais despóticas necessidades afastavam-me dela. Ela era livre, poderia mostrar-se compassiva.

– Mas, não era livre de comprometer sua dignidade pessoal, de procurar quem a evitava.

– Depois foi inconsequente. Vi repetir-se o suplício de Tântalo. Quando julgava ter ganhado o suficiente império sobre mim para considerá-la apenas como uma estranha orgulhosa, ela mostrava-me, de repente, um vislumbre de tocante simplicidade, de vivificante simpatia, encantava-me com uma conversa agradável, tão alegre, tão benévola, que eu não podia proibir a entrada de sua imagem no meu coração, como não posso proibir sua entrada nesta sala. Explique-me o motivo: por que ela gostava de me fazer tão infeliz?

– Mas eu não podia suportar um exílio completo. Às vezes eu pensava que num dia frio a sala de estudo, que não era um lugar muito alegre, podia estar insuportavelmente gelada. Então, considerava-me obrigada a ver com meus próprios olhos se o senhor e o Harry tinham um bom fogo. E, uma vez aqui, gostava de ficar.

– Mas ela não devia ser volúvel; tendo vindo uma vez, devia vir com mais frequência.

– Isso poderia ser tomado como indiscrição.

– Amanhã já não será o que é hoje.

– Não sei. E o senhor, será o mesmo?

– Eu não sou louco, nobilíssima. Podemos conceder um dia aos sonhos, mas no outro temos que saber despertar, sobretudo, eu não deixarei de acordar no dia em que se casar com Sir Philip Nunnely. O fogo ilumina-nos e mostra as nossas imagens no espelho, Miss Keeldar. Durante todo o tempo que falei estive considerando esse quadro. Repare! Que diferença entre a sua cabeça e a minha! Eu pareço velho, embora tenha apenas trinta anos.

– O senhor é tão grave. Tem as sobrancelhas tão espetadas e o seu rosto é pálido. Nunca penso no senhor como um jovem, nem como o irmão mais novo de Mr. Moore.

– Realmente. Nunca pensei sobre isso! Imagine a figura regular e bela de Robert olhando por cima do meu ombro. Essa aparição faria sobressair a grosseria das minhas feições.

A sineta tocou chamando Miss Keeldar para o jantar e ela ergueu-se.

– Mr. Moore – disse ela, enquanto juntava os seus fios de seda – teve notícias de seu irmão recentemente? Sabe qual o motivo que o faz demorar tanto em Londres? Ele não fala em voltar?

– Fala em regressar, mas eu não sei dizer qual é a causa de tão longa ausência. Para ser franco, eu supunha que ninguém em Yorkshire soubesse melhor do que a miss o real motivo da sua demora.

O rosto de Miss Keeldar corou vivamente.

– Escreva-lhe e diga-lhe que se apresse em voltar – disse ela. – Eu sei que ele não tinha o menor inconveniente em prolongar até agora sua ausência, pois é bom que se diminua a produção quando o comércio vai mal. Mas ele não devia abandonar o condado.

– Eu sei – disse Louis – que ele teve uma conversa com a miss na noite anterior à sua partida e o encontrei depois. Procurei ler nos seus olhos, mas ele desviou o olhar; adivinhei que passaria muito tempo ausente. Há dedos lindos e delicados que têm uma maravilhosa habilidade para reduzir a nada o orgulho de um homem. Suponho que o Robert confiou demasiado em sua beleza máscula e natural. Saem-se melhores aqueles que, como não possuem semelhantes superioridades, não podem se embalar com ilusões. Mas vou escrever a ele dizendo que a miss o aconselha a voltar.

– Não lhe diga que eu o aconselho a voltar, mas que o seu regresso é aconselhável.

Ouviu-se um segundo toque da sineta e Miss Keeldar obedeceu ao seu apelo. 

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