AMARELO, AZUL E BRANCO | inês...

By bookverseofbooks

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"Eu não sei diferenciar você de mim." Quando duas almas perdidas e sofridas se reencontram, encontram em si m... More

nota da autora
prólogo
capítulo 01 - encontros e despedidas
capítulo 02 - intervenções
capítulo 03 - matinta
capítulo 04 - buraco
capítulo 05 - nada é o que parece
capítulo 06 - nana, neném
capítulo 07 - o curupira
capítulo 09 - estágios
capítulo 10 - luto
capítulo 11 - veneno
capítulo 12 - libertação
capítulo 13 - laços
capítulo 14 - tempo
capítulo 15 - alternativa
capítulo 16 - ápice
capítulo 17 - desfecho
epílogo

capítulo 08 - leilão

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By bookverseofbooks

Olá!!! Eu prometi e veio!!!

Esse capítulo está a coisa mais linda, aliás. Como eu disse, provavelmente é um dos meus favoritos dessa história...

Só um aviso antes de começarmos que esse capítulo contém menções de violência, homofobia explicita e mais algumas menções que podem causar gatilhos em quem está lendo. Caso se sintam desconfortáveis com o tema, podem pular as partes... A saúde mental de vocês vem primeiro!

Sem mais, vamos ao capítulo porque esse promete!

Boa leitura e não se esqueçam de interagir!

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INÊS

- Aonde é que a senhorita pensa que vai toda linda desse jeito, Inês?

Me viro para encarar Tutu, terminando de amarrar meu vestido preto e lançando um daqueles sorrisos de canto que dão certo para homens quando as mulheres querem convencê-los.

- Vou atrás da cura para a gente, oras - respondi, rindo. - Vou naquele leilão ver de perto o tal do Lazo... ver se ele é tudo isso mesmo.

Atrás dele está Isac, devorando um pão com mortadela enorme - claro, roubado de alguma lanchonete de esquina -, que quando me encara também, começa a rir daquele jeito moleque de Saci dele. Reviro os olhos porque sei o tamanho da bomba que pode vir assim que ele abrir a boca.

- Você tá linda demais para só acompanhar o leilão, Inês... - ele provoca. - Vai tentar enfeitiçar o homem do garimpo, vai? Vai tentar fazer um "nana neném" com ele, vai?

Eu disse.

- Não, Isac, hoje não. 

Não sei porque estou com uma sensação de que alguma coisa pode acontecer, uma sensação que não é nada boa. Aquela sensação de que o dia está bom e correndo bem demais, sensação daquelas pessoas pessimistas com a vida que pensam que só merecem tragédias... Quando vejo meus amigos, meus dois amigos ali disponíveis, sinto um aperto no peito enorme. 

E sinto saudade do tempo em que corríamos para nos juntar aos humanos sem medo de que alguém pudesse nos destruir ou destruir um deles.

Tentando esquecer aquilo de uma vez só, ando até Tutu com meus saltos enormes por baixo do vestido preto comprido, e olho para ele, alisando sua barba enorme e ruiva. Ele continua com a mesma carranca de sempre, me olhando de cima a baixo, quase desconfortável com a minha exposição.

- Fica de olho neles por mim, tá? - sussurro, brincando com a situação. 

Ele dá de ombros.

- Qual é, você volta logo, não volta?

Eu sorrio.

- Não significa que você pode deixar nossa turma a Deus-dará... - olho para Isac, indicando que ele sabe qual a situação que mais me preocupa. Ainda bem que Tutu entende sem que eu precise me estender. - Obrigada, Tutu. Sei que posso contar com você...

Eu saio do Cafofo e passo pela enésima ala secreta que encontro, só para não ter de trombar com homens aproveitadores bêbados que querem me assediar, só para não ter de dar satisfação a qualquer outro que estiver passando na rua. Dessa vez, no meio do caminho, não me transformo em borboleta, pelo bem da minha classe - ou da tentativa de ser de classe -.

* * *

Como eu esperava, a casa é enorme e está cheia. 

Tem pessoas do lado de fora, bebendo e conversando, algumas até estão trocando carinhos, mas, no meio de um monte de homens engravatados e mulheres bem vestidas, a possibilidade de haver demonstração pública de afeto era mínima. Caminho como se fosse uma das convidadas, evitando olhar nos olhos das pessoas presentes.

Enquanto entro na sala enorme - um corredor longo e iluminado com lustres de cristal e velas bem acesas, envolto por uma música clássica, vozerio e cheiro de vinho tinto -, penso em como vou fazer para falar com Lazo. Espero que, pelo menos, os donos do leilão façam o mínimo e nos deem uma demonstração do talento do homem, porque se Isac estiver mentindo para mim, aquele molequinho vai pagar caro.

Até ontem, encontrar uma cura para os meus problemas não era urgente. Agora é.

Falando em problemas, como se nada pudesse piorar, dois olhos enormes e curiosos cruzam com os meus, enquanto estou distraída. Ela está na outra ponta, tão desconfortável quanto eu, tão excluída quanto eu, mas está me olhando e está tentando se adaptar a isso. (S\N) me faz perder a compostura, com um vestido verde que, apesar de não ter sido feito para a ocasião, casou perfeitamente com a estrutura de seu corpo e a sua personalidade forte.

De repente, é a minha vez de me surpreender com essa garota. Quando tento dar um passo e falar com ela, perguntar, por puro interesse, se ela sabe alguma coisa sobre Lazo e seus acompanhantes, uma mulher alta, ruiva e bem pálida usando um vestido preto colado no corpo e uma máscara igualmente preta aparece. Ela surpreende (S\N) segurando-a pela cintura, e uma mão desliza uma máscara preta como a dela para as mãos da garota. 

As duas parecem muito felizes. Felizes até demais. Felizes demais para serem só colegas, ou melhores amigas... Pelo sorriso fácil que dão uma para a outra, provavelmente são mais do que isso.

Veja só como a vida é interessante... Antes, olhando para ela e Eric, mesmo sabendo que os dois estavam namorando oficialmente e que parecem se conhecer de outras vidas, dava para sacar que eles não eram almas gêmeas. Se fosse para admitir que eu estava apaixonada por (S\N) e achava que nós duas ficaríamos juntas, ele não soava como uma ameaça. 

Mas aquela mulher linda, alta, ruiva e de sorriso fácil, não. Ela, sim, era uma ameaça natural para minha paixão por (S\N). Droga, por que é que o ciúme me atinge dessa forma tão frustrante? E por que é que tem que ser o ciúme por ela?

(S\N) ainda está me encarando, menos do que antes, e eu desvio o olhar rapidamente, frustrada com o que aquela noite poderia virar, se eu me permitisse levar pelos sentimentos por ela.

(S\N)

- Tá gostando ou não?

Sinto o toque quente de Clarice nos meus quadris, me puxando para mais perto e apoiando a cabeça em meu ombro. Eu sorrio e coloco minha máscara, desviando meu olhar dos olhos castanhos e profundos de Inês, do outro lado do salão. Não sei se o efeito do vinho no meu corpo bate mais rápido do que o álcool, mas essa mulher parece a porra de uma alucinação, sempre me perseguindo para qualquer canto... É uma porcaria.

- Como eu ia gostar de um troço desses? - pergunto, no meu maior bom humor. - Um monte de cara com terno e gravata, falando difícil, e para piorar tudo... apoiando as coisas que aquele verme apoiava. - Olho para Clarice, desconfortável. - Ah, qual é, Clarice, você nem devia estar aqui.

Ela abre a boca, mas eu interrompo, me virando e colocando meu indicador nos lábios dela. Nós duas rimos e eu a abraço, deixando algumas lágrimas descerem dos meus olhos por livre e espontânea vontade.

- Senti sua falta, porra... - murmurei no ombro dela, enquanto ela me apertava.

- Eu sei. Nem sei porque foi que sumi - ela respondeu, baixinho. 

- Eu sei...

- (S\A), agora não. Pare de se lembrar dele, por favor. Vamos só... curtir a festa, antes disso aqui virar um inferno, tá?

Assenti, me afastando para olhar para os olhos da minha ruiva favorita. Eu poderia me perder neles, poderia mergulhar nos cantos mais escuros. E ela me retribuía, me fazendo ficar livre pela primeira vez. Por mais que "estar livre" significasse se lembrar do meu passado de cabo a rabo, e não querer fazer isso, não ali.

- E o seu pescoço, descobriu o que é? - perguntei, tocando a pele exposta. Os dedos de Clarice tocaram os meus e me afastaram. Olhei para ela com a testa franzida.

- Eu te disse, foi picada de abelha.

- Mas picada de abelha não deixa esse risco, Clarice. Fala a verdade.

- Eu tenho alergia, (S\N).

- Mas você nunca teve-

- (S\N), não sabia que você estava aqui. 

Aquela voz. Aquela entonação. Fiz o maior esforço que conseguia para desviar daqueles olhos, mas nunca conseguia fazer isso. Nem precisei olhar para cima por muito tempo para enxergar o rosto de Clarice mudando de expressão e os olhos penetrantes de Débora me encarando com um tipo diferente de ódio. Crispei os lábios, tentando me conter.

- Com quem você veio? - ela perguntou, aquela cobra... Como ela podia ser tão fingida?

- A Clari-

- Pedi para o Castro se ela podia comparecer. Ele deixou. Só isso. - Clarice esclareceu, passando por cima de mim. Débora se empoleirou no pescoço da namorada, cobrindo o machucado dela com os dedos. - Não vejo problema nenhum nisso. Ela é a minha única família.

Olhei para Débora e ela correspondia ao meu ódio cada vez mais. Um sorriso bem malicioso surgiu em seus lábios, porque ela estava se aproveitando de que Clarice não podia virar a cabeça para vê-la. Eu bufei, bebendo de novo para me segurar. Não consegui, claro.

- É, mas para alguém como a Débora, que não pensou duas vezes em se juntar com essa galera tão criminosa e te arrastar junto, pouco importa sermos da mesma família. - Eu assoprei, meio irritada. - Eu sempre vou ser enxotada de onde quer que eu vá, porque não concordo com as coisas que ela anda fazendo na Amazônia, não é, Débora?

A mulher de cabelos negros e coque alto revirou os olhos.

- Aqui não é lugar.

- Ah, não? - desafiei. - Então me fala, aonde é que é lugar, Débora? No seu garimpo ilegal?

- (S\N), por favor... para com isso...

- Não se mete nisso, Clarice. - Ralhei. - Já não basta você ter se juntado com... eles.

- Vamos, (S\N), nem você acredita nessa merda aí.

- Ah, Débora... Você não sabe no que eu acredito ou não.

- (S\N)...

- Quer saber? Vocês duas não vão me ouvir, então que sejam felizes e se virem, tomara que sejam presas pelas coisas inescrupulosas que andam fazendo com a natureza e que possam pensar, na cadeia, sobre o que é real ou não. - Mostrei o dedo do meio para elas enquanto me afastava. - Eu sabia que nunca seria bem-vinda aqui mesmo.

INÊS

Me virei a tempo de ouvir a última palavra dela. E acelerei o passo, quase trombando no garçom com a bandeja de taças para poder segui-la até o lado de fora. Eu não sei o que me deu, só sabia que ela precisava de mim, e unindo o útil ao agradável, iria aproveitar para arrancar algumas informações dela.

Quando finalmente cruzei o lado de fora, ela estava sentada no meio daquela grama artificial, olhando para a rua, e conforme me aproximei, ouvi-a fungando e enxugando os olhos no braço. 

Eu não sabia como abordá-la agora, mas precisava fingir que estávamos presas ao acaso.

- Quer um ombro amigo para desabafar? - perguntei, atrás dela, hesitando.

- Me deixa em paz, Inês. - Ela murmurou, como quem murmura a uma assombração. Era isso. Ela achava que eu não passava de uma mera assombração. No fim, ela até que estava certa. As pessoas adoravam pintar a Cuca como um monstro, um bicho-papão, alguém ruim que só fazia coisa ruim e que vivia de prejudicar os outros. 

Dei um passo para a frente, fazendo o contrário do que ela me pediu.

- Cai fora, Inês, não ouviu, não?

Eu hesitei, pensando se não poderia mesmo cair fora. Se não deveria deixá-la em paz. E então, andei para o lado, me sentando do lado esquerdo dela, evitando seus olhos, olhando para a lua, para as estrelas do céu, escutando e focando no vozerio do lado de dentro, uma voz masculina convidando todos os presentes a se juntarem do lado de dentro. 

O meu objetivo devia ser entrar lá e fingir costume com eles. 

Mas, naquele exato momento, havia algo bem mais importante do que o Marangatu.

Ou melhor, alguém.

- Essa festa não é para gente como você. - Eu disse, sendo sincera, tentando mudar de assunto. - Sabe, eu costumo reparar muito em todas as pessoas que vejo. Conheço cada uma e cada particularidade de cada uma, isso às vezes pode ser muito chato. Mas, às vezes, é bem esclarecdor, ter a possibilidade de comprovar se a primeira impressão de alguém é ou não é a impressão certa... - eu ri. - Com você foi basicamente a mesma coisa, do tempo que te conheço. E essa droga dessa festa não é para você. Pode ser para a sua namorada, mas não é para você.

Ela franziu a testa, me olhando curiosa.

- Namorada? 

Demorei para perceber que tinha soltado algo que não deveria.

- É... a ruiva... - expliquei, mantendo o tom natural. - Nada contra, eu juro, foi só um-

Ela riu. Uma risada alta e espontânea, da qual eu nunca tinha ouvido antes. Um som que não parecia forçado ou sem humor. Seus olhos se fecharam e ela os abriu para me encarar. Puta que pariu, se eu pudesse morrer da forma mais fácil, acho que tinha caído dura naquele exato momento. Ainda olhei para ela, agora franzindo a minha testa também.

- A Clarice? - (S\N) disse, depois de um tempo. - Inês, a Clarice não é minha namorada. Claro que não. Não tem nem cabimento uma coisa dessas... - ela riu de novo. E se virou de vez para mim, enxugando as lágrimas, rindo da minha cara de confusão. - A Clarice é minha irmã. Quer dizer, meia-irmã, quer dizer... é... meia-irmã. Só isso... - seus olhos me queimaram. - Acho que você se confundiu...

Aquilo me deixava aliviada. Não tinha porque não me deixar aliviada, assumi com raiva de mim mesma. Pelo menos, não havia uma competição de verdade, minhas chances aumentavam e... eu estava sendo tóxica e possessiva demais para o meu gosto. Não soava certo. Acho que, por isso, repudiava tanto aquele sentimento.

- É, eu acho que eu me confundi, então. - Eu disse, por fim, admitindo minha derrota.

Ela riu e cruzou as pernas, abraçando os joelhos e enterrando o queixo no meio deles.

- Mas eu não te culpo, nós duas somos bastante carinhosas uma com a outra, eu entendo a confusão. - (S\N) continuou, agora evitando meu olhar. - Tipo, nós duas sempre fomos a família uma da outra, desde o comecinho. Eu... bem, eu amava ela e a amo como se fosse minha irmã de sangue, como se fosse irmã da mesma mãe...

Parecia que ela queria falar. Então eu só... Só deixei que ela falasse, em silêncio. Parecia ser a primeira vez que ela desabafava com alguém algo que era tão pessoal assim.

(S\N)

Eu nunca tinha contado nada pessoal para ninguém, pelo menos a parte das pessoas que convivia comigo depois que me tornei maior de idade de verdade. Não gosto dessa ideia de ficar se abrindo com os outros, tem muita gente que pode nos julgar simplesmente por uma única palavra solta, tirar de contexto e nos atacar por isso. Não valia a pena.

Mas com ela... Porra, com ela eu me sentia livre de novo. Nunca tinha parado para pensar nessa parte. Nunca tinha visto Inês como outra coisa a não ser uma ameaça. E ela era. Uma ameaça de verdade, podendo destruir mundos e fundos só com aqueles olhos cansados e penetrantes... Mas acho que a atmosfera da festa, o reencontro com Clarice e a forma como ela nem sequer me julgou quando me viu, isso contribuía. 

- Eu e a Clarice não somos irmãs de verdade. - Eu respondi, com um suspiro, evitando olhar para ela de propósito. - Somos, mas não do jeito que as pessoas estão acostumadas, sabe? Mesmo pai, mesma mãe... - suspirei de novo. - Meu pai cometeu um deslize uma vez, na época em que ele ainda namorava com a minha mãe. Os dois estavam quase noivos, os pais estavam arranjando casamento e se entendendo entre as famílias, quando meu pai conheceu outra moça e se deitou com ela. Deixou ela grávida, na mesma época que engravidou a minha mãe. Mas ela odiou a ideia de ter sido traída, e fez ele jurar que nunca mais veria nem a mulher nem a criança. - Respirei fundo e ri tristemente. - Meu pai não cumpriu a promessa, claro que não. Ele piorou as coisas depois que eu nasci, e depois que a Clarice nasceu... usava as viagens de caminhão para visitar a segunda família, desse jeito mesmo, escondido, mentia que ia demorar para chegar enquanto estava transando com a outra lá na casa dela, do outro lado da cidade...

Eu parei e finalmente olhei para ela, sentindo meu olho arder. Bem, de toda a minha história anterior e dos meus problemas com Clarice e sua trupe, esse era o menor deles.

-... até que um dia minha mãe ficou doente. Ela era enfermeira lá do plantão e tinha uma saúde frágil, ficava sempre doente muito fácil. Um dia, ela pegou uma infecção, e ele nem sequer ligou para ela. Aproveitou os dias em que ela estava de cama e que estava com a minha avó para poder viajar e ficar com a mulher sã, com a filha bastarda... - o choro desceu mais fácil agora, e eu me frustrei, só de lembrar dessa parte traumática. - Quando minha mãe morreu, eu tinha uns oito anos de idade... e ele trouxe a mulher e a Clarice para casa, só duas semanas depois do enterro dela. Os dois tinham oficialmente se casado no papel e iam morar juntos.

INÊS

Aquela garotinha ruiva do sonho dela, aquela garotinha da lembrança, que estendia a mão para ela ainda criança, na verdade, era a mesma ruiva do baile de máscaras.

Sua meia-irmã.

Fiquei surpresa, mas não ousei fazer nenhum comentário enquanto (S\N) continuava falando.

(S\N)

- A Clarice era a melhor irmã que eu poderia pedir. E a mãe dela foi uma madrasta das boas para mim, tipo, não era ruim, nem nada... Mas não muda o que a gente sente pela nossa mãe de sangue, né? Eu ainda sentia falta dela. Muita falta. E meu pai era ausente demais, por mais que fosse menos do que no primeiro casamento, ele ainda passava os dias todos fora de casa, na estrada, trabalhando, evitando olhar nos olhos das filhas mulheres... Eu e minha irmã éramos a única família uma da outra, de verdade, sem brincadeira, éramos a única companhia uma da outra e nos entendíamos como mais ninguém conseguiria.

Meus olhos se fecharam, uma dor enorme atingiu meu peito e eu respirei fundo para poder finalmente, depois de anos de silêncio, abrir a boca sobre o fato que originou todos os meus maiores medos e maiores traumas.

- Até que um dia... acho que a gente tinha uns dezesseis anos, ela conheceu a Débora no colegial, e as duas começaram a sair juntas, como amigas. Mas todo mundo que via sabia que elas eram mais do que isso, porque não dá para se disfarçar quando você está apaixonado por alguém, sabe? - Eu ri da minha lembrança. - Eu fui a primeira pessoa para quem a Clarice contou que estava apaixonada por outra garota. Ela confiava em mim desse tanto, para revelar uma coisa tão pessoal... E eu acabei revelando o meu segredo também. Eu também estava apaixonada por uma garota. - Brinquei com meus dedos para disfarçar o nervosismo. - Só que, diferente dela, eu achava que aquilo não era o que eu queria, não ia me dar futuro nenhum. Que era só... uma fase passageira. 

Suspirei.

- Nosso pai não desconfiava de nada naquela época. A gente saía com nossas paixões e fingia que íamos sair entre amigas. Ele nunca aceitaria, conservador e machista do jeito que era, claro que não. - Ri de novo. - Mas eu me juntei com uma galera que me entendia, que sanava minhas dúvidas sobre mim mesma, a turma do Miltinho, do João e da Milena... Foram meus melhores amigos durante anos da minha vida... E o Miltinho era...

Engoli em seco, agora sim, sentindo as lágrimas descendo com mais intensidade. Precisei de um tempo para poder me recuperar. Era a parte mais difícil da história toda. Olhei para ela e percebi que Inês estava calada por mais tempo do que devia.

INÊS

- Se você não quiser me contar, eu vou entender... - eu disse, sussurrando.

Prometo que não vou entrar na sua cabeça para descobrir. Dessa vez, eu não tô brincando.

(S\N)

- Não, eu... - engasguei. - Eu vou contar, tudo. Já tá na hora de acabar com essa agonia.

Respirei fundo de novo, enxuguei os olhos e olhei para cima, continuando a falar sem parar. 

- Depois que nós duas terminamos a faculdade, a Clarice e a Débora se mudaram para São Paulo, a capital mesmo, grande e cheia de gente. Elas iam viver o amor delas longe do meu pai porque era a única forma de ele não descobrir e não fazer nada contra elas. - Eu assenti. - Na época, ele estava andando com um bando de garimpeiros, não ilegais, que queriam porque queriam encontrar uma cidade perdida feita de ouro. Homens conscientes, mas uns merdinhas por dentro, de coração duro e preconceituoso, mau-caráter mesmo, dos piores.

- Tipo o Castro?

- É, tipo o Castro. - Eu respondi, assentindo de novo. - E alguém que estava infiltrado lá dentro com meu pai e os amigos garimpeiros dele acabou contando que eu estava andando com pessoas... gays... - bufei. - Dali em diante, meu pai mudou totalmente, mudou de vez. Tornou-se extremista e violento, e nem pensou duas vezes em ir atrás do nosso grupo... - eu suspirei e segurei o choro ao máximo. - Miltinho e eu andávamos juntos na época para fingir que éramos namorados, sabe? E ele até me beijou uma vez, e eu gostei de ele ter me beijado, mas descobri depois que era só para que ele provasse a si mesmo que não era um erro, que estava tudo bem gostar de outros garotos e que ele poderia gostar de garotas também, se quisesse.

Tomei um ar de novo e escondi a cabeça nos joelhos, fechando os olhos. As memórias do trauma vieram em um fio, de uma vez só, desenrolando tudo no meu cérebro conturbado. 

-... meu pai descobriu, foi atrás de nós dois e nos viu beijando gente do mesmo gênero. Eu estava mais atrás, só bebendo, mas vi tudo. Miltinho não teve a sorte que eu tive. E meu pai nem sequer pensou uma vez para fazer o que fez...

"Seu viadinho! Desviado! Aberração! Chegou a tua hora de ir para o inferno, demônio!"

As palavras dele ecoaram na minha cabeça, e eu revivi aquilo de novo. Daí, eu desabei. Não consegui segurar o choro contido. Inês colocou a mão gelada em minhas costas e afagou-as com extremo cuidado, ainda em completo silêncio.

INÊS

De repente, o mundo todo e até mesmo a minha própria existência fez sentido para mim.

(S\N)

- Meu pai bateu nele. Bateu mesmo, sem dó. - Crispei os lábios. - Bateu até... 

Fiquei em silêncio. Por longos minutos. Pareceu até que por uma hora.

-... E eu não pude fazer nada, não pude nem ajudar meu amigo! - eu gritei, como uma súplica. - Fiquei lá, parada, olhando, vendo o meu próprio pai destilando o pior jeito de destilar o ódio em alguém. Ele matou o meu melhor amigo por causa da sexualidade dele e eu não pude fazer absolutamente nada! Nada, Inês, você sabe o tamanho da culpa que eu carrego até hoje por causa disso?

E então eu parei de falar e me joguei na grama artificial da casa do Castro. Coloquei as mãos no rosto para esconder meu choro e nem notei que Inês estava esticando as mãos, só me dando conta do que ela queria fazer quando seus dedos acariciaram meus cabelos lentamente.

- Ei... - ela me chamou, naquela voz mansinha que só ela sabia fazer.

INÊS

- Ei, você não tem culpa de nada. - Eu disse, tentando confortá-la e segurando o meu próprio choro. - Nada do que aconteceu com o Miltinho foi sua culpa, seu pai ter agido dessa forma não foi sua culpa, nunca foi e nunca será...

Ela olhou para mim, virando a cabeça lentamente. Do meio dos seus olhos, caíram lágrimas salgadas e transparentes, as quais eu estiquei meus dedos para enxugá-las. (S\N) fechou os olhos, respirou fundo e me olhou de novo.

- Eu fico me perguntando... se a Clarice tivesse ficado... se a Débora tivesse ficado... Ele faria a mesma coisa. Até pior com elas, porque além de tudo, eram duas mulheres. E uma delas... - ela cortou a frase no meio e não continuou. Eu enxuguei suas outras lágrimas e sorri com tristeza. - Agora você entende... entende por que é que eu sempre fui tão fria com todo mundo?

Assenti e suspirei também, aliviada por ter sido a primeira pessoa a quem ela disse a verdade.

- A culpa faz isso mesmo na gente, né? - eu respondi, meio que numa ironia. - Olha, eu até ia te contar a verdade sobre mim, mas depois dessa tua história, eu acho melhor dar um tempo para a sua cabeça, né? - nós duas rimos. (S\N) franziu a testa. - Não quero te traumatizar mais do que você já está traumatizada. Não quero você indo para casa com uma carga maior ainda do que veio...

(S\N) negou com a cabeça e se sentou, agora com toda a atenção virada para mim.

- Ah, para com isso. Não atiça minha curiosidade desse jeito, não, mulher! - ela ergueu uma sobrancelha. - Porra, eu contei minha vida toda para você como se você fosse minha terapeuta e agora você não quer retribuir? Sacanagem, né?

Eu assenti, crispando os lábios e desviando o olhar dela. Parecia até estranha a forma como a gente estava lidando com aquela situação. Não éramos as mesmas que viviam se espezinhando e achando uma brecha para provocar uma a outra da melhor forma possível. Definitivamente, aquela noite tinha mudado alguma coisa em nós duas. No que nós duas éramos, por trás daquele ódio mortal e infinito.

- É que a minha história não é tão simples assim... - confessei, baixinho. - Tem uma coisa... uma coisa diferente em mim que é... estranha.

- O que é, você tem um pau? Você era homem e mudou de gênero? 

Eu sorri. A inocência misturada com a ironia na voz dela era algo novo.

- Não... Quem dera se fosse... - lamentei, negando com a cabeça. - (S\N), eu não sou qualquer mulher. Eu sou... - respirei fundo e disse de uma vez. - Eu sou a Cuca. - Os olhos dela se arregalaram e eu adivinhei seu comentário antes de sair da sua boca. - É, essa Cuca que você está pensando. A Cuca que pega as crianças que não dormem direito... A Cuca que já foi jacaré. A Cuca borboleta que voa de casa em casa. 

Olhar nos olhos dela era decisivo agora.

- Aquela borboleta que você jurou ser rara, no dia em que você beijou o Miltinho, a azul-

- ERA VOCÊ?!

Eu estava surpresa que ela aparentemente não estava com medo de mim. Franzi a testa.

- Inês! - ela respondeu, de repente, se levantando, parecendo mais chocada do que assustada. - Inês, é por isso que você me conhece desde os meus cinco anos! É por isso que você tem olhos de borboleta, é por isso que você aparecia do nada nos lugares! É por isso que você me fez dormir naquele dia no Cafofo! Inês, você... você é igual o Manaus! Vocês dois...

Eu suspirei, me levantando e olhando para ela de novo. 

- Nós chamamos isso de "entidades", (S\A)... - complementei, num fio de voz. - Mas você pode nos chamar como quiser. "Lendas", "mitos", "monstros", "criaturas", tanto faz...

Ela ficou ofegante de repente.

- Meu Deus, e o Eric... O Eric sabia disso também?

Esquece esse cara uma vez, que inferno!

- Sabia. Ele sempre soube de tudo.

- E ele não me contou nada porque... - ela olhou para mim e balançou a cabeça. - Esquece. Foi muito melhor que você tenha me contado do que ouvir da boca de outros. - Sua expressão se transformou num sorriso. - Tô feliz que você foi sincera comigo, Inês, pelo menos uma vez...

Eu sorri, os passos curtos até estar bem do lado dela. Da forma mais carinhosa possível, toquei sua bochecha direita e o contato da sua pele nos meus dedos me deu um choque tremendo, mas suportável. Acariciei a região com o dedão, ainda rindo.

- Eu sempre vou ser sincera com você, (S\A), independente de como for. - Respondi, e não era mentira. Respirei fundo e disse, de novo, de uma vez só. - E eu acho que a gente podia parar de brigar, só por hoje, para começar devagar. E por amanhã, e depois, e depois, e...

Ela riu.

- Enfim, acho que a gente devia parar de brigar para sempre e começar tudo de novo. 

(S\N) assentiu e para a minha surpresa, segurou minhas mãos e piorou ainda mais a intensidade das nossas peles juntas. O rosto dela estava vermelho e os olhos cheios de lágrimas quando ela sussurrou, em um volume que quase ninguém conseguiria ouvir.

- Já que vamos ser sinceras uma com a outra, então é a minha vez de ser sincera com você. - Ela respirou fundo e me disse, ainda com as nossas mãos juntas. - Eu fiquei com muito medo de estar fazendo algo errado de novo, mas agora percebo que o que eu sinto não é um erro. Nada do que eu sinto por você é um erro, ou nada do que eu sinto por ninguém... - ela suspirou. - Eu tava com medo, Inês, medo de admitir para mim mesma que tenho sentimentos por você, mas agora, não mais. Agora, quero ser sincera com você e comigo.

Arregalei os olhos e esqueci como respirar quando ela uniu nossas testas, muito perto dos meus lábios. Crispei os meus para não precisar me segurar e falhar no processo.

- Eu tenho sentimentos por você, Inês. Eu tô apaixonada por você e não tenho mais medo de admitir isso... - ela continuou, de uma vez só também. -... só que, antes de todo o resto, eu preciso me resolver comigo mesma. Preciso criar coragem para superar o meu trauma, o meu medo interior. E isso vai demorar mais do que eu acho que vai.

- Olha - eu retruquei, na pressa, segurando seu rosto colado no meu com as duas mãos. - Olha, eu não me importo se você vai demorar ou não. Eu estou aqui e vou estar sempre aqui por você. É uma promessa. Mesmo que você se descubra e se entenda, mesmo que você não me queira do jeito que eu te quero... - eu segurei o choro. - Eu vou esperar por você. Eu vou esperar o seu tempo. Eu te prometo, (S\N). Juro pela minha vida que vou te esperar, e que vou estar aqui, quando você precisar de mim. Nunca vou te deixar sozinha, nunca.

Nós estávamos tão perto, tão perto, que eu podia sentir seu hálito tocando a minha boca. Ela fechou os olhos e se inclinou, e eu a puxei para perto, pronta para o que viria, pronta para o ato que selaria nossa trégua por aquela noite, e agradecendo aos céus que não tinha demorado mais do que deveria para acontecer. 

Porém, assim que abri minha boca, ela recuou, a mão indo ao peito. Ao mesmo tempo, o celular dela tocou no bolso, e ela teve de se afastar, ainda com a mão no peito e os dentes cerrados. Observei sua reação para saber o que fazer se algo acontecesse. 

Depois de alguns segundos, ela me passou o celular, a testa franzida, meio preocupada.

- É o Isac. Ele quer falar com você. Disse que é urgente.

Rapidamente agarrei o celular da mão dela, sem pensar duas vezes. 

- Oi, Isac, o que foi? Aconteceu alguma coisa?

- Aconteceu, Inês... - ele disse, do outro lado da linha. - O Eric entrou aqui e bateu de frente com o Tutu. Acho que ele tentou sugar os poderes do Tutu. O Tutu tá morrendo, você precisa vir logo.

Arregalei os olhos e olhei para (S\N) na hora, sabendo que ela havia sentido. Sabendo que ela iria ficar inconsolável se soubesse da verdade.

Enquanto eu pensava no que fazer em seguida, só me vinha na cabeça esconder a verdade dela o máximo possível. Pelo menos, até que desse.

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