"Está começando neste exato instante o terceiro e último show do aniversário da cidade comandado por Ramon Perez. O produtor musical e artístico nascido na Espanha, filho de pai brasileiro e mãe hispânica, mudou-se para Soledade há pouco mais de cinco anos e, desde então, embala o último dia de festa com canções apaixonadas cantadas sobretudo em inglês. Pensando na acessibilidade dos que não falam ou entendem a língua, dispõe em seus telões a letra das músicas escolhidas a dedo por ele, trazendo sempre consigo inspirações de reis e divas do pop interpretadas por homens e mulheres com um potente vocal. O tema proposto da noite é "Amar no Adeus" e promete fortíssimas emoções para os apaixonados de plantão. E eu, como crítico do blog incorporado ao principal jornal da cidade, estou ansioso para ver quais serão as surpresas de hoje, visto as últimas fofocas que rolaram sobre um possível boicote. Atualizarei os leitores em breve sobre essa parte da história e direi se Ramon conseguiu, mais uma vez, trazer conteúdo de qualidade mesmo sob fortes indícios de traição vindo dos seus próprios músicos. Enquanto o show não começa, conheça a trajetória do seu idealizador através dos links disponíveis abaixo..."
— Texto de Alberto Saldanha, crítico de arte em sua página pessoal alertando sobre o show que aconteceria naquela noite do dia sete de agosto de 2021.
A pele do meu braço se arrepia enquanto sinto meus dedos entrelaçados aos de Thomas. Estamos de mãos dadas no palco recebendo as últimas palmas calorosas do público. Não consigo deixar o sorriso estampado em meu rosto se abater mesmo depois de me lembrar das consequências que aquela noite me traria.
Tudo havia se saído incrivelmente bem. Ao menos achava que sim. Não conseguia dizer sobre como meu rosto havia parecido enquanto cantava, se estava de fato bonito ou não, contudo, todas as emoções foram genuínas. Não poderia ser melhor do que isso, poderia?
Eu iria aguardar os vídeos e comentários alheios para saber, mesmo tendo plena consciência de que não deveria procurar por eles. Afinal, as pessoas podem ser indelicadas sobre mim mesmo não tendo nada contra, e isso poderia abalar a minha confiança.
Entretanto, sairia plenamente satisfeita se ao menos tivesse ajudado Ramon a manter a sua escola. Isso bastava. Com o tempo, melhoraria minha presença de palco, o meu vocal e me tornaria cada vez melhor.
Thomas beija o dorso da minha mão e me olha com um sorriso doce nos lábios. Ele está radiante tal como nunca, lindo usando aquele último terno de cor preta, brilhando sob as luzes coloridas dos refletores no palco. Eu sinto meus olhos pesarem sobre a sua imagem e a guardo dentro de mim com ternura da mesma maneira que sempre fiz.
Sorrio para ele e sinto meus olhos lacrimejarem. Algo dentro de mim dói, me desperta e me impulsa a acreditar que aquilo era um sonho e a qualquer momento eu iria acordar e, novamente, veria que Thomas, na verdade, não estava ali.
Aperto um pouco mais a sua mão instintivamente quando sinto isso. Eu ainda carregava um trauma, ele ainda não havia me contado o que aconteceu. Porém, deveria mentir para mim mesma todas as vezes que o visse e continuar tentando afastá-lo? Eu deveria levar comigo todo esse rancor pelo resto da vida? Mudar meus planos e aceitar coisas que nunca quis somente para tentar sair do imenso e profundo sentimento que nutria por ele desde que nos conhecemos?
Oito anos havia se passado e não deixei de amá-lo um segundo sequer. Isso era um problema, mas fazia parte de mim. Há coisas que o tempo não leva embora.
Quando saímos do palco, andamos juntos até os bastidores ainda com os dedos entrelaçados. Lá, Ramon me abraça e eu me solto de Thomas.
— Vocês foram incríveis! — ele diz eufórico apertando-me agradecido. — Maravilhosos! Mais perfeitos do que a própria perfeição. — Dá um abraço em Thomas também e posso ver que seus olhos estão marejados e sentimentais.
O produtor cumprimenta todos os demais de acordo com a chegada. São muitas pessoas, a área coberta fica cheia e um pouco abafada.
— Meus parabéns! — Freddie se aproxima eufórico. — Participei dos espetáculos de Ramon por dois anos e nenhum deles foi tão emocionante quanto este.
— Talvez você esteja mais sensível nesta noite do que nas outras — Thomas sugere.
Freddie faz uma careta de desgosto.
— Não precisava me lembrar disso. — Ele suspira. — Mas eu sei do que estou falando! Confiem em mim, serão amplamente elogiados.
— Espero que sim, dessa maneira não teria vergonha de voltar no ano que vem.
— Você foi maravilhosa, Bel, não tenha dúvidas disso — Thomas intervém quando percebe meu olhar ansioso. — Foi o maior acerto do Ramon.
— Vocês dois são exagerados e eu já disse que seus elogios não valem.
— Mas eles têm razão. — Ramon volta pescando uma parte da conversa. — Estoy muy encantado, niña. A última música me pegou de jeito e eu chorei feito uma criança enquanto via sua interpretação. Ah, o que um coração partido não faz!
Senti meu rosto corar ao ouvir isso.
— Brindamos a este momento! — ele diz em voz alta e procura pelas bebidas que havia comprado para os bastidores.
Foram distribuídas taças de champanhe entre os adultos e suco de maçã para os adolescentes — que reclamaram não poderem usufruir da bebida alcóolica, mas aceitaram mesmo assim —, e brindamos pelo sucesso e o fim daquela noite que tinha tudo para ser conturbada e não ter um final feliz.
Senti um alívio percorrer pelo meu corpo eufórico enquanto bebia o primeiro gole. Parte da tensão e ansiedade havia se dissipado de uma vez nesse pequeno gesto e me notei intimamente agradecida. Depois disso, provavelmente passaria um dia inteiro descansando sem mover um músculo na cama.
Quando as taças foram recolhidas e mais algumas fotos e vídeos feitos, os bastidores foram abertos para o público e os músicos foram dispensados após as palavras finais de agradecimento de Ramon e alguns recados. Por mim, ficaria aqui por mais um tempo vivendo a plenitude de um sonho ao lado de duas pessoas que amava — Thomas e Freddie. Os dois ali faziam este momento ser ainda mais grandioso pessoalmente falando.
...
— Você quer ajuda? — Thomas questionou quando me viu juntando os vestidos para carregá-los comigo após verificar se todos estavam nos conformes.
— Meus pais devem estar me esperando, mas eu agradeço. Você também tem muitos ternos para levar.
— Nada comparado a esses pacotes de... — Ele nota algo no chão e o pega. — Bel, o seu anel caiu.
Devolve a joia emitindo uma careta de desgosto que não fez questão de esconder.
— Ah, obrigada. — Recolho a peça e a coloco dentro da minha bolsa. Era demasiada cara para não a devolver para Daniel. Não queria nada dele, ainda mais se tratando de algo tão desnecessariamente dispendioso.
— Não vai usar? — Thomas nota surpreso.
Nego com a cabeça.
— Não posso ignorar o que ele fez. Passou dos limites e se portou como um criminoso. Além do mais, quis invadir os bastidores para me impedir de continuar cantando. Acredita nisso?
Thomas levanta os ombros e as sobrancelhas.
— Não me surpreende. Não a apoiou no mínimo que iria fazer, obviamente enlouqueceria quando a visse domando o show que ele tanto fez questão de ajudar a afundar.
— Me desculpe pelo que aconteceu hoje. Eu prometo que irei conseguir suas coisas de volta.
Thomas passa a mão pelos fios que estão no meu rosto e os afasta para atrás da orelha.
— Não se preocupe com isso. Tenho chaves extras tanto do carro quanto da casa — esclarece. — Porém, tenho medo do que irá acontecer com você a partir do momento que se virem. Se quiser, posso ficar ao seu lado.
Dou um sorriso para ele e uma pontada invade meu coração, que começa a palpitar ainda mais forte quando percebo nos encostarmos minimamente corpo a corpo agora.
— Não precisa. Eu sei lidar com Daniel melhor do que qualquer pessoa.
— Mas, ele não deve levar numa boa. Pretende terminar o noivado? — questiona com um fio de esperança na voz.
— Sim. Ele não se parece nada com o homem que me interessei um dia.
— Ou talvez esteja se sentido confortável demais para mostrar quem sempre foi.
Penso um segundo sobre aquilo.
— Talvez a culpa seja minha — raciocino.
— De maneira nenhuma! — Thomas exclama e toca em meus ombros delicadamente. — Não se culpe por seu desequilíbrio mental, não fez nada que o instigasse a agir da maneira obsessiva que está agora.
— Mas eu também não fui sincera com ele.
Me afasto um pouco de Thomas e passo a mão pelo meu rosto.
— Porque eu não consegui ser sincera nem comigo mesma em todos os anos que ficamos juntos. Sei que não alimentei suas fantasias, mas o deixei sonhar com coisas que não queria e nunca exigi que ele parasse. Entende? Nunca disse a Daniel o que pensava verdadeiramente sobre aquilo tudo. A nossa vida era perfeita enquanto deixava rolar, mas, a partir do momento que não repreendi seus planos ao meu lado, virei culpada por chegar até aqui.
— Você não queria se casar com ele?
— Não! — Sinto um gosto amargo na boca ao responder. — Nunca quis.
Thomas se aproxima novamente e toma as minhas mãos.
— E você disse isso a ele?
Balanço a cabeça afirmando.
— Algumas vezes, sim.
— Então ele sabe. E a culpa não é sua por ter aceitado, provavelmente por pressão, ou por causa das circunstâncias.
Suspiro longamente, deixo um gemido de dor escapar e recebo um abraço de Thomas. Aperto seu corpo no meu tão forte que sinto-me afundar em seu tronco. Se eu pudesse, me fundiria a ele e não sairia mais dali.
Esta cena é vista por meus pais que entraram no camarim junto com Freddie. Thomas e eu nos soltamos, mas não sinto a mínima necessidade de fazer isso às pressas para os outros não verem depois de tudo o que presenciaram no palco.
— Finalmente conseguimos chegar até aqui. — Mamãe me abraça em seguida. Percebo que está emocionada por ter parte da sua maquiagem dos olhos borrada.
Também abraça Thomas com o mesmo carinho, que a recebe tão feliz pela demonstração de afeto como sempre fizera. Papai me dá um beijo no rosto e se coloca ao meu lado após apertar a sua mão.
— Que surpresa — ele diz se referindo ao show. — Não esperávamos nada disso. July chorou durante todo o tempo desde que apareceram naquele palco. Nunca a vi tão comovida. Por que não nos contaram?
— Longa história. Mas, resumidamente, não podíamos contar.
Thomas confirma com um aceno.
— Tudo bem, em casa quero ouvir todos os detalhes! — mamãe pede com animosidade. — Como não sabia se iriam para alguma festa depois daqui, preparamos algumas coisas para comer e alguns drinks. Vocês querem? Ou tem planos? Venha também, Freddie, chamamos nossos amigos e estamos indo para lá.
— Impressionante vocês deixarem Isabelle beber. Meus pais nunca me viram bebendo em casa. São extremamente religiosos.
— E no chá de panelas? — lembro. — A quantidade enorme de bebidas que tinha não parecia nem um pouco religiosa e parte da sua família também não.
— Você mais do que ninguém lembra disso, não é? — ele brinca e eu logo faço careta por recordar daquela última ressaca. — Pois garanto que não bebi uma gota.
— Hipócrita e mentiroso — Thomas acusa com uma risada. — Só não ficou mais bêbado porque ficou com medo dos outros sentirem seu bafo de cachaça quando te abraçaram.
Todos riram e Freddie fez cara feia para o amigo.
— E você só não bebeu para não dar vexame chorando por causa da Isabelle na frente dos outros.
Me assustei e Thomas deu de ombros sem se importar.
— Daniel veio? — papai pergunta baixinho apenas para mim, porém todos escutam. — Eu ainda não o vi.
Engulo em seco antes de responder.
— Bem, sim. E eu preciso conversar com ele antes de ir para casa. Vocês poderiam levar minhas roupas, por gentileza? Chego lá mais tarde. Prometo que não irei demorar.
Ambos me encaram um pouco confusos e curiosos, mas assentem e cada um pega duas araras com os vestidos, capas e as joias.
— Você tem certeza que não quer companhia? — Thomas questiona mais uma vez antes de sair. — Não sou tão forte quanto ele, mas posso apanhar enquanto você corre.
— Tenho — confirmo rindo da sua piada, mas sinto as pernas tremerem ansiosas mais uma vez naquele dia. — Não se preocupe comigo.
***
Não precisou de dois toques no celular para ser atendida por Daniel. Saí dos bastidores e desviei do caminho dos meus pais e fui em direção a um banco no meio da praça onde ele informou estar.
Ainda estava com o vestido preto, o último que usei no show. Sua calda se arrastava pela grama e fazia um barulho irritante enquanto marchava até ele.
Daniel me aguardava de pé, braços cruzados e um olhar assustadoramente ameaçador. Nunca o vi tão irritado quanto agora.
Porém, não tinha medo dele. Poderia apostar, na verdade, que eu estava muito mais nervosa depois de todo o perrengue que passei naquele dia, naquelas semanas e, porque não, naqueles anos.
Essa não seria uma discussão fácil e muito menos amigável, mas era hora de colocar um ponto final na nossa história antes que me prenda a ele pelo resto da vida através do matrimônio indesejado.
— Vamos conversar em casa, aqui não é lugar para isso — ele exige assim que me vê diante sua figura e toca em meu braço, apertando-o firmemente e me forçando a dar alguns passos.
Me solto bruscamente empurrando-o para trás com o máximo de força que consigo. Sinto seus dedos deslizarem pela minha pele e o ponto tocado arder logo após. Daniel havia me apertado tanto que suas unhas se cravaram na carne.
Poderia me machucar ainda mais, tinha consciência disso. Mas, ali tinha a opção de gritar e, caso ele tente alguma coisa, não pouparia esforços para chamar a atenção.
— Eu não vou a lugar algum com você — respondo engolindo todo o ar que dispunha para me manter calma. — Minha casa não é a sua e não pretendo colocar os pés lá tão cedo.
— Você me apunhala pelas costas e ainda tem a audácia de me responder dessa forma?
Ele estava brincando, só podia ser.
— Vai discordar, querida? O que diabos foi aquela palhaçada a que se submeteu horas atrás?
— Eu estava ajudando Ramon e não me arrependo. E eu o "apunhalei" depois de levar uma rasteira sua, seu desgraçado — lembro com pesar. Não esperava nada disso vindo dele mesmo que demonstrasse todo o ciúme do mundo por causa de Thomas.
— Ah é, Isabelle? E o que eu fiz para você? Pode me refrescar a memória? Porque, pelo que me lembro, nada foi destinado à sua pessoa.
Daniel voltou a montar sua guarda assustadora quando questionou.
— Não se faça de desentendido. — Odiava esses joguinhos. — Eu não preciso dizer nada. Está tão fresco na sua memória que nem uma pancada agora poderia fazê-lo esquecer. Acha mesmo que suas atitudes mesquinhas não me atingiriam? Tem que ser muito ingênuo para imaginar que não.
Ele revirou os olhos.
— Você me desrespeita na frente de toda a cidade e o problemático da história sou eu? — contra-argumenta infantilmente. — Não parou para pensar um segundo sequer que a sua mentira iria me atingir e eu ficaria como idiota depois desse espetáculo meia-boca? Estava berrando aos quatro ventos, com aquelas músicas espetaculosas, coisas pessoais entre você e aquele imbecil... só um tolo não entendeu isso! E eu fico como? Sou o seu noivo, Isabelle! Seu noivo! Mereço o mínimo respeito.
— Não me importo com a sua reputação — digo com sinceridade. — Não depois de me mostrar o nível que pode chegar em questão de baixaria!
— Do que diabos está falando?! — ele berra. — Não fiz nada!
— Não se faça de idiota. Eu não nasci ontem. Não ache que conseguirá continuar me manipulando dessa maneira — grito ainda mais alto. Não me importo se estamos em um espaço público ou não.
— O que você acha que eu fiz? Que tipo de fofoca fizeram para você estar pintando um monstro com a minha cara na sua mente?
Ele era mesmo inacreditável. Como podia fingir e continuar se fazendo de santo? Nunca imaginei que pudesse ser tão cara de pau a ponto de comprar briga mesmo sabendo que estava errado.
— Me devolva as coisas de Thomas. — Não estava a fim de estender aquele assunto. Eu estava cansada, magoada e cheia de remorso pelos anos perdidos ao lado dele.
Daniel me encarou firmemente por cinco segundos.
— Por que você acha que eu tenho alguma coisa daquele filho de uma puta comigo?
Eu não sabia se ele estava se fazendo de idiota ou jogando para saber quem o entregou. Fecho as mãos em punho e juro que estou para socar a sua cara.
— Porque você roubou as suas chaves e o celular. Me devolva antes que chame a polícia. Não duvide que não faça isso, pois estou a um passo.
— Isabelle, eu não...
— Você, Helena, tanto faz! Eu sei que foram vocês — esclareço aos berros enquanto contenho meus braços para não voarem até ele. — Quem você acha que tirou Thomas de lá?
Daniel desvia o olhar e percebo que se sente um pouco perdido sob esse argumento. Talvez só agora tenha se dado conta de que eu mesma pudesse resolver este plano maligno sob as condições que me encontrava entre ele e Thomas.
— Não sei do que está falando — continua sustentando a mentira.
Não, não era possível que eu iria me casar com aquele dissimulado. O que me protegeria das suas mentiras escabrosas, afinal? Da maneira que ele se portava violentamente? Daniel parecia problemático num nível tão alto agora que me senti burra por não perceber que ele seria, sim, capaz de fazer coisas como esta.
— Quem naquele hospital seria capaz de resolver a merda que vocês dois fizeram em menos de cinco minutos? — Apontei para mim mesma como solução. — Tenho minhas digitais registradas em todos os cantos naquele lugar. Eu entro onde eu quiser! Tirei Thomas do cárcere improvisado por vocês em dois tempos. E sabe o que é melhor? Tenho acesso às câmeras. — Isso era parcialmente mentira, mas nada que um pedido especial a alguns dos sócios não providenciaria. — Se eu quiser, boto você e aquela megera na cadeia! Não teste a minha paciência.
— Você só pode estar ficando maluca.
Típica frase que homem solta quando está errado e não sabe mais por onde fugir.
— Eu estou, querido? — Me aproximo dele sentindo meus lábios tremerem. — Vai mesmo continuar fingindo sua santidade? Não preciso de muito para acabar ainda mais com a sua reputação, Daniel! Agradeça-me por estar pedindo apenas as coisas de Thomas de volta.
— Está me ameaçando? — Ele agarra novamente meu braço e o aperta até ficar dormente.
— Eu estou — afirmo forçando-me a não emitir uma careta de dor por causa do seu aperto. Mesmo ele sendo muito maior do que eu, sustento minha posição e não baixo a guarda — Você não sabe do que eu sou capaz!
— Ah, e o que vai fazer para me atingir? Cantar na praça? Porque não fui eu a prender seu amiguinho no armário de poltronas, foi a mulher de um sócio do hospital. Caso alguma coisa aconteça, é mais fácil você ser demitida do que ela presa. E eu não poderei fazer nada para ajudá-la, pois não tenho nada a ver com isso.
— Se não tem, então como sabe que ele ficou preso no armário de poltronas? No mínimo é cumplice! — reclamo soltando novamente meu braço da sua mão. — Você ameaçou Thomas, roubou as coisas dele e fez de tudo para prejudicar o show de Ramon. E eu posso provar isso. Não medirei esforços para que vocês dois paguem e você sabe muito bem que há pessoas importantes que sustentariam minha denúncia.
Ele dá uma risada alta e me encara debochado.
— Você é uma idiota, sabia disso? Não consigo acreditar que está defendendo aquele marginal. Mereceu mesmo sofrer por todos esses anos. Não sabe reconhecer uma boa pessoa nem que ela se esfregue em sua cara.
Daniel balançou suas mãos frente a mim como exemplo e quase sinto a sua palma na face.
— Você é cega, Isabelle, cega! — Continua gesticulando de um lado para o outro descontroladamente. — Eu faço tudo por você, dedico minha vida para te dar o melhor e é assim que me trata? Eu estive aqui tentando conquistá-la dia após dia depois que aquele imbecil foi embora. Estava aqui quando precisou de mim. Eu sou o seu verdadeiro amigo e parceiro. E eu sou seu noivo! Não poderia admitir que entrasse naquele palco com ele. Eu não ia assistir acontecer sem fazer nada! Não posso admitir que você pise o mesmo chão, que respire o mesmo ar, que troque mínimas palavras com aquele moleque.
— Thomas é muito mais homem do que você! — reconheço irritada. — Sonha com o dia que irei admirá-lo da mesma forma e sabe que não vai conseguir nunca.
— Homem? — Ele ri e balança a cabeça negando. — É um pirralho, isso sim. Desde que chegou nessa cidade há anos, não faz nada além de tentar chamar a atenção das pessoas. Um fedelho que não faz absolutamente nada além de encher a paciência dos outros sendo extremamente carente!
— E você é alucinado por ele desde então — acuso. — Deseja ter a admiração que Thomas tem, mas não consegue ser metade do homem que ele é. Eu sei que você já chegou a essa conclusão há tempos quando resolveu criar rixa sem sentindo no colégio por causa de nível de popularidade.
Daniel junta as sobrancelhas e percebo uma veia grossa saltar em sua testa.
— Então, se ele é moleque como você diz, o que você é? Não passa de uma criança birrenta que não sabe ouvir um não! Sonha com o momento que perceberá que tem tantos admiradores quanto ele. Mas você não vai, sabe por quê? Porque é egoísta, mimado e egocêntrico.
— Escuta aqui — ele se exalta novamente e me empurra para trás —, você não sabe de nada sobre esse desgraçado e o protege? Se ele é tão perfeito assim como pinta sua imagem, me diga o que estava fazendo nesses oito anos que sumiu!
Sinto minhas costas se chocarem no tronco de uma árvore e meu caminho ser travado pelo corpo imenso de Daniel.
— Ah é, você não sabe — ele lembra com uma risada. — Ele poderia ter matado alguém enquanto finge ser a pessoa mais calorosa do mundo. Ao menos eu não guardo segredos de você!
— Você acabou de fazer uma coisa abominável e está se sentindo no direito de julgar alguém?
— Eu não fiz nada — repete. — Ainda. — Daniel dá um sorriso irônico e assustadoramente satânico. — Mas, eu vou descobrir esse mistério que ronda seu amigo, colocá-lo em seu devido lugar e você irá assistir de camarote!
— Se ele tivesse feito alguma coisa de errado, não estaria aqui — arrisco.
— Você confia muito nele, mas eu vou mostrar que está indubitavelmente equivocada. E a senhorita, querida Isabelle, vai me pedir perdão de joelhos depois disso. — Toca no meu queixo, me força a olhar em seus olhos e aperta minhas bochechas até meus lábios se entreabrirem.
— Eu prefiro me ajoelhar e bater boquete para o capeta.
Daniel me solta estarrecido. Ele não era louco de fazer nada comigo ali, ainda estávamos na rua apesar de a pessoa mais próxima estar a alguns metros de distância.
— Você ainda vai se arrepender por dizer essas coisas — intimida cheio de arrogância. — E quando nos casarmos, vai andar na linha.
— Eu já estou arrependida — digo, pego o anel que estava em minha bolsa e jogo para ele —, principalmente pelo momento em que me deixei acreditar que você era mesmo a pessoa ideal para mim.
Ele pega a joia no ar antes que caia.
— E eu realmente achei que algum dia nós pudéssemos ser felizes, mas você não me conhece — lembro. — Não sabe de nada sobre mim, sequer entendeu que eu nunca, jamais quis me casar com você.
Daniel fica paralisado enquanto ouve, mas suas duas mãos estão fechadas em punho e tremem violentamente.
— Você nunca quis saber dos meus gostos, nunca prestou atenção em minhas manias ou nos meus talentos. Nunca me impulsionou a ser melhor, sequer conhece parte dos meus sonhos. Fui eu quem se esforçou para continuar nesse relacionamento acreditando nesse sentimento falso. Daniel, você não me ama. Você ama o que inventou de nós dois, e nessa sua ilusão, sou apenas uma boneca sexual que joga de um lado para o outro quando quer.
Ele segura meus dois braços. Sinto a pedra do anel fincando junto com as unhas e percebo que não se importa de estar me machucando.
— Se você não se casar comigo, não irá se casar com ninguém mais! — garante. Sinto um arrepio atravessar minha espinha mediante essa ameaça. — Porque eu acabo com a vida de qualquer homem que ousar tentar te roubar de mim.
— Eu nunca fui sua. — Solto uma risada debochada enquanto sinto meu rosto se molhar mediante a dor dos seus apertos. — Meu coração sempre pertenceu a um homem, apenas. E eu não precisava te dizer isso, você sempre soube. Não há um momento da nossa história em que eu tenha deixado de pensar nele, desejado estar com ele, ou até mesmo trocar qualquer coisa que você me ofereceu durante todo esse tempo por alguns segundos nos braços dele. Não o amo da mesma forma, Daniel. O que sentia por você não chegou aos pés do que eu senti nem nos meus piores dias longe do Thomas.
Daniel me solta, desamassa sua camisa e alinha seu cinto. Depois disso retira umas chaves do bolso e as joga ao meu lado, deixando o celular por último.
— Você não ficará com ele — reafirma entre dentes, atirando o celular que provavelmente era de Thomas no chão e pisando nele com força até se estilhaçar. — Se não ficar comigo, tampouco ficará com aquele fedelho. — Pega o que parecia ser o chip e o guarda em seu bolso. — Eu juro que acabarei com essa ilusão e você vai me agradecer por libertá-la dela. Porque sim, Isabelle, ele também está mentindo para você. Vamos ver quem estará certo no final.
Daniel saiu da minha presença sem protestos novos pelo fim do noivado e desapareceu das minhas vistas. Pude respirar em alívio por alguns segundos até sentir um arrepio subir pela espinha ao processar as suas últimas palavras.
Por qual motivo havia pego o chip do celular? Quais eram seus planos?
Peguei as chaves de Thomas e a carcaça inútil do telefone com o sentimento amargo do desgosto na boca. Não sabia o porquê, mas algo me dizia que aquele assunto estava muito longe de terminar e eu ainda não tinha me livrado da obsessão de Daniel.