Jungkook o encarou sem expressão, ele sentiu que a verdade nas palavras de Taehyung era genuína, mas não se permitiu demonstrar a aflição que fez sua pele suar no mesmo instante. Ele se recusava a mostrar como o medo o consumia com tamanha facilidade.
ㅡ Sair do prédio não significa que eu vou seguir você por aí.
— Você vem?
— Eu não pedi para ser salvo.
— Eu sei.
Taehyung sorriu satisfeito antes de retirar seu cinto e colocá-lo em Jungkook.
Jungkook observou a arma que foi passada para a própria cintura e murmurou enquanto o seguia: ㅡ Eu não sei usar isso.
ㅡ Se tudo der certo, você não vai precisar usar ㅡ Taehyung respondeu.
Chegando à porta, que estava trancada há meses, Taehyung se pôs a destravar e retirar os cadeados que selavam a porta.
— Está trancada por fora — Jungkook disse — tentei abrir na primeira semana que fiquei aqui.
— Não está mais — Taehyung respondeu.
Ver aquela cena fez o estômago de Jungkook dar voltas. Ao pensar que a partir daquele momento não havia nada que o impedisse de deixar aquele lugar, um frio foi tomando conta de todo seu corpo, o couro cabeludo ficou dormente, as mãos suaram e a boca secou. Ele ficou estático, até que inconscientemente deu breves passos para trás.
Que maldito dia de merda... Ele pensou.
Estava prestes a sair do lugar mais seguro que conhecia com dois estranhos armados, e um deles havia o acertado na cabeça.
Qual a probabilidade de não me tornarem refém?
E pior... provavelmente aqueles dois eram a coisa que ele menos devia se preocupar no momento, pois aparentemente havia milhões de pessoas infectadas que o comeriam sem pestanejar.
Que tipo de piada é essa? Gente comendo gente? Porra. Jungkook pensou.
E eles estavam enfiados em todo e qualquer buraco, espalhados pela cidade, apenas esperando pela chance de ataque.
E ele não poderia esquecer da galera do "mal" que estavam prestes a entrar no prédio e sabe se lá o que eles planejavam fazer com Jungkook, porque sim, eles sabiam que ele estava lá.
Ele saiu de isolado à fugitivo em menos de 12 horas e não estava pronto para lidar com isso.
Vagamente ele continuou caminhando para trás, mas infelizmente ele não foi muito longe, algo rígido encostou em suas costas fazendo com que ele virasse abruptamente.
ㅡ Nervoso? ㅡ Indagou Yeonjun, enquanto mirava o fuzil descaradamente no rosto de Jungkook.
ㅡ Não — mentiu descaradamente — mas com essa arma apontada na minha cara... talvez.
Atrás deles, Taehyung finalmente abriu a porta.
ㅡ Vou checar as escadas, Yeonjun, de olho no rádio — foi tudo que disse antes de sumir pela porta.
— Você não vai abaixar isso? — ele perguntou após os segundos se passarem e o rapaz continuar mirando a arma em seu rosto.
— Eu estou vendo o pânico na sua cara, então não, eu não vou abaixar. Vai que você tenta atacar, ou coisa parecida.
— É você quem está me deixando nervoso.
— Não, não sou eu. É a ideia de deixar esse lugar. — Yeonjun disse, Jungkook não conseguia ver nada além do par de olhos sob o gorro, mas sentia que ele estava carregando a mesma expressão preocupada de antes. — Eu entendo, ok? Eu estava igual a você quando o hyung me encontrou, okay, nem tanto assim, eu não era um coitado preso numa torre. Mas estava tão na merda quanto você, e olha pra mim agora.
Jungkook não esperava aquela súbita dose de encorajamento, e não pôde evitar ficar surpreso, mas a arma ainda estava apontada para o seu rosto e ele não estava feliz com esse detalhe.
— Se você não vai atirar, por que não abaixa isso?
— Mais cedo, você mostrou que gosta de fugir, — ele estreitou o olhar — então eu vou me encarregar de que você não faça nenhuma besteira. Precisamos sair daqui vivos, e você precisa permanecer na linha e escutar tudo o que o hyung diz, sem surtar. Eu quero sair daqui sem ser visto, e também... eu não subi até aqui pra no final voltar de mãos vazias — ele disse a última frase rapidamente, sem emoção.
Deixando aquele pensamento de lado, Jungkook perguntou: — Essas pessoas fizeram mal a você? Quem são?
Aquela pergunta pareceu ter pego Yeonjun de surpresa pois sua postura vacilou por segundos.
— Se você não fizer burrada, o hyung pode te contar depois, quando nós não estivermos mais aqui, — ele murmurou. — Não temos mais tempo pra jogar conversa fora.
Jungkook iria refutar quando de repente Taehyung retornou, arfando, sua face também coberta, ele entregou um gorro para Jungkook e disse: — Vamos.
Jungkook apertou o gorro em mãos, aquela era sua última chance de hesitar. No momento em que ele passasse por aquela porta, ele estaria aceitando a realidade atual, a fantasia em que tudo aquilo era um sonho não existiria mais.
Seus pais não viriam buscá-lo, o pior aconteceu com a humanidade, e ele estava prestes a abandonar a fortaleza segura que construiu. Daquele momento em diante ele iria esperar pelo pior.
Olhou uma última vez para trás, e ele queria dizer que estava feliz por sair da bolha, mas a verdade é que Jungkook estava com medo, em poucas palavras, o suficiente para sujar as calças ou vomitar se tivesse comido algo. Mas ele ainda poderia tentar reunir coragem. E depois de soltar a respiração que segurava, ele acenou rapidamente e colocou o gorro sobre a própria cabeça. Virou-se para Yeonjun e usou um dedo para abaixar o cano da arma apontada em sua direção.
— Não precisa disso. — disse a Yeonjun e então voltou sua atenção para Taehyung — Quando eu cruzar aquela porta, eu vou estar confiando em você.
Taehyung arqueou as sobrancelhas com o voto de confiança repentino, mas logo aquela expressão sumiu.
— Yeonjun, você vai na frente.
E depois de tanto tempo Jungkook finalmente deixou aquele andar, que por um longo tempo ele fingiu ser seu lar, mas que também era seu inferno pessoal.
E a cada degrau que ele descia, a cada passo de distância que ele tomava o frio no estômago crescia. Não demorou muito tempo para que os três passassem pelos andares que Taehyung havia dito que eram totalmente seguros. Chegando ao fim, Jungkook sentiu a mão dele sobre seu ombro.
— Precisamos passar por aqui, — indicou outra porta fechada — e talvez você possa escutá-los, mas eles estão escondidos, não conseguem suportar luz alguma, então, por ora, é seguro.
— Mas não se desespere e não faça barulho. — Yeonjun disse.
ㅡ Não podemos seguir pelas escadas?
ㅡ Estão bloqueadas. ㅡ Yeonjun respondeu antes de abrir a porta daquele andar e adentrar silenciosamente. — Ou podem ter infectados, não é seguro.
Jungkook logo sentiu o terror atingi-lo quando ele entrou no andar.
— Céus... — um sussurro escapou dos lábios.
Diferente dos andares acima, apenas cobertos de poeira, aquele estava completamente destruído, sujo. Havia coisas no chão, e pelo cheiro não era nada positivo, então ele decidiu ignorar pois saber no que ele estava pisando deixaria a situação ainda pior.
Mas, claro, as manchas de sangue na parede eram impossíveis de fingir que não existiam, e isso fez com que ele lentamente parasse de andar.
O que aconteceu aqui?
Ele não permaneceu no lugar por muito tempo, Taehyung o guiou rapidamente, a mão firme segurava seu braço. Jungkook o encarou esperando que ele dissesse algo, mas Taehyung apenas negou com a cabeça e levantou um dedo sob os lábios, pedindo silêncio. Evitando as sombras, eles rapidamente chegaram onde Taehyung planejava e Jungkook quis chorar no mesmo instante.
Ele só pode estar de sacanagem.
Ele levantou o gorro furiosamente e sussurrou, apesar de querer gritar: — Você não estava falando sério, estava?!
Yeonjun e Taehyung observaram-no, Yeonjun também levantou o próprio gorro e perguntou: — O que foi agora?
— Vocês querem descer mesmo nisso?
Taehyung, que estava agachado sob uma enorme mochila, retornou com um capacete na mão.
— Pensei que você tinha dito que iria confiar em mim, não? — disse enquanto retornava o gorro de Jungkook para baixo e colocava o capacete sobre ele. — É mais fácil dessa forma, a não ser que você queira passar pelos outros andares, mas eu não garanto que você vai sair sem problemas daqui.
Minutos depois Jungkook estava completamente enlaçado àquelas cordas, pronto para descer milhares de metros pelo poço do elevador. Como ele poderia acreditar que Taehyung estava falando sério quando disse que eles iriam descer dessa forma?!
— É seguro, eu fiz rapel por anos — Taehyung já estava suspenso nas cordas quando ergueu uma das mãos esperando que Jungkook a segurasse.
Yeonjun, que tinha ido na frente, já não podia ser visto em meio a escuridão. Jungkook só sabia que ele estava lá pois de tempos em tempos a luz do capacete podia ser vista.
Estudou a profundidade e não conseguiu enxergar o fim do poço, teria que confiar no Kim, afinal, que escolha ele tinha?
— Tudo bem...
Depois de muito tempo descendo na escuridão em meio aquelas cordas, Jungkook pegou o jeito e já não sentia medo de cair ou ele se acostumou com medo de cair, era uma das duas opções, ele não tinha certeza. Taehyung estava ao lado, observando com cuidado os movimentos dele, por mais que Jungkook estivesse preso à ele.
— Como você subiu isso tudo? — Jungkook quebrou o silêncio que já estava presente a um tempo longo demais pra continuar sendo suportado.
— Não era meu plano A, — Taehyung disse, ao mesmo tempo que indicava com a mão um lugar que Jungkook deveria se apoiar — tentei as escadas primeiro... mas eles estão por toda a parte, é suicida tentar passar por todos os andares. E não podemos atirar, isso iria atrair mais deles.
— Então, você decidiu escalar isso tudo?
Taehyung parou por um momento e refletiu antes de responder — Sim, precisei escalar. Demorei alguns dias planejando pra que eu conseguisse chegar até lá em cima, depois que consegui foi fácil trazer Yeonjun comigo.
— O que? Dias?
— Eu, mn... precisei voltar várias vezes até que conseguisse deixar tudo pronto. — Ele explicou. — Não é grande coisa, eu gosto de escalar.
— Então... você fez tudo isso pra me tirar de lá?— perguntou, os pés tateando um local seguro para apoiar, a mão de Taehyung ainda pousava em sua cintura.
— Sim, mas eu achei que havia mais pessoas.
— Para que tanto esforço pra ajudar pessoas que você nem conhece?
— Você quer saber mesmo? — Taehyung soltou uma risada.
— Olha, estamos amarrados nessas coisas num lugar alto pra caralho, por favor me distraia ou eu vou surtar.
— Não foi grande coisa, depois que as cordas ficaram prontas eu voltei com Yeonjun e decidimos descer no andar que você viu, o plano era subir o resto das escadas, era arriscado, eu sei. Mas elas estavam bloqueadas, assim como os andares logo acima. Não queríamos assustar ninguém, então nós não tivemos outra escolha e... sobrou o duto de ar.
Os olhos de Jungkook dobraram de tamanho e ele quis rir — Sério?
— Sim, por isso não poderia ter sido a gente que viu você no terraço, nós estávamos literalmente no andar abaixo ontem. Como era seguro, descansamos um pouco e passamos a noite — Jungkook estava o observando e queria ver a expressão que ele fazia mas o gorro cobria o rosto alheio, era impossível de ver.
Aquilo incomodou Jungkook e ele finalmente perguntou — Por que estamos usando essa coisa?
— Precaução, caso eles vejam a gente.
— Eles reconhecem o rosto?!
— Não, — Taehyung corrigiu imediatamente — eu me referi àquelas pessoas que você viu.
Jungkook quis esperar até que eles estivessem fora dali para perguntar, mas a curiosidade foi maior.
— Quem são eles? — perguntou.
Taehyung mostrava onde ele deveria pisar quando Jungkook perguntou, ele ergueu o olhar e apenas se manteve parado, como se estivesse decidindo se deveria falar. De repente um chiado soou assustando ambos, aquilo fez Jungkook segurar ainda mais firme na corda que o suportava.
— Atenção ao descer...— a voz soou em um rádio que Taehyung tinha em sua cintura, era Yeonjun.
— Está vendo algo?
— Não, mas eu estou escutando, tenho quase certeza que uma dessas coisas entrou aqui. — ele respondeu.
— Espere aí, não desça! — Taehyung disse, mas não houve resposta — Yeonjun? Yeonjun?!
Atônito, Taehyung fitou o rádio. Após várias tentativas de contato, apesar do aparelho estar funcionando perfeitamente, nenhuma delas recebeu uma resposta.
Vendo Taehyung insistir em contatá-lo, Jungkook tentou acalmá-lo: — Talvez o rádio dele falhou, nada aconteceu.
Pensando no que Jungkook havia dito, Taehyung ligeiramente o aproximou de si e disse num tom estável: — Vamos.
Descendo duas vezes mais rápido, Jungkook foi incapaz de esquivar-se completamente de todos os obstáculos que surgiam em meio à escuridão. Em algum momento a barra da sua calça prendeu abruptamente em alguma coisa e não se importando, puxou a perna com força, mas o que ele não esperou foi a dor que irrompeu de repente no local. Jungkook mordeu os lábios suprimindo a dor, e não se desesperou mesmo quando percebeu o líquido quente que vagarosamente escorreu por seu calcanhar. Taehyung estava distraído o suficiente para não notar, e não só Jungkook ocultou qualquer som que poderia ter saído de sua garganta, como o gorro escondeu a careta absurda que ele fez.
Algum tempo depois Jungkook finalmente sentiu o chão embaixo de si novamente, na verdade, não era o chão, e sim o topo do elevador há muito tempo abandonado em algum andar. Taehyung o ajudou a se firmar e soltou os cabos, e rapidamente observou o poço em volta, sem sinal de Yeonjun.
Jungkook notou traços de sangue no chão, por um instante quase disse a Taehyung, mas escolheu não falar coisa alguma.
ㅡ Vamos procurá-lo, por aqui ㅡ num piscar de olhos ele se abaixou e com grande facilidade passou por uma abertura no teto do elevador.
Jungkook teve dificuldade em segui-lo, mas antes que tocasse o chão,Taehyung que já estava o esperando, o segurou e o ajudou a se firmar em pé. Com uma das sobrancelhas arqueadas, ele apontou ligeiramente para a mancha de sangue que se acumulava no moletom cáqui de Jungkook.
ㅡ Como isso aconteceu? ㅡ perguntou.
Jungkook manteve-se calado, o plano de esconder o ferimento não havia durado cinco minutos.
ㅡ Esse corte não estava aí antes.
— Mn — Jungkook acenou com a cabeça, não é como se ele fosse lamentar com um desconhecido sobre seu novo ferimento.
ㅡ Consegue andar? ㅡ tentou se abaixar para dar uma olhada e Jungkook o impediu.
ㅡ Espera.
ㅡ O quê?
ㅡ Primeiro, vamos acha-lo, ok? E então dar o fora daqui. ㅡ deu de ombros antes de continuar ㅡ Não dói muito, estou bem.
Taehyung obviamente não acreditou, mas ele não insistiu no assunto e levantou. Olhando em volta, Jungkook sentiu o queixo cair, como aquela ainda poderia ser a mesma empresa de que seu pai tinha tanto orgulho, e que teria sido sua também?
— Muitas pessoas buscaram abrigo em prédios como esse, mas cedo ou tarde eles eram... encontrados. — Taehyung disse ao notar a tristeza exposta no olhar de Jungkook que seguia ao seu lado.
Não havia um lugar naqueles corredores sem vestígios de sangue, o cheiro era insuportável e o deixou tonto, Jungkook temia encontrar um cadáver a qualquer momento. Ele olhava aflito para uma sala escura logo à frente, quando ouviu algo atrás de si.
Pancadas fortes e rápidas podiam ser ouvidas ao longo do corŕedor, inconscientemente ele tentou se aproximar de Taehyung, mas este já andava em passos largos em direção ao som.
Taehyung parou em frente a um corredor que estava tomado pela escuridão, obviamente o barulho vinha dali.
ㅡ Yeonjun? ㅡ chamou, o tom firme.
Nenhuma resposta.
ㅡ Espera aqui ㅡ disse Taehyung enquanto adentrava a sala coberta pela escuridão.
ㅡ Que merda! O que você vai fazer? ㅡ Indagou aflito, percebendo tarde demais que já havia agarrado o antebraço de Taehyung.
ㅡ Preciso ver se ele está aqui.
ㅡ E o que garante que ele seja o único aí?!
ㅡ Eu não vou demorar. ㅡ disse como se Jungkook não tivesse dito absolutamente nada.
Puxou o braço e sumiu em meio ao total escuro. Jungkook esfregou a testa impacientemente enquanto o via sumir na escuridão.
Depois do que pareceu uma eternidade o som alto de metal caindo assustou Jungkook, ele se afastou rapidamente, mantendo-se onde a luz do sol o tocava.
Estava começando a cogitar todas as piores hipóteses, e em todas elas ele se dava mal no final, ele sequer sabia usar a arma que estava em sua cintura, como iria se proteger dessas coisas? Enquanto se torturava imaginando os piores cenários possíveis, sons de passos o trouxeram de volta à realidade.
— Ya, você esqueceu onde está?! — a voz de taehyung entregou sua preocupação.
— Não vai me soltar?!
— Não.
Jungkook não conseguiu reprimir a expressão confusa quando Taehyung apareceu segurando Yeonjun pela gola.
— Tinha uma dessas coisas no poço, eu achei que seria melhor se livrar dele antes que ele causasse problemas.
Jungkook tentava entender o que havia acontecido, e quase deixou uma risada escapar ao ver os dois discutindo sem poder alterar a voz.
— E você está bem? — Taehyung perguntou enquanto girava Yeonjun, procurando qualquer machucado.
— De novo isso? — ele revirou os olhos — Claro que eu estou, quantas vezes eu preciso provar, hyung?
— Yeonjun, não bancamos heróis, sabemos as regras e obedecemos.
— Ok, ok, eu errei, eu admit- me solta! — disse irritado enquanto Taehyung levantava a cabeça dele em busca de machucados.
— Você não facilita.
— Já falei que esse sangue não é meu!
Jungkook observava a cena como telespectador em frente à TV no fim de semana, intrigado com a preocupação de Taehyung com Yeonjun, afinal, cá entre nós, aquele garoto andava armado até os dentes, como ele poderia deixar que algo o machucasse?
Taehyung não disse nada enquanto vasculhava a própria bolsa em busca de algo, e Yeonjun continuou: — Não se preocupe, ele não me mordeu. Nem vai morder ninguém mais.
Ergueu o rosto, e o observou por um momento até que voltasse a falar:
— O que você fez? — perguntou irritado enquanto entregava uma garrafa com água e lenços para que Yeonjun limpasse o sangue sobre ele.
— Nada.
— Yeonjun. — Disse, o tom da voz não soava como ameaça, mas Yeonjun respondeu no segundo seguinte.
— Abri a cabeça dele. — Taehyung, ao ouvir-lo, colocou as mãos na cintura, a raiva transparecendo. — ... será que dá pra relaxar??
— Yeonjun, você sabe que isso-
— Eu sei, eu sei, eu sei. — bufou — Eu sei que você acha que essas coisas-
— Humanos — Taehyung disse, a voz elevou lentamente — e nós não matamos pessoas, apenas nos defendemos.
Jungkook se perguntava por quantas vezes eles seriam capazes de interromper um ao outro enquanto argumentavam.
— E de que outra maneira você acha que eu deveria ter feito? Ele não ia me deixar ir sem que eu virasse lanche dele, ou eu deveria ter o deixado no poço até que você descesse? — apontou para a perna de Jungkook, a calça encharcada de sangue no local da ferida.
Aquela frase pareceu ter atingido Taehyung, pois ele largou Yeonjun no mesmo instante: — Sim, é um alívio que você esteja bem. — acenou friamente.
Taehyung já estava com a mochila novamente nas costas, e passou direto por Jungkook, o semblante sério e uma adaga pressionada com força contra uma das mãos.
— Ei, você quer dar uma olhada nele? — Yeonjun se dirigiu a Jungkook, fazendo ele desviar os olhos do Kim.
— Em que?
— O que mais seria? — cruzou os braços e um sorriso cresceu nos lábios — a coisa está logo ali no final do corredor.
Taehyung virou abruptamente, segurou um dos braços de Jungkook, colocou sobre seu ombro e disse: — Vamos embora.
♰
— Você está bem? — Taehyung perguntou, não dando tempo para Jungkook responder e levantou o gorro dele, — Você está pálido.
Ele analisou aquele olhar castanho de perto, tentando pensar numa resposta convincente.
— Eu só estou nervoso. — deu de ombros, inalou o ar profundamente e puxou o gorro para o devido lugar.
O plano era deixar o prédio com auxílio de cordas novamente, o que não foi nenhuma surpresa para Jungkook, e se ele escapasse dali vivo, ele não iria querer saber de nenhum esporte que envolvesse ficar suspenso. Era um tormento.
Dessa vez eles iriam escapar pela janela, felizmente eram apenas 5 andares e logo eles estariam fora dali. O grande problema era o grupo de pessoas que estavam no térreo, eles teriam que ter sorte de descer sem que ninguém notasse.
Isso é possível?
— Cuidado ao descer — Taehyung disse, então sumiu corda abaixo.
E logo após Yeonjun, a vez de Jungkook chegou. Ele fez como antes, repetindo os movimentos que aprendeu com Taehyung no poço durante o que pareceu horas. As mãos escorregadias dificultavam, e isso o deixou ainda mais temeroso. Jungkook evitou olhar para algo além do chão, não encarou a fila imensa de carros logo atrás de si, ou o lixo acumulado pela rua, ou as janelas dos escritórios à sua frente.
Engoliu em seco enquanto sentia o suor acumular-se em sua testa, e continuou descendo, parando apenas quando estava prestes a acertar a cabeça de Yeonjun com a sola de seu sapato. Ele olhou para baixo e o que viu foi os olhos de Yeonjun fixos em si, a cabeça balançava de um lado para o outro, talvez ele estivesse enganado, mas notou o terror que consumia aquele olhar.
— O que houve?
Yeonjun nada disse, apenas negou com a cabeça novamente, dessa vez ainda mais forte.
Foi então quando ele viu que, abaixo de Yeonjun, Taehyung entrava por uma janela e se livrava das cordas. Por um instante ele não se incomodou, mas quando voltou a olhar para o rapaz embaixo, seu peito prendeu o ar que deveria sair. Jungkook desceu rapidamente, parando ao lado dele.
— O que está acontecendo? — perguntou.
— Temos que ir.
— Não é o que estamos fazendo agora? — indagou, era impossível saber a gravidade da situação pelo par de olhos que o encarava.
--- Vamos sem ele — disse o rapaz. — Ele vai distraí-los.
— Não.
— Não?
— Ele disse que eu sairia vivo daqui, ele prometeu. Como eu vou confiar em você? — Jungkook nem se esforçou para mencionar que ele havia o atingido na cabeça horas atrás.
— Merda — ele levantou o gorro da cabeça para que Jungkook pudesse ver sua expressão furiosa — Eu não tô nem aí pra qualquer promessa que o Hyung fez, eu estou aqui por sua causa, subi esse prédio do caralho por sua causa, mas eu não vou morrer por sua causa. Então cala essa boca e faz o que eu disse. O Hyung não precisa de mais problemas.
Chocado, Jungkook não conseguiu pensar em nada para responder, e a medida que ele foi se afastando, Jungkook não viu outra alternativa a não ser segui-lo.
Ao pisar no chão, Jungkook olhou rapidamente para cima, observando o topo do prédio no qual costumava observar a cidade todas as manhãs, e de todos os sentimentos que ele achou que teria, em nenhum momento ele achou que seria um vazio. Mas não conseguiu se manter naquele pensamento por muito tempo, Yeonjun o puxou pelo braço e, mancando, Jungkook o seguiu até uma picape estacionada perto dali.
♰
— Ele vai ficar bem?
— Sim.
— Mesmo?
— O Taehyung que eu conheço é durão, é mais fácil ele quebrar a cabeça tentando sair de um situação foda, do que ceder tão fácil.
Você que é o especialista em quebrar cabeças!
— Sabe, você pode olhar para outras coisas além dos próprios pés — Yeonjun gesticulou preguiçosamente.
— Mn?
— Ficou de cabeça baixa do momento que entrou naquele carro até chegarmos aqui.
— Ah, sim — Jungkook coçou a nuca enquanto pensava.
Eu fiz isso?
— Sim, olhe em volta.
Será que posso mesmo?
Jungkook respirou fundo, ele sabia que podia, mas ainda sim ele não podia.
Yeonjun tinha uma expressão curiosa. — E o que te impede? — ele perguntou.
— Talvez, — deu de ombros — medo.
— Sincero — Yeonjun riu, mas Jungkook notou o escárnio. .
— Por que eu não seria? — Jungkook desviou o olhar dos pés que balançavam e dirigiu sua atenção para Yeonjun.
— Sei lá, não é comum ver pessoas confessando suas fraquezas.
Jungkook não conseguiu evitar o riso.
— Mas você já não sabe que eu sou fraco? O que iria adiantar se eu negasse? — suspirou — Por que você acha que eu passei tanto tempo isolado naquele lugar? Aproveitando a vista do último andar?
— É uma boa desculpa — Yeonjun sorriu.
Jungkook levantou a cabeça e expirou o ar que prendia, se ele erguesse as mãos poderia tocar o teto, claro que a ideia de se esconder sentado numa viga havia sido de Yeonjun, e lá estava Jungkook novamente nas alturas, em um galpão abandonado.
— Eu não tenho nada a perder. — disse depois de um bom tempo.
— Como?
— Eu não me importo... cara, não sobrou nada, nem ninguém que eu conheça, com o que mais eu me importaria? — Jungkook notou ele acenar levemente com a cabeça — Então sim, medo, medo de olhar para essa merda e encarar a realidade.
ㅡ Qual é a realidade?
ㅡ Que antes eu poderia ter acabado com tudo quando tive a chance, eu provavelmente não teria sido o único, não quando o mundo virou esse pesadelo.
— Você tem um ponto.
— Mas decidi não desistir, e agora podem matar a qualquer momento... e dessa vez não vai ser nada bonito de ser ver.
— Se quer um conselho, fingir que o problema não existe não vai fazê-lo ir embora, essa merda toda não vai embora. Por mais que doa, é mais fácil encarar isso tudo, uma hora que você aceita, você fica mais forte, espera pelo pior e se mantém vivo.
— Foi o que você fez?
— É o que eu faço. Mas é reconfortante saber que eu não sou o único no barco afundando, tá todo mundo na merda — ele sussurrou a frase seguinte — a questão é: quem vai morrer primeiro.
ㅡ O que acontece se ele não voltar? ㅡ Jungkook tentou desviar o assunto de si, falar sobre ele mesmo estava o deixando enjoado, ele sentia que a preocupação atual não devia ser sobre ele.
ㅡ Ele sempre volta.
ㅡ Mas... e se ele não voltar?
Como anteriormente, Jungkook sentiu o olhar frio dele, como se a resposta fosse óbvia.
ㅡ Posso te perguntar uma coisa?
ㅡ Você vai perguntar mesmo se eu disser não, não vai?
ㅡ. É sobre o Taehyung, ㅡ respondeu. ㅡ Como ele sabia que eu estava naquele prédio?
ㅡ Você vai ter que perguntar a ele.
Jungkook já esperava por esse tipo de resposta.
ㅡ Mas tem algum tempo que eu notei que ele sempre apontava o binóculo numa direção específica toda vez que nos aproximávamos daquele prédio. Perdi a paciência e perguntei o que tinha lá, ele me disse que achava que tinha pessoas morando no topo do prédio.
ㅡ Só isso?
ㅡ O que mais você queria?ㅡ perguntou enquanto analisava as unhas sujas de poeira. ㅡ Depois de passar vários dias indo e vindo de Seul, ele finalmente chegou e disse: "Vou num lugar, você quer ir comigo?"... e cara, eu me senti nas nuvens, eu só havia auxiliado em buscas na cidade, mas entrar num prédio com ele? Finalmente era minha chance. Mas eu juro que toda a felicidade que eu senti naquele momento morreu quando o vi o quanto a gente ia ter que escalar no escuro, para chegar naquele andar.
ㅡ Foi a primeira vez que você entrou num prédio? ㅡ Jungkook perguntou confuso.
ㅡ Não. — Ele negou. — A vida foi dura e eu tive que me virar depois que toda merda foi jogada no ventilador. Mas agora que estou num grupo grande de pessoas, é diferente. O grupo de Taehyung sempre foi muito metódico, tem grupos de patrulha e outros de buscas na cidade, Taehyung e Baekhyun escolhem a dedo quem pode deixar os muros.
— Então você gosta de sair em buscas?
— Não, — Yeonjun disse — tenho coisas para me preocupar que estão dentro do muro. Mas preciso mostrar a Taehyung que consigo me virar bem, então vou ter liberdade de ir e vir, sem muito protocolo.
ㅡ Por quê?
— Chega de perguntas.
Jungkook ficou parado, absorvendo as palavras e se sentiu insignificante quando percebeu que todos estavam lutando pela vida enquanto ele se escondia, não que fosse novidade, mas toda vez que lembrava disso, ele se sentia um covarde.
O silêncio tomou conta dos dois, Jungkook calou a boca porque estava ocupado demais xingando sua natureza primitiva que o fez se esconder como um animal, e Yeonjun, bom, ele sequer parecia se lembrar que Jungkook estava ali.
O tempo foi passando e Jungkook já estava no limite, cansado de esperar e desconfortável, se equilibrando para não cair. Yeonjun parecia tão impaciente quanto ele, o rapaz já havia conferido o relógio inúmeras vezes. E em algum momento, enquanto Jungkook decidia se descia dali, um carro apareceu abruptamente, queimando os pneus enquanto entrava no galpão.
Yeonjun se manteve agachado, observando atentamente, a mão repousava na arma que Jungkook havia lhe devolvido mais cedo. Seu semblante só acalmou quando a pessoa que dirigia deixou o carro e bateu a porta atrás de si.
Em um segundo o rosto dele se iluminou e ele desceu rapidamente ㅡ Hyung!
Diferente dele, Jungkook demorou a descer, se atrapalhando algumas vezes enquanto chegava ao chão. Andou até os dois que conversavam, o rosto de Yeonjun se contorcia em raiva, se tornando cada vez pior à medida que Jungkook se aproximava.
ㅡ Tá tudo bem? ㅡ Jungkook perguntou ㅡ Você demorou bastante, como conseguiu- ㅡ A voz de Jungkook sumiu quando Taehyung virou para encará-lo.
O rosto dele estava, em poucas palavras, destruído ㅡ puta merda, você não tá nada bem.
Jungkook não era enfermeiro, mas não precisava ser pra ver que o nariz dele estava com uma hemorragia, sem mencionar os outros cortes nas maçãs do rosto. Todo aquele sangue escorrendo do nariz dele era de embrulhar o estômago.
ㅡ Você precisa estancar isso. ㅡ falou rapidamente.
Yeonjun finalmente deixou o transe e agiu, correndo em direção ao porta malas do carro. Ele retornou segurando uma caixa de papelão com gazes, compressas, álcool e outros materiais.
ㅡ Eu guardei algumas das coisas que pegamos quando fizemos busca no hospital, hyung. ㅡ disse enquanto colocava a caixa no capô do carro e puxava Taehyung ㅡ venha, eu vou fazer isso.
ㅡ Não, deixe que eu faço ㅡ Taehyung parou o mais novo ㅡ use o rádio e fale com os outros, eles devem estar esperando, avise a Baekhyun que estamos voltando para o abrigo. E tire essa cara, eu estou bem.
Yeonjun pareceu hesitar por um instante, mas logo pegou a mochila e se afastou com o rádio. Jungkook pode ouvir quando uma voz respondeu Yeonjun imediatamente, antes dele se afastar.
Taehyung estava de olhos fechados, agora sentado ao lado da caixa.
ㅡ O que aconteceu? ㅡ Não conseguiu segurar a língua.
ㅡ Acerto de contas ㅡ Taehyung disse ㅡ digamos que eu atrapalhei um pouco o plano deles da última vez que nos encontramos, é claro que eles não iam deixar barato.
ㅡ E hoje você fez de novo, né? ㅡ Jungkook perguntou, se aproximando da caixa e tentando não encarar o sangue que cobria a camisa dele.
ㅡ Como assim?
ㅡ Eles sabiam que eu estava lá, e você atrapalhou novamente ㅡ Jungkook se obrigou a observá-lo, o que ele não esperava era que Taehyung iria sorrir, os dentes cobertos de sangue, um tanto medonho, mas ainda era um sorriso.
— Eles ainda não sabem disso...
— Então, deu certo?
ㅡ Deu certo.
ㅡ Se eles te pegarem de novo...
ㅡ Não vão me matar, eles me devem uma, ou melhor, várias...mas vão continuar estragando meu rosto. ㅡ brincou.
Jungkook não quis saber o que era exatamente aquele grupo de pessoas, provavelmente não era boa coisa, a essa altura, ele nem mesmo sabia se Taehyung era uma boa pessoa, afinal, o que ele havia feito para receber uma surra dessas?
ㅡ Você tem sorte ㅡ disse Jungkook ㅡ eu brigava muito na escola.
ㅡ Significa que você vai dar uma surra neles por mim? ㅡ sorriu.
ㅡ Significa que eu sei como limpar esses cortes na sua cara. ㅡ deu de ombros, enquanto abria um pacote de gases.
— Então como você conseguiu fazer aquela merda de curativo na sua testa?
— Eu estava ocupado demais com medo, não é como se eu tivesse força de vontade para cuidar do corte naquele momento.
— Claro.
Taehyung não disse nada enquanto seu rosto era limpo, apenas fez algumas caretas quando Jungkook desinfectou os pequenos cortes.
ㅡ Não está tão ruim — disse após perceber que eles não falavam nada há um longo tempo, ele não era o tipo de pessoa que ficava confortável com o silêncio.
ㅡ Mesmo?
ㅡ Sim, eu acho que seu nariz não está quebrado ㅡ disse, enquanto levantava o queixo dele e observava o sangramento que havia parado por causa das gases que estavam muito bem enfiadas nos orifícios, não era uma cena nada atraente.
ㅡ Acha?
ㅡ Bom, é... pelo menos não tá torto ㅡ quis rir quando Taehyung levantou as sobrancelhas.
ㅡ Obrigado, doutor, espero que esteja certo, no momento estou sem grana pra pagar uma plástica.
ㅡ Eu disse que o nariz não tá tão ruim, não falei do resto do rosto.ㅡ Segurou o riso.
ㅡ Ah, e então?
ㅡ Parece que esfregou a cara no asfalto.
Ele riu, mas logo parou quando uma expressão de dor tomou seu rosto ㅡ Foi exatamente isso o que eles fizeram.
Jungkook travou, o olhando nos olhos ㅡ me desculpa.
ㅡ É brincadeira ㅡ ele riu novamente.
— Claro. — suspirou.
— E a sua perna? — perguntou, fazendo Jungkook lembrar de seu próprio corte.
— Ah, não está tão ruim quanto sua cara — mentiu.
— Tem certeza? não quer ajuda?
— Mn, não. Agora fica quieto enquanto eu termino.
Ele acenou com a cabeça, voltando a fechar os olhos. Jungkook se sentiu estranho, se no dia anterior tivessem dito a ele que em breve ele estaria conversando com alguém e até mesmo limpando o rosto dessa pessoa, ele jamais acreditaria. Para alguém como ele que passou os últimos meses sozinho, lutando para não enlouquecer, poder ter uma simples conversa sobre curativos era bom demais para ser verdade.
Jungkook o encarou por alguns segundos e conferiu seu trabalho. ㅡ Certo, certo. Terminei. ㅡ disse e se afastou.
ㅡ Já? — Taehyung se virou, encarando o próprio reflexo no carro.
ㅡ Sim ㅡ disse, mas então se aproximou novamente ㅡ na verdade, tire essa camisa.
Ajudou Taehyung a tirar a peça, e viu as manchas que começavam a ficar roxas nas costelas dele. ㅡ Dói?
ㅡ Um pouco.
ㅡ Quando respira?
ㅡ Só um pouco, nada demais.
Jungkook balançou a cabeça ㅡ Então não deve ser tão ruim.
Se afastou e retirou o próprio moletom e entregou para Taehyung.
ㅡ Não está tão limpo, mas pelo menos não tem sangue. ㅡ disse.
ㅡ Obrigado ㅡ disse Taehyung ao aceitar.
Jungkook se afastou e pela primeira vez notou o carro destruído que Taehyung havia pilotado para encontrá-los.
— Carro maneiro — apontou para o veículo e Taehyung ergueu as sobrancelhas em desafio.
ㅡ Camisa maneira ㅡ falou e então se afastou, resolvendo se ocupar em drenar a gasolina do carro que havia encontrado.
Jungkook olhou o que vestia e deu um riso soprado, era uma das únicas camisas que tinha, uma das poucas que achou no escritório.
Observou a frase desbotada da camisa no para-brisa e suspirou. Apesar da frase idiota sobre pesca e um desenho tosco de uma lula, pelo menos ele tinha algo para vestir. Deixou o pensamento de lado e resolveu dar um jeito na própria perna, que felizmente tinha parado de sangrar um pouco, mas ele precisava ter sorte para aquilo não infeccionar.
Quando terminou voltou sua atenção a Taehyung, que agora estava sentado no chão com o rádio na mão e um isqueiro na outra, que acendia o cigarro pressionado entre os lábios. Taehyung tragou o cigarro lentamente algumas vezes antes de se voltar a Jungkook e o chamar com um pequeno aceno.
— Estamos de saída, Yeonjun foi buscar a moto dele — falou, a fumaça nublando o rosto dele por alguns segundos. — E você?
— O que tem eu?
— Você tá livre — disse, um sorriso no canto dos lábios — para onde vai agora?
— Mn... — Jungkook murmurou, se permitindo sentar no chão em meio a poeira. — Eu não... pensei sobre isso.
— Não há tempo para pensar, o sol vai se pôr em três horas — Taehyung disse, mostrando o relógio de pulso na direção dele.
— Então eu tenho que achar um lugar pra ficar essa noite — falou, tentando encorajar a si mesmo com aquela frase.
Puta merda, ele tinha que achar um local seguro, caso contrário ele iria virar lanche.
— Não perca seu tempo — disse, tragando o cigarro. — Você não iria durar essa noite.
— Obrigado? Me sinto muito mais confiante agora.
— Não, é sério — ele disse, encarando Jungkook — Seul não tem muitos lugares seguros, e há muitas colônias aqui, durante a noite seria impossível dar um passo sem ser devorado.
— Eu vou dar um jeito. — disse ao tentar se levantar, se atrapalhando por causa da perna.
Mancar por aí ia atrasá-lo um pouco, mas Jungkook não tinha outra opção. Saiu do galpão, cerrando os olhos, o sol brilhava em seu rosto, respirou fundo e se pôs a andar.
Onde diabos eu estou?
Ele estava cercado de galpões, o lugar parecia uma empresa de armazenamento, e por mais que quisesse, ali não tinha lugar pra ele ficar. Nenhum dos prédios parecia em boas condições para abrigo, paredes, portas e até mesmo tetos destruídos.
Talvez se eu encontrar um carro...?
Escutou Taehyung o chamando atrás de si, mas ficar só iria tomar mais do tempo que ele já não tinha.
— Espera! Não vai — ouviu Taehyung pedir.
— Eu disse que não ia sair te seguindo por aí — Jungkook disse enquanto desviava dele e pilhas de caixas de madeiras, o lugar estava tomado de lixo.
— Não, ei! espera, espera. — Se colocou na frente de Jungkook, o cigarro estava pressionado entre os lábios e ele tinha as mãos erguidas impedindo Jungkook de dar mais um passo. — Vem com a gente.
— Eu nem te conheço, cara.
— É, mas eu te ajudei — disse — e você me ajudou em seguida — apontou para o próprio rosto quase desfigurado — somos... conhecidos.
— Ok, você me "ajudou" a sair do único lugar que me fez ficar vivo até agora, logo depois de me acertar na cabeça — disse, ignorando o outro que negava com a cabeça — então acha que te devo um obrigado? Muito bem, obrigado.
— Em minha defesa, eu não te acertei na cabeça. — Cruzou os braços — Vamos fazer o seguinte, você vem comigo, fica uma noite ou duas, você decide. Eu não vou ficar tranquilo se você sair sozinho por aí.
Jungkook sentiu seus ombros cair, desistindo. Era um plano razoável, ele só esperava que aqueles dois não tivessem intenções ruins, ele não estava afim de fugir de uma dupla de psicopatas.
— Esse sempre foi o seu plano?
— Então é um sim? — perguntou, o sorriso de volta em seu rosto.
— Uma noite. — Jungkook aceitou, pois não era hora pra ser imprudente.
— Ok, uma noite.
A energia eletrizante dele passou entre os lábios em forma de sorriso, mas era mais do que isso, Jungkook sentiu no fundo do estômago que não se livraria facilmente dele, mas no momento era a melhor opção.
— Yeonjun! — Gritou — Estamos de saída.
Taehyung correu em direção a picape e bateu no capô antes de abrir a porta e sentar-se, Jungkook se aproximou, o olhou nos olhos e sentiu a pele arrepiar. Ele estava prestes a confiar num estranho mais uma vez, se ele saísse vivo dessa, seria como ganhar um prêmio. Afinal, por que existiriam pessoas boas depois do fim do mundo?
Foi dentro do carro, enquanto Taehyung dirigia pelas ruas abandonadas de Seul, que Jungkook levantou o olhar pela primeira vez e observou a desgraça que havia assolado a cidade, completamente destruída.
ㅡ Quanto tempo até que tudo ficou assim?
ㅡ Eu não sei ㅡ falou, as mãos no volante e olhos na estrada ㅡ num dia existia uma sociedade no outro ela estava extinta.
ㅡ Não dá pra acreditar...
ㅡ Também demorei a acreditar.
ㅡ E quando foi?
ㅡ Huh?
ㅡ Quando você começou a acreditar... nisso tudo?
ㅡ Você não vai se sentir assim por muito tempo, mas tenho certeza que quando você encontrar com um deles e tudo for sobre sua sobrevivência e as tentativas deles para te matar, aí você aceita, e ensina a si mesmo como tem que viver.
Em algum momento Jungkook se desligou do que Taehyung dizia, as palavras se embaralhando enquanto ele via os prédios em ruínas passando por ele, a mente ficou em branco e ele tentou ignorar a garganta e os olhos que queimavam, mas ele não iria chorar, não quando tudo já acabou e nada podia ser feito.
ㅡ Sabe, eu acabei de encontrar uma coisa familiar pra mim — Jungkook falou depois de longos minutos calados olhando adiante.
ㅡ O que é?
Jungkook retirou o cotovelo da janela, esticou o braço e apontou o dedo na direção de Yeonjun, que dirigia logo à frente.
ㅡ Yeonjun?
ㅡ Aquela moto ㅡ disse, as palavras saindo vazias de emoções ㅡ Conheço aquele emplacamento como ninguém, costumava ser meu antes de tudo isso acontecer.
Ele ouviu a risada de Taehyung ecoar pelo carro.
— Que coincidência!
O Jungkook de antes jamais deixaria alguém pilotar sua moto, mas naquele momento, sequer sentia que o veículo havia pertencido a ele naquela vida, parecia ser um passado muito distante.
Sua atenção foi carregada de volta à paisagem, ele absorvia o que via, mas tudo se resumia a tristeza. Enquanto deixava as informações que o atingiam impregnando seus sentidos, uma questão surgiu dentro de si, fazendo ele cogitar se era mesmo possível viver nesse mundo, afinal, assim como ele, tudo o que Taehyung fez foi sobreviver. Definitivamente, eles mereciam mais do que apenas lutar pela chance de ter mais um dia. Deveria haver a possibilidade de ser feliz.
Ele suspirou, e com melancolia ele reconheceu que viver era algo que ele queria, talvez sempre foi isso que ele quis e escondeu, no fundo das entranhas, a fim de não ser perturbado por um desejo que tentava pulsar tão forte dentro de si.
Este foi o combustível que o fez acreditar em estranhos que garantiam chances de vida.
Jungkook se perguntava se seria possível, se ele teria essa chance.