Angélica nunca se atrasava, ser pontual era uma questão de honra e respeito, acreditava que uma pessoa podia ser julgada moralmente por sua pontualidade e por isso odiava aguardar por quem não pensava como tal, mas por se tratar de seu chefe quarenta minutos atrasado para anunciar sua demissão ela não podia simplesmente ir embora
—Desculpe o atraso...—Disse doutor Dirk ao tirar a chave do bolso do paletó e abrir a porta da sala —Pode entrar!—Acendeu a luz esperando pela mulher
Angélica jogou os cabelos para trás e passou pelo chefe
—A última reunião foi um pouco mais longa do que eu esperava! —Ele respirou fundo ao puxar a cadeira e sentar, o homem parecia ainda mais pesado ao se mexer desconfortavelmente na cadeira—Pode sentar!
—Não, eu prefiro ficar de pé!—Colocou a bolsa na cadeira a frente de seu corpo
O chefe a olhou sem entender, mas não retrucou, Ange tinha ensaiado um pequeno monólogo e para que tudo saísse religiosamente como planejado, precisava emanar respeito e não faria isso naquela cadeira
—Vamos direto ao ponto!—Ele respirou fundo ao olhar para o relógio no pulso —Tive duas conversas com o Andrey, uma ontem a noite e outra hoje pela manhã...
—Antes de mais nada peço desculpas por impedi-lo de continuar, mas preciso que me escute!— Notando que o homem não diria nada, ela prosseguiu —Doutor Dirk, trabalho para seu escritório desde que me formei, comecei com uma estagiária e com muito esforço e dedicação alcancei um bom cargo. Tudo que tenho feito, os casos que ganhei, a força que meu nome tem tido no mercado são reflexos de um trabalho árduo, tenho estado aqui por mais horas do que passo em meu apartamento, não estou reclamando, há um retorno financeiro satisfatório para as minhas funções e eu sou grata por toda experiência e relevância que essa empresa trouxe a minha carreira. Minha permanência aqui também é benéfica para o Gena, o senhor deve entender que a troca entre mim e a sua firma vai muito além do dinheiro, quantos dos seus colaboradores tem os mesmos números que eu? Quantos receberam casos cujo o desfecho era inevitável e reverteram a situação? Antes de...
—Doutora Lovietcha, não precisa continuar! —Ele disse a interrompendo, Angélica evitou encará-lo por muito tempo enquanto falava e por isso não sabia se ele tê-la parado era um bom sinal —Antes que nossa conversa se estenda, preciso tranquilizá-la, não vou demiti-la por um capricho do Andrey!
Angélica engoliu a leve onda de alívio somada a euforia e continuou quieta
—Por outro lado não tenho motivo para manter a doutora no caso do Arnaturov, confiei no seu profissionalismo e pensei que ignoraria o laço sanguíneo que tem com a esposa do nosso cliente, foi uma falha minha e da Anna não ver que isso seria um problema!
Com o ego ferido e mantendo a calma Angélica decidiu defender-se —Eu não confundi as coisas, não vejo Andrey Arnaturov como parte da família, muito pelo contrário, mal o conhecia o vi pouquíssimas vezes e quanto a minha prima, não a encontrava desde janeiro, tanto que me surpreendi ao saber da gravidez
—Misturou a vida pessoal a profissional por um laço familiar distante?
—Não disse que não sou próxima dela, só não tinha conhecimento a que pés estava o relacionamento dela com Andrey!—Ange tentou ignorar o fato de que não fazia visitas ou atendia as ligações de Ilana com frequência por estar focada demais no trabalho —Tirei minha prima daquela casa, mas faria o mesmo por qualquer mulher. Andrey a ameaçou e eu acatei um pedido de socorro, não sou pouco profissional por proteger uma mulher!
Dirk pensou no que dizer e o silêncio de segundos foi quebrado pelo barulho que sua cadeira fez assim que ele se mexeu—Eu deveria ter pensado nisso antes... De qualquer forma, peço que envie todas as suas anotações ao doutor Voronin, ele será o responsável pelo caso a partir de agora, quero todo o progresso que fez com o caso no e-mail dele até amanhã de manhã!
Sem esconder a incredulidade Angélica estalou o pescoço —Doutor Voronin? Pensei que ele seria afastado do caso depois de nossa reunião!
Dirk arrumou a postura—Não cabe a senhora decidir quem irá assumir, apenas faça o que pedi e volte a trabalhar nos seus outros casos que estão em aberto!
Ela anuiu em silêncio, por mais que quisesse questionar não podia, haviam situações onde a hierarquia prevaleceria
—Pode se retirar!
Ela pegou a bolsa e saiu, não achou que deveria agradecê-lo por manter o emprego, como havia dito era uma troca, ela entrava com esforço e dedicação e eles lhe dariam reconhecimento financeiro e credibilidade no mercado, porém não pôde deixar de sentir-se derrotada, Voronin havia vencido e isso a incomodava mais do que ter se afastado do caso.
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Ilana entrou no restaurante e sentou-se na mesa reservada, afastada o suficiente para que ela pudesse ver a todos e ainda assim não ser vista, aquele lugar geralmente ficava lotado na hora do almoço, mas como uma boa Popov ela tinha facilidade em conseguir uma mesa em qualquer lugar e ainda assim manter a discrição. Uma família tradicional que tinha em sua linhagem uma alta ligação com poderes religiosos e políticos possuía seus truques, este por exemplo era um fator muito admirado por seu pai, que a ensinou as minúcias de ser uma pessoa capaz de entrar e sair de um lugar com tudo o que desejava sem alarde, sua família não era feita de ruidosos e espalhafatosos, seu ponto forte era coexistir e observar. Andrey costumava dizer que ela era como um camaleão, fácil de se misturar com o ambiente, a família dele não tinha a mesma sorte, eram distintos de uma forma que os deixava em evidência, talvez fosse por isso que seu sogro Artem e seu pai Hermes tenham acreditado que a união de suas famílias era proveitosa.
A julgar pelo dinheiro que Artem tinha e a construtora de seu pai que precisava de investimentos, a decisão não foi difícil, ela foi criada em berço de ouro, tinha um bom sobrenome e o incentivo de sua mãe Ilmira, que enriqueceu no casamento, logo nunca precisou pensar se deveria ou não se juntar a Andrey, ele tinha o sorriso perfeito, a mandíbula marcada e olhos azuis penetrantes, era quatro anos mais velho e se apresentou como um príncipe, do tipo que abre portas, puxa cadeiras e beija com paixão. Olhando para trás ela esperava mais dele, Nada é o que parece a primeira vista, nem mesmo ela que estava a espera do cunhado que possivelmente era o pai de seu filho
—Ilana, não acho que escolheu o lugar certo para termos essa conversa...
Saindo de seu devaneio, ela encarou Artur, não pôde evitar as comparações, ele usava uma jaqueta cinza e uma polo preta, Andrey obviamente iria com um de seus ternos caros e sapatos de marca a um restaurante como aquele, o marido se vestia e se portava para mostrar o valor, era montado por pequenos pedaços de dinheiro, já o cunhado era diferente, suas roupas, suas ações e toda sua ornamentação era bem mais humana e o olhar preocupado ao sentar a sua frente era a prova disso. O marido a crucificaria por fazê-lo ir ao encontro dela, Artur não se importava em acatar ordens por mais bobas que fossem, ele era suscetível e isso não o feria.
—A Wanda não vai saber, para todos os efeitos jamais estive aqui e você também não!—Tirou os óculos escuros —Por que queria me ver?
—Fiquei preocupado, o Andrey está possesso
—Sei o porquê, sou a propriedade que está gerando um bem, um filho dele...
—Ele não entendeu porque saiu e é obvio que o filho de vocês é importante para ele!
—Tão importante que quem veio até mim foi você...Ao menos o pai dele se preocupa!—Tocou a barriga
Artur coçou a barba ignorando o real sentido do comentário, as palavras de Ilana o apavoravam —Ele disse que sua prima foi má influência para você!—Apoiou o cotovelo na mesa —O que te fez sair daquela casa?
Ilana pegou o copo d'água e deu um pequeno gole —Eu ouvi vocês tramando... Nem sei porque vim se você sabe exatamente do que estou falando!
—Não, não sei!— Ele respirou fundo—Estou tão confuso quanto ele, mas sua fuga o irritou!
—Vocês combinaram de fazer algo comigo, o Andrey estava vendo um lugar para me levar, disse que minha gravidez não ia me proteger para sempre!
Artur balançou a cabeça negativamente —Você ouviu isso sair da boca dele? Ouviu o seu nome?
Ilana pensou, não se recordava das palavras exatas, mas em nenhum momento seu nome foi citado, ela tinha suposto e isso a fez temer pelo pior—Não, mas eu...
—Ele não estava falando de você!— Artur a interrompeu —Nada disso faz sentido, está criando problemas que não precisaria ter e eu estou indiretamente envolvido!
—Indiretamente? Não teria me ligado e me mandado mensagens se não acreditasse no que eu te disse, então não tente fingir que não faz parte do que está acontecendo comigo!
—Ilana, não sabemos se essa criança é minha!—Ele quase gritou e por isso olhou em volta antes de prosseguir em um tom mais baixo—Não posso ser o pai do Alan, não há provas disso!
—Você é médico, não acha que descobrimos cedo demais o gênero do meu bebê?
Artur respirou fundo—O Andrey não vai te fazer mal e ele é o pai dessa criança, é ele quem vai registrar, quem vai criá-lo e eu não posso ter participação nenhuma nisso para que não tenhamos problemas.Para todos os efeitos, sou o tio, não o pai!
—Você pode não querer assumir, mas acredita em mim!
—Eu não posso ter problemas com a Wanda, por que está fazendo isso comigo?—Ele olhou para ela um tanto assustado
Ilana colocou uma mexa de cabelo para trás—Eu não teria te contado, não queria dizer isso a ninguém, morreria com esse segredo se não me sentisse em perigo, o Andrey é muito diferente do que eu achava e do que vi nesses anos, não sei o que aconteceu, mas as coisas pioraram desde a morte do seu pai, ele ficou diferente.
Artur passou a mão no rosto—Todos nós sofremos, cada um da sua maneira. Nosso pai fez um inferno em nossa vida, as coisas foram difíceis desde que me entendo por gente, o Andrey sofreu muito nas mãos dele e eu também...
—O Andrey é exatamente como ele...
—Eu não vou deixar ele cruzar a linha, ele não será como nosso pai!
Ilana suspirou—Não pode prometer isso, acabou de confirmar que ele fará algo a alguém, isso me assusta o suficiente para escolher manter distância!
—Você não entende, meu irmão está sob ameaça, há muita pressão, mas eu garanto que não tem nada haver com você!
—Ok,eu posso acreditar nisso,mas se não se trata de mim, quem é a pessoa que está o ameaçando? Quem é a pessoa que vai sofrer a ira dele?
—Não posso dizer,mas não vou deixar ele machucar ninguém, confia em mim!
—Eu quero, mas não me sinto segura!—Os olhos de Ilana lacrimejaram —Eu preciso de uma garantia!
—Não sei o que fazer para que acredite!
—Artur, me ajuda, ele pode não estar me ameaçando, mas tive provas de que ele é perigoso, se nos divorciarmos, se eu decidir sair dessa relação...
—Ele não fará nada!
—Como pode garantir? Andrey não tem seu coração e depois do que vi ontem eu tenho certeza que ele é capaz de acabar comigo, eu tenho medo dele!—Admitiu— Estou apavorada!
Artur pegou a mão dela, se o filho que ela gerasse fosse realmente seu, Wanda jamais o perdoaria e ele não podia perder a família, porém não conseguiria virar as costas e deixar Ilana assumir aquela situação sozinha —Certo, faremos um DNA e se o que diz é verdade e essa criança for realmente minha e você não quiser continuar casada, eu te ajudo a sair da Rússia e te escondo do Andrey!
Ilana arregalou os olhos, o sentimento que enchia seu peito era esperança, acreditou desde o inicio que Artur faria a coisa certa
—O DNA pode ser feito durante a gestação, eu consigo uma clínica, mas se não confiar em mim pode arrumar um laboratório discreto e seguro e eu darei o material genético, vão colher o líquido amniótico do seu útero e teremos o resultado em pouco tempo!
—Isso não é muito invasivo? Ele ainda não está formado...Não sei se quero fazer isso agora, fico com medo...
Artur a olhou nos olhos—Então volte para casa, se quiser esperar, faremos o teste quando ele nascer, eu não consigo te proteger se ficar longe!
Ela soltou a mão dele e enxugou as lágrimas—Não me sentiria segura dormindo ao lado dele, não depois de vê-lo da forma que vi, batendo no vidro do carro e gritando com a Ange!
—Ilana, há um motivo para nunca termos saído daquela casa mesmo com todos os abusos. Quando se está de fora, há mais vulnerabilidade, da porta para dentro somos iguais! Os Arnaturov se protegem!
—Eu não posso voltar...Não sei se consigo—Balançou a cabeça negativamente
—Vou pedir para ele te ligar, conversa com ele!
—Ele tentou e eu não atendi!
—Quando ele ligar, jogue o jogo dele, faça uma ou outra exigência, inventa uma desculpa e retorne, caso o contrário não conseguirei cuidar de você e do Alan!
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Com a agenda vazia e após ter enviado os relatórios ao seu rival, Angélica passou o dia sem compromissos, debruçada sobre as questões trazidas por seu pai, ainda não era profissional o suficiente para ler o diário de sua mãe sem que sentimentos fortes a abatessem, mas aquele homem atropelado rondava sua mente e durante suas pesquisas ela descobriu algumas coisas relevantes. Svetlana, era o nome da mulher que estava desaparecida e Marko, o homem que ela julgava ter sido assassinado pelo motoqueiro, era seu filho. Pelo o que achou na internet a mulher desaparecida trabalhava para a Arnaturov & CO como assistente, já seu jovem filho tinha um site onde postava diversas fotografias e dicas para fotógrafos iniciantes. Angélica passou um bom tempo vendo fotos que Marko disse ter recebido de colaboradores do site nomeado como "Essência e Fotografia" e em uma das postagens do Blog encontrou uma creditada com o user de Mila.
Notando que o prédio da foto era o da Arnaturov & CO, Ange se perguntou por algum tempo se a filha de Artem possuía algum envolvimento com Marko e por estar farta de possuir perguntas e não obter resposta, Angélica revirou a gaveta a procura do cartão de Klimont e quando finalmente o encontrou, ligou para o homem
—Kliment Ivanov... —Ele disse ao atender
Ange fechou os olhos momentaneamente, as coisas haviam realmente mudado, se antes era o homem que corria atrás dela, agora era a vez dela de ir até ele, odiava ter que voltar atrás, mas a curiosidade era o sentimento que a dominava
—Alô?
—Boa tarde,é a Angélica...
—Que bom que ligou, eu estava realmente esperando por isso!
Angélica levantou e andou até o aparador, precisava de um chá
—Eu assisti ao vídeo e quero entender o porquê do Erast ter me enviado isso!
—Se estiver pronta para encontrar com ele, saiba que o Erast adorará responder suas perguntas
—É bom que ele esteja preparado, porque eu tenho muitas e sou muito exigente!
Kliment se manteve calado por um tempo— Posso te levar ao presídio amanhã, depois da minha audiência, acredito que por volta das três da tarde já tenha terminado!
—Ótimo, onde te encontro?
—Irei até você, não se preocupe!
Angélica até queria ter estranhado, mas o homem a perseguiu por dias, provavelmente conhecia a agenda dela inteira
—Kliment, não estou indo como filha, avise que serei objetiva e que não tenho intenção de reviver momentos do passado ou me aproximar dele, diga ao seu cliente que não o chamarei de pai e que não procuro nenhum tipo de sentimentalismo!
—Ele me alertou sobre isso, o Erast não esperava nada diferente!
—Ótimo! Nos vemos amanhã...
Ela desligou a chamada e ignorou a vozinha insistente que dizia para ela jogar tudo aquilo fora e se afastar do assunto, sabia que se abrisse aquela porta e retornasse o contato com o pai, não teria volta, mas não podia ignorar o que estava a sua frente.
"Ele não precisa voltar a sua vida, não é um retorno!"