✓𝑹𝑬𝑪𝑳𝑨𝑰𝑴𝑬𝑹 | (𝘛𝘖𝘎...

By ParacetaLOKA

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Lorella sabia que monstros existiam, e que eles não eram apenas valgs. Monstros, para ela, eram pessoas. Huma... More

𝘿𝙀𝘿𝙄𝘾𝘼𝙏𝙊𝙍𝙄𝘼
𝘼𝙀𝙎𝙏𝙃𝙀𝙏𝙄𝘾 𝙄
𝘼𝙀𝙎𝙏𝙃𝙀𝙏𝙄𝘾 𝙄𝙄
𝙉𝙊𝙏𝘼𝙎 𝘿𝘼 𝘼𝙐𝙏𝙊𝙍𝘼
𝙋𝙍𝙀𝙁𝘼𝘾𝙄𝙊
𝙋𝙍𝙊𝙇𝙊𝙂𝙊
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑼𝒎
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑫𝒐𝒊𝒔
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑻𝒓𝒆𝒔
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑸𝒖𝒂𝒕𝒓𝒐
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑪𝒊𝒏𝒄𝒐
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑺𝒆𝒊𝒔
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑺𝒆𝒕𝒆
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑶𝒊𝒕𝒐
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑵𝒐𝒗𝒆
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑫𝒆𝒛
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑶𝒏𝒛𝒆
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑫𝒐𝒛𝒆
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑻𝒓𝒆𝒛𝒆
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑪𝒂𝒕𝒐𝒓𝒛𝒆
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑸𝒖𝒊𝒏𝒛𝒆
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑫𝒆𝒛𝒆𝒔𝒔𝒆𝒊𝒔
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑫𝒆𝒛𝒆𝒔𝒔𝒆𝒕𝒆
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑫𝒆𝒛𝒐𝒊𝒕𝒐
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑫𝒆𝒛𝒆𝒏𝒐𝒗𝒆
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑽𝒊𝒏𝒕𝒆
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑽𝒊𝒏𝒕𝒆 𝒆 𝑼𝒎
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑽𝒊𝒏𝒕𝒆 𝒆 𝑫𝒐𝒊𝒔
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑽𝒊𝒏𝒕𝒆 𝒆 𝑻𝒓𝒆𝒔
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑽𝒊𝒏𝒕𝒆 𝒆 𝑸𝒖𝒂𝒕𝒓𝒐
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑽𝒊𝒏𝒕𝒆 𝒆 𝑪𝒊𝒏𝒄𝒐
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑽𝒊𝒏𝒕𝒆 𝒆 𝑺𝒆𝒊𝒔
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑽𝒊𝒏𝒕𝒆 𝒆 𝑺𝒆𝒕𝒆
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑽𝒊𝒏𝒕𝒆 𝒆 𝑶𝒊𝒕𝒐
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑽𝒊𝒏𝒕𝒆 𝒆 𝑵𝒐𝒗𝒆
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑻𝒓𝒊𝒏𝒕𝒂
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑻𝒓𝒊𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑼𝒎
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑻𝒓𝒊𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑫𝒐𝒊𝒔
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑻𝒓𝒊𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑻𝒓𝒆𝒔
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑻𝒓𝒊𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑸𝒖𝒂𝒕𝒓𝒐
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑻𝒓𝒊𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑪𝒊𝒏𝒄𝒐
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑻𝒓𝒊𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑺𝒆𝒊𝒔
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑻𝒓𝒊𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑺𝒆𝒕𝒆
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑻𝒓𝒊𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑶𝒊𝒕𝒐
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑻𝒓𝒊𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑵𝒐𝒗𝒆
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑸𝒖𝒂𝒓𝒆𝒏𝒕𝒂
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑸𝒖𝒂𝒓𝒆𝒏𝒕𝒆 𝒆 𝑼𝒎
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑸𝒖𝒂𝒓𝒆𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑫𝒐𝒊𝒔
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑸𝒖𝒂𝒓𝒆𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑻𝒓𝒆𝒔
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑸𝒖𝒂𝒓𝒆𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑸𝒖𝒂𝒕𝒓𝒐
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑸𝒖𝒂𝒓𝒆𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑪𝒊𝒏𝒄𝒐
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑸𝒖𝒂𝒓𝒆𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑺𝒆𝒊𝒔
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑸𝒖𝒂𝒓𝒆𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑺𝒆𝒕𝒆
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑸𝒖𝒂𝒓𝒆𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑶𝒊𝒕𝒐
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑪𝒊𝒏𝒒𝒖𝒆𝒏𝒕𝒂
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑪𝒊𝒏𝒒𝒖𝒆𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑼𝒎
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑪𝒊𝒏𝒒𝒖𝒆𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑫𝒐𝒊𝒔
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑪𝒊𝒏𝒒𝒖𝒆𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑻𝒓𝒆𝒔
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑪𝒊𝒏𝒒𝒖𝒆𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑸𝒖𝒂𝒕𝒓𝒐
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑪𝒊𝒏𝒒𝒖𝒆𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑪𝒊𝒏𝒄𝒐
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑪𝒊𝒏𝒒𝒖𝒆𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑺𝒆𝒊𝒔
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑪𝒊𝒏𝒒𝒖𝒆𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑺𝒆𝒕𝒆
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑪𝒊𝒏𝒒𝒖𝒆𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑶𝒊𝒕𝒐
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑪𝒊𝒏𝒒𝒖𝒆𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑵𝒐𝒗𝒆
𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑺𝒆𝒔𝒔𝒆𝒏𝒕𝒂
𝙑𝙄𝙎𝙊𝙀𝙎 𝙌𝙐𝙀 𝙎𝙀 𝙏𝙊𝙍𝙉𝘼𝙈 𝙍𝙀𝘼𝙇𝙄𝘿𝘼𝘿𝙀𝙎
𝙋𝙇𝘼𝙔𝙇𝙄𝙎𝙏 + 𝘽𝙊𝙉𝙐𝙎
𝘼𝙂𝙍𝘼𝘿𝙀𝘾𝙄𝙈𝙀𝙉𝙏𝙊𝙎

𝑪𝒂𝒑𝒊𝒕𝒖𝒍𝒐 𝑸𝒖𝒂𝒓𝒆𝒏𝒕𝒂 𝒆 𝑵𝒐𝒗𝒆

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By ParacetaLOKA

Dois capítulos em uma semana? Tô surpresa comigo mesma. Até semana que vem saí outro (eu espero). 

PS: esse capítulo é triste e pesado (gatilhos) e não vou elaborar, mas estejam avisados e leiam com calma e cautela. Pulem as partes em que não se sentirem confortáveis. 


・✻・゚・✻・゚゚・✻・゚・✻・゚゚・✻・゚・✻・

Lorella


— HÁ UM PREÇO PELA MINHA CABEÇA E, NESSE EXATO INSTANTE, ASSASSINOS E MERCENÁRIOS ESTÃO ME PROCURANDO POR TERRASEN. ENVIADOS PELO PRÓPRIO HOLDWYN. 

Rowan, Lorcan, Aedion e Fenrys me olharam do outro lado da mesa com semblantes rígidos; semblantes moldados em sangue e batalha.

Fenrys, obviamente, estava fervilhando de ódio. Rowan mantinha sua máscara de rei consorte bem fixo sobre o olhar preocupado e Lorcan, junto de Aedion, ao menos faziam o possível para dar a entender que estavam ponderando sobre minha situação ao invés de dizer que estavam pouco se fodendo a isso. Talvez, semanas atrás, essa tenha sido suas respostas — mas eu salvei Perranth e Aelin dias atrás, então se lembrariam disso ao decidir. Pela sua rainha, é claro, eu não significava nada para eles. Não passava de uma híbrida que causou mais problemas do que ajudou em alguma coisa.

Apertei os dedos, revirando-os contra o tecido da minha blusa quando falei:

— Talvez seja melhor eu deixar a cidade. Sair de Orynth e ir para o sul...

Não — Fenrys vociferou, batendo os punhos contra a mesa. — Isso não é uma opção.

— Na verdade, é sim — Aedion murmurou, olhando-me com olhos estreitos e estratégicos. Pensando em mim mais como uma peça a ser movida num tabuleiro do que alguém de verdade. — Se ela sair daqui, os assassinos saem com ela e a cidade fica protegida. Aelin fica protegida.

— Não aja como se você não estivesse contente com isso, Aedion — Fenrys disparou de volta. — Todos sabemos que você sempre quis um motivo para mandá-la embora. Ter encontrado essa coincidência não torna você menos babaca.

— Ache o que quiser, seria uma boa opção — ele deu de ombros, olhando para Rowan. — Você sabe que eu estou certo, irmão. Proteger a cidade e Aelin é nosso dever, ainda mais com ela há poucos dias depois de ter a bebê e ainda frágil do parto.

— Diz como se você não conhecesse a Aelin — Fenrys reclamou. — Pelo amor dos deuses, a mulher estava correndo pelas escadas e atirando facas ontem de manhã! Não aja como se ela fosse uma rainha indefesa.

— Tê-la pulando por aí como um piolho irresponsável e infringindo alegremente todas as advertências de Yrene não é algo exatamente para se orgulhar ou termos como referência de que ela está bem — Aedion o censurou. — O parto foi difícil, Fenrys. Você estava lá. Você viu como foi difícil para Yrene conseguir virar a bebê e fazê-la sair sem matar Aelin no processo. Pense na Aelin!

— Eu penso em Aelin. Ela é a minha rainha tanto quanto sua!

— No momento, tudo com o que você se parece é um imbecil desesperado por uma boceta que vai te matar.

Fenrys avançou em Aedion com tanta raiva e violência que o macho não conseguiu desviar do soco que o lobo acertou em seu rosto. Lorcan agarrou Fenrys pelos ombros e o arremessou para o lado, distanciando-o de Aedion. Rowan apoiou a mão no ombro do primo da esposa, conferindo se ele ficaria bem.

O Ashryver piscou, balançando a cabeça, então flexionou a mandíbula dolorida e apertou o queixo com os dedos. Eu me mantive em silêncio, parada como se meu corpo tivesse sido mumificado. Não dei um pio ou ousei respirar alto para atrair a atenção dos dois machos que estavam se encarando com faíscas nos olhos, prontos para uma briga violenta e muito cruel.

Aedion olhou para Lorcan, lambendo a lateral de sua boca onde um rasgo começava a brotar sangue.

— Não vai dizer nada, Lorcan? Você sempre foi tão fervoroso contra a estadia dessa cretina aqui.

Os olhos de Lorcan se desviaram para mim, e ele me avaliou como um açougueiro avalia um animal prestes a ser abatido. Encolhi os ombros e ergui o queixo, tentando impedir que ele visse meus olhos marejados. Seu rosto se virou outra vez para Aedion, irradiando desinteresse quando disse:

— Ela salvou a vida de Elide. Vou dar uma chance à ela e concordar com o que Rowan decidir.

— Devíamos levar essa história até Aelin — Aedion propôs. Fenrys sorriu com arrogância.

— Então você definitivamente perderia, porque sabe como Aelin confia e gosta da Lorella.

— Não vamos levar nada à Aelin — a voz rouca e antiga de Rowan ecoou pela sala de reuniões do conselho pela primeira vez. — Como você mesmo disse, Aedion: ela está vulnerável. Qualquer burburinho que sair dessa sala e chagar até ela, vou descobrir quem foi e arrancar a língua do desgraçado.

Parte da resposta de Rowan me deixa desesperançosa, porque sei que ele faria tudo o que pudesse para impedir que essa batalha explodisse em Orynth e colocasse a vida de Aelin e Elentiya em perigo.

Baixo os olhos, sabendo que Rowan concordaria com o plano de Aedion. Em palavras menos violentas e cruéis, mas ainda sim seria uma concordância.

— Não há necessidade de arrancar línguas, eu estou aqui.

A porta foi aberta, então Aelin estava ali. O rosto límpido e soberano como a rainha que ela é. Ela caminhou com graça e elegância até a mesa, deu a volta, e se sentou na cadeira do meio — bem na frente de onde eu estava, em pé, do outro lado do móvel. Seus olhos me percorreram, mas nada de sua expressão me revelou que ela estivesse ponderando algo positivo para mim.

Rowan parecia prestes a explodir de raiva quando disse:

— Quem foi o infeliz que te contou sobre essa reunião?

— Eu contei — Manon passou pela porta como uma estrela vermelha, o manto oscilando atrás dela. A rainha-bruxa contornou a mesa e se sentou ao lado de Aelin, as duas lado a lado como rainhas prontas para decidirem meu destino. — E antes que perguntem: descobri através de vocês mesmos. Vocês são machos que desconhecem a palavra discrição. Falam tão alto quanto porcos morrendo.

— Onde está Elentiya? — perguntei com cautela, preocupada que Rowan começasse a gritar de raiva.

— Não se preocupe, ela está sendo muito bem observada e paparicada por um bando de mulheres que estão apaixonadas por ela — Aelin respondeu, erguendo a mão. — Lysandra e Elide estão com ela, além de Flora, Evangeline, Yrene e Sierra. Minha filha não poderia estar mais segura.

— E o que está fazendo aqui? — Lorcan perguntou.

Aelin olhou para ele e riu.

— Antes de eu ser mãe, Lorcan, eu sou uma rainha. É isso o que eu estou fazendo: governando.

— Você deveria estar descansando — Aedion murmurou, e foi corajoso o bastante para segurar o olhar que sua prima o lançou.

— Se disser algo como isso mais uma vez, Aedion, vou te tirar dessa sala com o rabo pegando fogo. Literalmente.

Ele se calou, resmungando, mas se afastou para um dos cantos da sala em silêncio. Aelin se voltou a mim.

— Agora... voltando ao fato de que assassinos foram enviados para matar você.

— Eu posso ir embora — falei, tentando fazê-la entender que eu não seria um problema. — Nunca quis causar tudo isso. Foi por minha culpa que Holdwyn sobreviveu. Eu fui ingênua demais por pensar que um ferimento como aquele pudesse matá-lo.

— Foi mesmo — sussurrou Aedion.

A mão de Aelin atingiu a mesa com força. Ondas de fogo cobalto saindo sob sua palma quando ela olhou para o primo.

— Diga mais uma palavra, Aedion. Só. Mais. Uma, e vou usar do juramento de sangue para que você suma da minha frente por uma maldita semana!

Ela olhou para ele, esperando que ele revidasse, mas o primo não revidou, o que a deixou satisfeita — por hora.

— Você sair ou não da cidade não vai adiantar — Aelin explicou. — Foram enviados para Terrasen porque sabem que você está aqui agora. Se você for embora, vai causar confusão em todos eles. Provavelmente sequestrariam e torturariam pessoas que já interagiram com você para perguntar sobre seu paradeiro. Você sair daqui não deixaria as pessoas mais protegidas.

— Então o que você sugere? — perguntei, derrotada.

Aelin pensou por um segundo, apoiando o queixo nas mãos.

— O que Holdwyn quer, exatamente?

— Eu. Viva ou morta.

— E o que ele disse que aconteceria se não entregássemos você? — Rowan perguntou.

— Disse que, se eu for entregue, os atentados seriam encerrados e ele voltaria para Wendlyn e os deixariam em paz.

— Voltaria para Wendlyn com você — Fenrys rosnou, apertando os punhos. — Indiretamente falando o que aconteceria.

Estremeci. Só de imaginar estar de volta naquele continente miserável onde jurei nunca mais colocar meus pés outra vez me deixa enojada.

Por outro lado, se eu não fosse capturada, mais atentados como o de Perranth aconteceriam por Terrasen, logo mais em Orynth, e todas aquelas pessoas iriam morrer por mim. Por minha culpa.

Centenas de vida por uma. A conta é fácil de se fazer. A decisão ainda mais fácil de ser tomada.

— Entendo — Aelin falou, e eu me aproximei um pouco mais.

— Aceite. Dê a ele o que ele quer — todos me olharam como se eu tivesse ficado louca. Até mesmo Aedion piscou, surpreso. — Não é como se eu fosse capaz de viver comigo mesma se Orynth for atacada do jeito que Perranth foi. Não é justo que mais inocentes morram por minha causa. Antes não havia com o que barganhar com Holdwyn, por isso lutamos, mas agora temos algo que ele quer: eu. Essa guerra pode acabar tão rápido quanto começou — meu coração estava uma desordem dentro do peito, terror e tristeza serpenteando por minhas veias, porque não quero morrer. Mas morreria. Por Terrasen, pela rainha que me deu um lar. Por Fenrys. Por mim mesma, eu morreria. — Deixe-o me pegar.

Aelin riu.

— Não.

— Então eu mesma me entregarei — rosnei. — Eu posso me matar. Ele pediu por uma cabeça, não por um corpo com vida. Seria melhor ser morta do que ser entregue com vida à Holdwyn.

Nisso ela não está errada — Lorcan sussurrou, mas Manon já estava vociferando:

— De jeito nenhum! — ela gesticulou, então apontou para mim. — Não seja uma bruxa teimosa. Você é minha bruxa e Holdwyn colocou um prêmio por sua cabeça. Isso só significa uma coisa.

Guerra — Aelin entoou, os olhos brilhando com aquele dourado insano parecido com o de Manon.

Aedion riu, e o olhar de sua prima à ele o absteve de dizer alguma coisa ácida. Mas Aelin não iria calar Rowan, seu rei consorte.

— Isso é... um pouco demais — ele olhou para a parceira. — Ainda estamos lutando por paz, Aelin. Em poucos meses fará cinco anos desde Maeve e Erawan e você quer entrar em outra guerra?

Ele não disse "em outra guerra por alguém como ela?", mas a continuação de suas palavras não ditas ecoou ali, em seu olhar. Admito que isso doeu mais do que deveria, e cruzei os braços, abraçando-me como se eu pudesse me cobrir pela mágoa e vergonha que me atingiram.

— Não podemos não fazer nada, Rowan — Aelin declarou, olhando para ele. — Ela é uma de nós.

— Mas... uma guerra... — o macho ponderou.

— Não fazer uma escolha é uma escolha — Manon esbravejou. Os ombros erguidos e o olhar afiado como uma verdadeira rainha indomável.

— Ele sabe o quanto Lorella é vital para ambos os povos — Aelin apontou para si e depois para Manon. — Ele sabe que nós iríamos discutir sobre onde Lorella realmente pertence. Ele iria nos fazer brigar por ela, decidir se o sangue dela é vermelho ou azul.

— E o que ela decide? — Aedion perguntou, e dessa vez Aelin não o calou. O que significava que ela queria ouvir a resposta. — De que cor ela sangra?

Não hesitei.

— Sou ambos, Aedion. Vermelho e azul. Querer escolher a qual lado pertenço e, eventualmente, perder o outro, seria como pedir para que eu escolhesse qual lado do meu coração perder.

Um sorriso orgulhos se abre no rosto de Aelin, como se estivesse contente com a resposta.

— Neutralidade é um conceito, não um fato — ela falou devagar. — Ninguém vive a vida desse jeito, não realmente. Não no fundo da alma.

— E a questão que ainda perdura... — Lorcan retomou, com a voz indiferente e baixa. — O que vamos fazer sobre isso?

Um toque suave na porta me faz desviar o olhar. Yrene está ali, sorrindo de forma gentil e prestativa. Seus olhos esquadrinham o interior da sala até me encontrar, o que não é difícil, considerando que estou em frente à mesa, em pé, como uma assassina sendo condenada por seus pecados.

— Você disse que gostaria que eu ajudasse suas irmãs.

— Ah, sim, é verdade — falei, me virando para Aelin.

Ela já estava assentindo, acenando com as mãos para que eu fosse.

— Vá, nós discutiremos isso mais tarde. Ajude-as.

Deixei a sala o mais rápido que pude, mostrando o caminho para Yrene entre as passagens secretas até a torre em que elas ficaram na primeira vez. Foi uma árdua batalha levar Arthemis inconsciente pelas escadas, mas conseguimos.

Yrene perguntou sobre os ferimentos. Digo que as mais feridas são Arthemis e Bellamy, a primeira com um corte que poderia estar infeccionado. Yrene assente, determinada, e me ajuda a empurrar a pedra de entrada conforme passamos por ela.

Isla havia encontrado um pano para limpar o rosto e pescoço, mas ainda havia vestígios de sangue perto das orelhas e atrás da garganta. Freya estava ajudando Bellamy a se sentar na cama estreita enquanto Selene, angustiada, apoiava a perna de Arthemis sobre uma cadeira. A ruiva estava acordada, ainda meio tonta pelas pancadas que sofreu e gemendo de dor. Sua perna era uma coisa vermelha e brilhante, o ferimento soltando pus e com um cheiro desagradável. Ela revirou os olhos, grunhindo de forma dramática que estava morrendo, então Yrene se aproxima.

Os passos da curandeira, entretanto, diminuíram conforme seus olhos observavam o rosto de Arthemis. Talvez fosse medo das pupilas retas, dos olhos sobrenaturalmente amarelos, do seu corpo musculoso ou da tatuagem facial — mas há assombro nos olhos da curandeira, reconhecimento, quando diz:

Você.

Art ergue o rosto, pisca devagar e então seus olhos estão derramando uma incontável quantidade de lágrimas. Nenhuma das minhas irmãs entendem coisa alguma. Nenhuma sabe dizer o porque Arthemis está chorando — não quando, antes e acordada, encarou sua perna com ceticismo e revirou os olhos como se não fosse nada demais.

— Você... eu me lembro de você — Yrene sussurrou, se aproximando conforme apertava uma pilha de panos entre os braços. — Você estava em Charco Lavrado. Me acompanhou nos partos.

Então, de repente, tudo faz sentido.

Um ar de tristeza profunda toma conta de nós todas quando nos damos conta de que fora Yrene quem ajudou e ensinou Arthemis a parir. Foi ela a curandeira que deu conhecimento à minha irmã e a ajudou com o nascimento de Nyra.

Arthemis só olha para ela, incapaz de dizer alguma coisa. Yrene olha ao redor, talvez procurando pela criança.

— Você teve o bebê? Conseguiu? — há esperança em sua voz animada. Uma esperança que nos quebra, uma por uma. — Eu pensei tanto em você nesses anos, sempre me perguntava se você havia conseguido e como era o bebê. Você é filha dela? — Yrene apontou para Selene, supondo tal fato por ela ser a mais nova, a mais jovem.

Selene acenou, triste. Yrene diminuiu o sorriso, mas seus olhos se demoraram sobre a cicatriz e a cegueira da minha irmã, lamentando por seu infortúnio sendo tão jovem.

Mas Yrene era esperançosa, otimista, alegre e corajosa, então sorriu outra vez para Arthemis.

— A bebê está bem? Deve ser uma criança linda.

— Meu pai a matou — Art respondeu, a voz caindo em um soluço profundo. — Nosso pai a matou.

O rosto de Yrene foi tomado por tristeza, pavor e dor conforme me olhava, então olhava para todas aquelas garotas surradas, feridas e desamparadas ao redor e se dava conta de que éramos filhas de Dilden Holdwyn. Filhas do desespero. Filhas da dor e da fome e miséria. De que todas nós, de um jeito ou de outro, havíamos sido arruinadas por ele.

— Eu... eu sinto muito.

— Dei o nome de Nyra — Arthemis continuou falando, apertando firme a mão de Selene em seu ombro. — Tinha os meus olhos. Ela era linda.

— Aposto que ela era, sim — Yrene sussurrou com pesar, se aproximando. — E aposto que, onde quer que ela esteja, ela está orgulhosa do quanto a mãe dela aguentou e sobreviveu até agora.

Art riu com desprezo.

— Eu não contaria muito com isso.

— Pode não acreditar em mim — Yrene encharcou um pano com um liquido arroxeado e o estendeu sobre o ferimento de Arthemis. Minha irmã rugiu de dor. —, mas acredite nas suas irmãs.

Arthemis nos olhou, e uma por uma assentiu, confirmando as palavras de consolo de Yrene. Ela encontrou algum tipo de paz quando nos observou juntas e em silêncio, então seu corpo caiu para trás na cama, rendendo-se à doce inconsciência da dor.

───── ⊹⊱✫⊰⊹ ─────

— Porque ele pediria minha morte, afinal de contas?

Bellamy, na cama à frente, deu risada. Ela moveu as cartas entre seus dedos, movimentando em uma ordem que apenas ela entendia. Selene, atrás dela, observava com olhos atentos a jogada que a irmã tinha em mãos. Arthemis apertava o montinho de carta entre os dedos, mantendo a perna ferida erguida em uma pilha de travesseiros conforme esperava que Bellamy finalmente colocasse uma carta sobre a sua, fazendo sua jogada. Freya estava do outro lado do quarto afiando sua espada enquanto Isla fazia flexões no batente da porta, alternando entre abdominais no chão.

— Porque ele te vê como uma ameaça, ainda mais depois do show que você deu quando lutou com ele e mostrou do que você e seu foguinho são capazes de fazer — Bellamy respondeu com simplicidade, dando de ombros e colocando uma carta acima da anterior de Arthemis. Fiz uma careta quando observei as cartas em minhas mãos, nada agradáveis. A feérica ergueu os olhos para mim. — Mas você não vai morrer.

— Pelo menos, não do nosso lado — Arthemis complementou, apoiando o pescoço na cabeceira da cama. — Espero que você tenha uma vida longa e contente nesse castelinho entediante.

— Porque se preocupar em me proteger? — perguntei de forma frustrada, obrigando-me a comprar uma carta. — Vocês não me devem nada.

Isla soltou o batente da porta e seus pés pousaram no chão com força. Ela se aproximou levemente ofegante. A regata que usava mostrava pedaços do seu corpo que jamais vi antes, pedaços de pele cheias de cicatrizes e algumas queimaduras antigas e cruéis. Minha irmã bateu as mãos, livrando-se da poeira, conforme se aproximou com o rosto vermelho cheio de suor e disse, numa voz firme:

— Porque você merece.

— Todas nós merecemos — acrescentei, tendo o silêncio delas.

Bellamy se irritou pelo terrível agrupamento de cartas e uma estratégia de merda, então jogou as peças do jogo sobre a mesinha, praguejando, fazendo Sel abrir um sorriso divertido por vê-la perder. Arthemis manteve o olhar estreito conforme movia as cartas em suas mãos, em um padrão que apenas ela entendia. Freya se aproximou e observou sobre meu ombro, abrindo um sorriso maldoso ao observar minha jogada.

Arthemis mostrou seu resultado e eu lhe mostrei minhas cartas. O olhar horrorizado no rosto da semifeérica me fez gargalhar quando me inclinei e agarrei as moedas sobre a mesa, enfiando-as nos bolsos.

Freya se inclinou, sussurrando no meu ouvido:

— Você trapaceou ou só roubou sem nenhum remorso?

— Os dois. Mas aprendi que não é trapaça se ninguém pegar você — sussurrei de volta, vendo o sorriso cúmplice se espalhar pelo rosto da minha irmã bruxa.

Uma semana se passou desde que elas chegaram. Yrene cuidou de cada uma, dando preferência às mais feridas. Arthemis progrediu em três dias com a perna infeccionada, o ombro deslocado e o pedaço do dedo que faltava. Bellamy teve o nariz posto de volta no lugar e o braço curado. Freya e Isla só precisavam de um banho, um pouco de comida e descanso, e o tempo fez com que o inchaço no olho de Selene diminuísse até restar apenas um hematoma arroxeado ao redor do olho cego.

Elentiya fora apresentada aos cidadãos de Terrasen e aos deuses, como nas antigas tradições da família de Aelin. Pessoas de diversas cidades do reino compareceram à festividade, enchendo Orynth como se fosse um formigueiro superlotado. Rowan, Aedion, Vaughan e Fenrys se mantiveram ocupados garantindo que os guardas tivessem informações o suficiente para prender e deter qualquer suspeito da causa de Holdwyn. Felizmente nenhum deles foi encontrado. Nada além de meros bêbados festeiros e animados com o nascimento de Elentiya foram detidos nas celas da prisão.

A cerimônia foi uma coisa mágica. Aelin e Rowan tomavam a ponta da procissão, em direção ao pequeno templo no lado leste da cidade, enquanto Fenrys e eu seguíamos os monarcas, como padrinhos da pequena Ellen — carinhosamente apelidada por seus pais. Fenrys estava emotivo naquele dia, e sorriu durante todo o tempo em que o sacerdote me fez segurar a pequena princesa nos braços. Eu e Fenrys tivemos nossos dedos furados com uma agulha, pingados em uma taça e, em seguida, molhamos nossos polegares no sangue misturado, deslizando-o sobre a rosada testa da bebê.

Um feriado de dois dias seguidos procedeu à apresentação da princesa para todo o reino — com isso, uma festa que durou dois dias também acompanhou o feriado no reino. Os parentes de Rowan e o primo Ashryver haviam chegado no último dia de festa, mas fora o suficiente para que os familiares novos vibrassem de felicidade pelo rei e pela rainha. Minhas irmãs também participaram da festa, escondidas sob mantos e com nomes diferentes, mas Aelin as aceitou e as recepcionou tão bem quanto qualquer outro integrante de sua corte. Arthemis piscou para afastar as lágrimas quando olhou para o rosto infantil da criança no colo de Aelin, desejando felicidade à ela e se afastando rapidamente.

Por solidariedade à Arthemis — que ficou a maior parte da semana no quarto, saindo apenas para treinar na arena —, nós também ficamos com ela o tempo todo na torre, ou onde quer que ela estivesse. Não deixamos que a lembrança de Nyra pairasse sobre sua cabeça com um sentimento triste e fúnebre. Por isso, uma de nós sempre estava disposta a caminhar com ela pelos corredores do castelo ou ser uma parceira de luta conforme ela fortificava sua perna ferida.

Naqueles dias, juntas, todas as irmãs Holdwyn haviam se reunido em uma pilha de travesseiros em frente a lareira, cada uma especulando sobre seu destino depois que Holdwyn finalmente fosse morto.

Freya contou sobre sua curiosidade em conhecer os acampamentos das Crochans e visitar os Desertos do Oeste; Bellamy revelou seu desejo por comprar um cavalo Asterion, porque ainda se lembrava de como eram os animais mais fascinantes que havia encontrado na vida. Arthemis expressou sua vontade por ser capitã, a comandante de um navio que atravessaria oceanos a fim de aventura, a procura de tesouros perdidos há muito; Selene, através de contidos e envergonhados gestos, nos revela que tinha o desejo de participar de uma feira artística que acontecia a cada três anos em Adarlan, reunindo pintores de todos os reinos. E Isla, em um desejo simples e sincero, diz que gostaria de ter uma cabana perto de um riacho e um gazebo, onde todas as tardes ela se sentaria sob o telhado do gazebo, tomaria uma xícara de chá e observaria o entardecer. No fim, acho que não importa muito o desejo mais profundo de cada uma, porque todos caminhos levam a um só: liberdade. Nenhuma delas se importava com seus destinos futuros desde que estivessem libertas de Holdwyn.

Em todas aquelas longas noites eu havia descansado nos arredores, sem oferecer um palpite ou intervir diretamente na conversa das cinco irmãs. Eu apenas usei o tempo para assisti-las reunidas. Para amá-las em silêncio. Para lembrar de como elas lutaram ao meu lado e lutaram tantas vezes uma pela outra, para se manterem unidas e vivas. Permaneci sendo uma observadora secundária, observando os sorrisos delas. Os olhos delas. As gargalhadas incontidas e selvagens; a forma como o riso de Selene era como uma coisa quebrada e frágil que me fazia lacrimejar sempre que ouvia. Fiquei observando-as e pensando que, de formas diferentes mas iguais pelas coisas que passamos pelas nossas infâncias, aninhadas em frente a lareira, parecíamos uma pilha de filhotes recém-nascidos compartilhando segredos.

Numa manhã aleatória, é Selene quem confessa ter a curiosidade de descobrir como seria ter uma festa de aniversário. Um bolo e velas para soprar. Tento fingir que seu comentário não surgiu um maremoto de emoções em meu coração e uma avalanche de lágrimas em meus olhos, não depois de ter ouvido a confirmação de todas as outras, adicionando comentários de como seria divertido ter convidados, doces e música.

No outro dia, depois que todas elas voltam de um treino especialmente longo com Fenrys, elas encontram a torre completamente modificada. Há balões de papel pendurados em barbantes de bandeirinhas reutilizadas do equinócio outonal. A mesa de jantar fora movida para o lado da lareira, perto das extensas janelas e, sobre o móvel, uma quantidade imensurável de petiscos e doces estavam ao redor de um bolo redondo tomado por velas em sua superfície estupidamente preenchida com glacê num tom apavorante de cor-de-rosa.

Selene é a primeira a começar a chorar, em silêncio e incrédula quando me observa atrás da mesa, ascendendo centenas de velas um de cada vez. Sierra está ao meu lado, ajudando, assim como Yrene, Aelin, Rowan, Lysandra, Evangeline, Elide, Flora e a pequenina Elentiya entre os braços de Manon. A bruxa olhando para a minúscula criança como se ela fosse um ser de outro universo.

Bellamy tenta tirar sarro de todas as faixas feitas com tinta, às pressas, mas seus olhos também estão brilhando com lágrimas quando eu me aproximo com os braços cheios de presentes. Ela não diz uma palavra quando aceita a caixa das minhas mãos e baixa os olhos. Freya e Arthemis estão tentando se recompor enquanto Isla olha para tudo aquilo como se fosse uma sala de tortura ou uma miragem, prestes a sumir de sua vista.

Ela não acredita que todas aquelas pessoas estão ali por elas, para que todas nós pudéssemos, pela primeira vez na vida, assoprar velas e comemorar um aniversário como uma pessoa normal. Sei o que ela está sentindo porque nem mesmo eu havia me dado conta de que nunca assoprei uma vela de aniversário sobre um bolo decorado de glacê na minha vida antes de Selene revelar seu desejo por uma festa.

Aperto a mão de Isla e sorrio para ela, transmitindo que eu sabia o que ela estava sentindo. Eu passei por isso — por essa nebulosidade de sobrevivência, onde nada mais importa até você conseguir sobreviver um dia de cada vez. E, olhando para Isla agora, vejo como se meu reflexo estivesse me olhando de volta. Vejo a mesma morte em vida por trás de seus olhos, sumindo aos poucos. A tortura que matava a esperança. Aquele tipo de ódio e culpa por si mesmo que só foi experimentado quando se foi destruída tantas vezes até não restar nada mais.

Selene abre seu presente: um conjunto de pincéis e tintas feitas diretamente pelas mãos de um dos pintores da feira de Adarlan que ela mencionou ter vontade de conhecer; um incentivo para que não deixasse Holdwyn tomar seu sonho em continuar a pintar como ela fazia antes de ter os dedos destruídos. No pacote de Freya há uma nova e esplêndida capa vermelha com um envelope por cima, contendo uma carta minha que serviria de recomendação quando minha irmã fosse até o acampamento de Glennis e recebesse o tratamento de uma Crochan, sob minhas ordens — a líder das bruxas Bico Negro, imediata de Manon — de que fosse muito bem tratada e acolhida.

Sob a tampa do pequeno presente de Bellamy ela encontra um pingente liso, ainda sem escrita, para que ela mesma pudesse escolher o nome do cavalo Asterion que estava há meses nos estábulos de Aelin — um dos cavalos que comprei do capataz em Ilium quando precisei deles para trazer Fenrys até aqui. Os olhos da mulher se enchem de lágrimas conforme eu lhe explico sobre o animal já estar a sua espera nos estábulos.

Arthemis recebe um chapéu e um sobretudo elegante como os que os capitãs de navios geralmente usam, destacando-se do restante da tripulação. Não era um navio, mas era o que eu pude comprar para que a incentivasse a conquistar seus próprios homens e seu navio. Com Isla, estendo à ela um pequeno embrulho, uma caixinha do tamanho da palma da minha mão. A fêmea me olha com as sobrancelhas erguidas.

— Os embrulhos das outras eram tão grandes — ela disse conforme desfazia o laço. — Isso quer dizer alguma coisa sobre quem é a sua irmã preferida?

— Veremos — respondi, mordendo os lábios e mal me aguentando por tamanha euforia para que ela abrisse o maldito presente.

Quando ela puxou a tampa e olhou para a pequena chave sobre o tecido de veludo, seu rosto se franziu de confusão.

— É a chave de uma cabana perto das montanhas do cervo — falei devagar, olhando para a chave prateada. — Foi o que eu e Fenrys conseguimos encontrar em tão pouco tempo. Ainda há alguns reparos para fazer mas... comprei porque achei que gostaria. Fica perto de uma nascente e eu vou construir um gazebo. Além disso, fica a menos de dez quilômetros andando. Você estaria perto de... mim.

Isla pega a chave entre seus dedos e o aperta contra o peito, abrindo um sorriso que rasga meu coração ao meio.

— Obrigada, Lore — ela diz entre soluços e risos. — É o melhor presente que já ganhei.

Flora nos arrasta até o bolo, onde as velas estão derretendo. Nem todos aqui gostam das minhas irmãs, é verdade, mas seus sorrisos poderiam enganar até os mais experientes atores de teatro. Talvez estejam felizes porque estou feliz; ou porque se esqueceram por alguns minutos de que Holdwyn ainda esteja vivo e apenas aproveitando o espaço de tempo onde tudo parece perfeito e feliz depois do esperançoso nascimento da princesa.

Aelin está com Elentiya no colo quando Selene pega o bolo em mãos, erguendo-o na altura de nossos rostos. Elas se espremem uma contra a outra, sorrindo em risinhos conspiratórios e, na contagem regressiva que todos entoam para que as velas fossem apagadas, giro meu rosto e olho para elas — para as irmãs que eu amava e que me amavam de volta.

Fico olhando para elas quando a contagem se encerra, querendo me lembrar para sempre do olhar no rosto das filhas de Holdwyn, quando são intimidadas a soprar as velas de aniversário pela primeira vez na vida.

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Por um tempo, dias depois da festa de aniversário, no meio do outono e durante uma agradável tarde onde minhas irmãs estavam cochilando e eu aproveitava a companhia de Aelin e Flora — com Evangeline e Lysandra cuidando das pequenas Aedlyn e Elentiya depois do banho —, eu cometi o erro de começar a acreditar que as coisas ficariam bem. Comecei a ter esperança, a sonhar.

A relaxar.

Eu finalmente tinha me afastado do meu próprio pessimismo e culpa e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

Foi Manon quem vi primeiro através de uma das janelas, montada sobre Abraxos e disparando flechas com os dentes de ferro exibidos em um grunhido de ódio. Os gritos vieram em seguida. Os sinos de alerta de invasão soaram um segundo depois.

Aelin se colocou de pé num salto, e tudo o que fiz antes de sair correndo foi ordenar que Flora ficasse com a rainha e dentro do castelo. Minhas pernas pulsavam a cada volta que eu completava, descendo as escadas. Os gritos cresciam cada vez que me aproximava do térreo. Dois andares antes de finalmente estar no chão, encontrei um vitral e atravessei os vidros, sentindo cacos perfurarem minha pele quando pulei pela janela, levando o vidro comigo. Rolei no gramado do jardim do castelo e me coloquei de pé num piscar de olhos, correndo sem parar em direção à cidade — à cidade que estava queimando!

Uma grande explosão ocorreu do lado norte do castelo, longe o bastante para que tudo o que fosse possível de se enxergar fosse as labaredas de chamas consumindo as construções e a fumaça preta subindo pelo céu da tarde. As pessoas gritavam e corriam para o sul da cidade, só para se encontrarem com os homens de Holdwyn, portando lâminas e cortando os pescoços de todos os inocentes que tentavam fugir do incêndio.

Meus pés pulavam degrau por degrau do castelo em direção ao centro de tudo. Blodreina estava nos céus com Manon e Abraxos; minha serpente alada com uma montadora improvável: Evangeline. A lady de Arren bravamente empunhava um arco e disparava flechas com a mesma precisão com que fora ensinada por Aedion. Seu rosto não vacilou conforme se agarrou à sela de Blodreina e deixou que a serpente alada voasse baixo, arrastando sua cauda por uma fileira de homens na saída de uma das ruas principais, desfazendo a linha.

Isla apareceu ao meu lado em um instante, saindo das sombras sob a escadaria que levaria ao castelo. Ela me encontrou sem armas, então me ofereceu uma de suas espadas e um boldrié com seis facas de arremesso.

— Nossas irmãs? — indaguei sem encará-la.

— Já estão nas ruas — respondeu, olhando ao redor. — Holdwyn deve estar aqui — ela estendeu uma adaga de luta para mim. Era tudo o que eu tinha e precisava para lidar com o exército de homens que invadia o portão sul. — Eu o conheço. Ele não perderia isso por nada.

— Então vamos terminar isso de uma vez por todas — decretei, lançando-me em uma corrida em direção ao homem mais perto.

Não parei para notar se Isla me seguia — não quando eu cravei meus olhos no inimigo, agarrando uma mulher idosa pelos cabelos e inclinando seu pescoço pálido para trás, inclinando uma faca sob sua garganta exposta.

Meu pé o acertou no meio da coluna, fazendo-o cair de joelhos. Seus dedos se abriram ao redor do cabo da faca, que caiu tilintando nos pés da idosa. Um garoto pegou a mulher sob os braços e correu com ela, os olhos arregalados de medo e desespero conforme agradeceu por eu ter salvo sua avó antes dos dois sumirem pela rua. O homem se levantou, girando quando agarrou o cabo de sua espada, pronto para desembainhá-la e me acertar. Ele não teve chance. Girei minha espada com tanta força ao acertá-lo que sua cabeça caiu de seus ombros, quicando no chão.

Não parei para raciocinar sobre o que de fato estava acontecendo ao meu redor; tudo o que eu conseguia enxergar eram os homens usando broches de número três na língua feérica. Tudo o que eu conseguia fazer era separar cabeças de pescoços; abrir barrigas e deixar que as vísceras escorressem pelas ruas antes de continuar correndo. Continuar correndo e acertando o máximo de desgraçados que eu conseguisse, matando-os sem piedade.

Minha magia rugiu dentro de mim, mas usei pouco dela, guardando meu poder para o golpe final que eu daria em Holdwyn assim que vislumbrasse uma parte podre dele. De cima, Manon me sobrevoa, acertando os homens ao meu redor — a horda deles que me cercaram e me encurralaram num beco.

Um me agarra pelo ombro, então estou girando, acertando-o com a adaga ao mesmo tempo que minha espada atravessa o peitoral de outro. Um terceiro me agarra pelos cabelos e não tenho tempo de puxar as lâminas de volta antes de ser arremessada. Estou gritando quando homens me puxam, prendendo-me ao chão. Grito como uma besta sendo aprisionada. Um deles perde parte do rosto quando é tolo o bastante para se aproximar e meus dentes de ferro rasgam parte de sua bochecha e queixo. Sangue espirra em mim, manchando minha camisa branca — que, a essa altura, não passa de uma cor escura numa mistura de sangue, pedaços de carne humana e lama.

— Segurem ela! — um deles gritou, ofegante pela pressão que tinha de fazer para me manter quieta. — Segurem-na!

Consigo soltar um pulso e giro o braço, acertando ao menos três deles com minhas unhas de ferro. Um perde o olho, outro sofre um rasgo cortando-lhe o rosto e o terceiro perde parte da boca. Mais sangue pulveriza meu corpo, me acertando como água quente. Um deles pisa sobre meu pulso solto, prendendo-me outra vez contra o chão imundo do beco. Meu rugido de ódio ecoa pelas paredes do beco.

Uma saraivada de flechas os atinge de cima, e Manon e Evangeline estão acertando-os de todos os lados, seus corpos sendo atingidos em mais de um lugar por flechas diferentes. Preciso encolher o corpo para não ser atingida, mesmo que uma ponta de ferro faça uma laceração na minha coxa e outra no alto do meu ombro. Antes mesmo de todos os homens serem mortos pelas flechadas das duas arqueiras eu já estou me movendo, engatinhando entre pernas para recuperar minha espada e a adaga fincadas nos cadáveres e no mesmo fôlego estou correndo — o peito queimando como se houvesse cacos de vidro nos pulmões, a boca seca e as pernas e os braços ardendo por todo o esforço de minutos, mas nada me para conforme tomo o caminho das ruas que levam aos portões sul.

Eles entram por lá, mesmo que alguns deles provavelmente já estivessem escondidos entre os cidadãos da cidade, fingindo serem um de nós durante as celebrações. Meus pés desviam de corpos espalhados pelo chão, de moradores e rivais; alguns ainda estão sangrando, morrendo, mas não posso parar e cuidar deles, levá-los até a sede de curadoria onde Yrene, Sierra e tantas outras mulheres devem estar em pânico agora, lidando com toda a maré de feridos que aparecem. Eu tenho um objetivo, uma missão, e nada me tiraria do rumo. Eu tinha que chegar até os portões e fechá-los. Garantir que ninguém mais fosse embora ou entrasse nessa cidade devastada.

Nada me tiraria o rumo, a não ser o estrondo que acontece num dos andares superiores do castelo. Toda a cidade estremece com a explosão. De algum lugar eu ouço um rugido, algo antigo e furioso, então um gavião de cauda branca está voando até la, como se seu coração estivesse dentro daquelas paredes — porque estava.

Aelin estava lá. E Elentiya.

E Flora.

Meu coração é uma bola retorcida conforme pondero a decidir o que escolher — quem escolher.

Dou um passo em direção ao castelo, ofegante de medo e pavor, mas me detenho. Pessoas gritavam. Mais para dentro da cidade, as pessoas estavam gritando. Fugindo. Fugindo do fogo que avançava e das lâminas inimigas que os encontravam. Havia poucos quarteirões até o castelo, eu conseguiria chegar até lá com uma corrida de três minutos. Apenas alguns quarteirões até Aelin e Flora.

E ainda assim... aqueles gritos de terror e dor continuaram. Famílias. Crianças. Casas e lares sendo destruídos — meu lar sendo destruído. Minha casa. E eu sei o que Aelin escolheria; o que ela escolheria sacrificar para que essas pessoas pudessem viver.

Virei às costas para o castelo, guardando a adaga na bainha da calça rasgada conforme empunhei a espada longa de Isla e deixei que o fogo sombrio percorresse meu outro braço. Meu corpo tremeu com uma outra explosão no castelo, estourando vidros e janelas. Um pequeno gosto de curiosidade e medo me fez escalar as paredes de uma casa até o terraço, meus dedos sangrando pelo esforço e as unhas quebradas em carne viva quando impulsionei meu corpo para cima, podendo observar pela primeira vez o estrago causado ao castelo e à parte queimada da cidade.

O ar escapa dos meus pulmões com tanta força que me sinto prestes a desmaiar, e lágrimas grossas desabam pelo meu rosto quando vejo o desastre: a torre que abrigava minhas irmãs veio abaixo, deixando uma brecha perigosa de ser invadida. As casas queimavam de um laranja intenso, sendo apagados por alguns corajosos o bastante que enfrentavam o fogo e os homens de Holdwyn ao mesmo tempo.

O jardim da rainha havia sido destruído, amassado sob os escombros da torre demolida. O gazebo jazia com apenas metade de si ainda em pé, oscilando a cada guinada do vento.

Meu peito dói com a visão quando me lanço para baixo, saltando do terraço. Meu peito dói e sinto falta de ar. Estou resfolegando, respirando fundo para levar ar aos meus pulmões secos — então estou vomitando ao lado de um cadáver com o broche de número três no peito. O medo de que Aelin ou o restante deles tenham se machucado começa a me tomar, mas eu não deixo que tais pensamentos me consumam. Agarro o cabo da espada mais forte e me viro de costas para o castelo, começando a correr.

Não hesitei. Não parei de correr em direção ao portão.

Quando me aproximei a pouco menos que dez metros das muralhas, sou o único ponto entre o exército que está avançando e a cidade às minhas costas. Sou a única defesa da cidade contra os mais de mil homens que invadem Orynth. Meus olhos procuram outro aliado ao redor, mas eles estão ocupados demais nas ameias da muralha ou lutando na parte central da cidade. As serpentes aladas estão sobrevoando a cidade, tirando sobreviventes do chão e os levando para um dos portões laterais para fugir. Tabitha e sua serpente alada tentavam bravamente apagar o incêndio.

Então os homens me veem parada ali, no início da rua principal, e começam a correr em minha direção, espadas erguidas e gritos de batalha escorrendo de suas bocas.

Outra vez estou sozinha, e sou a única que pode fazer alguma coisa.

Fugir ou cair lutando, eu só tinha uma opção — e eu não iria correr. Não iria fugir, não era uma covarde. Se tivesse que morrer que fosse aqui, protegendo a cidade que me aceitou e me ofereceu um lar, uma família e um amor. Se eu morresse, que fosse sabendo que levei todos esses desgraçados comigo.

O tempo se arrastou conforme observei aquela linha de homens formando um aríete que corriam em minha direção, prontos para passar por mim e me massacrar em segundos. Como um pequeno exército enviado por Holdwyn para me testar. Para ver o quão boa assassina eu poderia ser.

E, pelos deuses, eu seria indestrutível.

Eu seria uma rocha indestrutível contra os mais de mil homens de Holdwyn.

Acabaria com eles. Acabaria com todos eles como se não fossem nada.

Meus passos se cessaram metros antes daquela onda em forma de homens me acertar, então deixei meus olhos vagarem por eles. Deixei que olhassem bem para meu rosto sorridente, ávido e selvagem, e tivessem uma boa noção de quem os matou. Deixei que vissem a loucura maníaca e assassina em meus olhos antes de terem noção de que eu seria a última coisa que viriam antes de morrer — porque enfrentaria todos aqueles homens com uma espada e meu poder, e todos que ficassem no meu caminho iriam cair.

Não penso em nada quando ouço minha magia cantar para mim. Canto para ela em resposta, em uma canção de morte e destruição que me toma pelas mãos de uma forma cruel. A magia cresce dentro de mim, subindo e arranhando e borbulhando pela superfície, vazando do meu poço de poder e querendo tomar conta de mim e do meu corpo. Uma onda furiosa e poderosa me toma pelos braços e pela leva até um penhasco de capacidade forte e inebriante. Tal fúria me guia por um caminho perverso, mas cheio de intensidade e poder, que corre pelas minhas veias com tanta rapidez quanto uma flecha voando ao vento.

Eu lhe dou permissão para sair. Para me consumir e lavar toda aquela podridão com ela.

Uma risada insana escapa pelos meus lábios quando estendo o braço em chamas para frente. Punho fechado. Os homens não param sua corrida até mim. Eu não paro de rir. Deixo que minha gargalhada os confunda. Deixo que duvidem de mim e então, quando estão perto o bastante, abro a mão.

O fogo explodiu para além da palma da minha mão aberta, banhando toda a entrada da cidade em uma névoa escura. Um fogo escuro, um maremoto dele, o fogo sombrio de uma alma sombria e teimosa que se recusava a morrer. O fogo de uma alma furiosa que acabaria com todos todos todos todos eles.

Mais e mais além as sombras de fogo tomaram espaço, então bateu contra os homens. Corpos eram derretidos, caindo no chão em um amontoado de cinzas ou massas sangrentas nojentas. O mundo explodiu conforme derramei aquela onda de fogo sombrio para fora de mim, crescendo e crescendo alto o bastante para atingir parte da muralha. Barulho de ácido derretendo pedra ecoou pela cidade, estremeceu as paredes, quando fitas do meu fogo perseguia aqueles com o broche de número três. Por toda a extensão da muralha que cercava a cidade inteira meu poder os percorreu — então eu estava rindo, me aproximando quando dei por mim que toda a cidade estava cercada pelo meu fogo, como a aura sombria de um demônio o protegendo; como o escudo inquebrável de uma alma destruída.

Meus pés passavam sobre crânios, pisoteando pedaços de ossos secos por onde aquele exército estava antes. Agora não sobrara nada além de corpos tomados e destruídos pelo meu poder, consumidos e derretidos pelo meu fogo sombrio. Na muralha acima, nas ameias, homens gritavam de horror quando observavam os inimigos serem derretidos e evaporados bem na sua frente.

O golpe da morte de Holdwyn gasto aqui, no portão sul de Orynth para defender a cidade e todos os moradores que deviam estar desesperados pela chacina acontecendo nas ruas adentro.

Fogo sombrio ainda ondulava ao redor e sobre a muralha quando me virei, observando de forma desdenhosa o pedaço enegrecido do chão. O pedaço onde havia mais de mil homens e, agora, não sobrava nem mesmo pedaços de seus ossos para contar uma história.

Uma risada histérica passou pela minha boca quando olhei para cima, encontrando Aedion e Lorcan inclinados sobre o beiral das ameias, olhando para mim com tamanho horror me fez sorrir ainda mais. Curvei o corpo olhando para eles, como se estivesse agradecendo a presença depois de uma peça de teatro. Aedion estava pálido quando se afastou depois de uma fita do meu fogo sombrio circular seu punho, sem machucá-lo. Ele deu um pulo para longe e balançou o braço, como para se livrar daquilo.

Blodreina pousou a alguns metros, levantando a poeira das cinzas dos homens mortos. Evangeline estava sobre a serpente alada e parecia tão tomada pela adrenalina da batalha que mal se deu conta de que Blood pousou sobre o cemitério de mil homens.

— Eles invadiram o castelo! — ela brandou, e parte do que restava da minha magia começou a borbulhar de novo, cedendo aquela parte perversa que Erawan colocou em mim, a sede de querer destruir tudo e qualquer coisa. — Estão sob as passagens do castelo!

— O que você está fazendo nessa serpente alada, Evangeline? — Aedion berrou com pavor ao ver a menina sobre Blodreina, mas Eva não o respondeu.

Blood inclinou a cabeça e deixou que eu tomasse impulso entre seus olhos e caminhasse pelo seu comprido pescoço até me posicionar atrás da lady. Estávamos nos céus um segundo depois, ouvindo a voz de Aedion gritar alguma coisa enquanto Lorcan fechava os portões.

Blodreina estava de volta ao castelo poucas batidas de asas depois. Conforme minha serpente alada de coração guerreiro e destemida dava voltas pelo castelo, fiquei de pé e me equilibrei na dobra da asa de Blood. Me agachei com cuidado, sentindo Evangeline empalidecer atrás de mim, aterrorizada com a possibilidade de eu cair metros abaixo e morrer na hora. Deixei que meu interior se acalmasse e Blodreina desse outra volta no castelo de pedra brilhante. Respirei fundo e esperei, esperei... então me lancei para frente, sentindo a asa de Blodreina me atirar contra uma das sacadas mais largas da rainha.

Meu corpo atravessou a porta de vidro fechada, rolando no chão frio de um dos quartos. Por um segundo fiquei deitada, respirando com dificuldade entre os cacos de vidro, ouvindo o rugido de alívio, orgulho e aprovação de Blodreina ecoando por perto — e então o barulho do caos vindo de dentro do castelo.

Um grunhido de dor saiu pelos meus lábios secos quando me levantei, arrastando-me para longe dos cacos de vidro. Arranquei um pedaço perigosamente profundo da minha coxa e um punhado deles da palma da minha mão esquerda. Segurei firmemente o cabo da espada entre os dedos da mão direita e corri o mais rápido que consegui escadas abaixo.

Dois inimigos me encontraram na escada, subindo enquanto eu descia. Apoiei meu pé na parede e pulei, tomando impulso quando atravessei a espada em sua boca aberta e rolei com ele escadas abaixo. No fim da escadaria, acertei o segundo homem com uma das seis adagas inutilizadas em meu boldrié. O homem caiu com as mãos ao redor da garganta, sufocando com seu sangue.

Me apoiei nos joelhos e peguei impulso com a espada para me levantar, sentindo o esforço que a magia cobrou por aquela onda de poder despejada na entrada da cidade. Cambaleei para fora dos andares superiores, entrando no saguão principal. Sangue manchava as lindas tapeçarias e os tapetes de Aelin, presentes de sua amiga, a Grande Imperatriz do Sul. Corpos de funcionários jaziam no chão lustrado e escorregadio de sangue. Alguns homens inimigos também estavam ali, mortos e sangrando na casa de Aelin. Profanando um lugar tão lindo.

Uma porta principal foi estraçalhada, lascas de madeira explodidas para dentro e além da sala. Resquícios do gelo que Rowan controla ainda estavam por ali, denunciando a ferocidade e impetuosidade com que o rei adentrou seu castelo, caçando sua parceira e sua filha para protegê-las da morte.

Passando por uma sala, me inclinei casualmente para trás, dando um passo de volta para não ser atingida pelo corpo que voou para fora da sala. Investiguei o interior do cômodo e encontrei um leopardo fantasma terminando de arrancar a cabeça de um corpo. A sala estava uma bagunça. Os móveis quebrados e janelas estouradas diziam muito sobre como havia sido uma árdua batalha para que Lysandra derrotasse todos os homens mortos no chão.

Ela se transformou de volta, cuspindo sangue. Seu lindo vestido de veludo verde havia sido arruinado por todo o sangue e rasgos. As pontas de seu cabelo estavam endurecidas por sangue seco e havia uma mancha rubra em sua bochecha do qual ela não deve ter se dado conta.

— Você fez um bom trabalho com os homens no portão — ela falou como cumprimento, encostando-se por um minuto contra a lareira ornamentada. Ela tomou fôlego, olhou para todos meus ferimentos e fez uma careta para a blusa manchada de um marrom escuro, denunciando a quantidade imensa de sangue que havia sido derramado sobre e por mim. — Vimos daqui a onda sombria. Você é mesmo poderosa, se conseguiu circular a cidade inteira com sua magia.

— Onde está Aelin? — ser admirada num momento como esse não era nada motivador.

— Dois andares acima. Ela está furiosa — como se confirmasse, um grito enraivecido ecoou pelas escadas numa voz grave de Aelin dizendo:

— Dêem o fora da minha casa! Vocês estão manchando meus tapetes!

Corpos rolaram pela escadaria principal, passando pela sala em que eu e a metamorfa estávamos. Os corpos foram perfurados por agulhas de gelo ou queimados por um fogo que ainda destruía suas roupas. Seja o que o casal estivesse sentindo, raiva era a mais intensa de agora.

— Você viu a Evangeline por aí? — Lysandra perguntou numa voz preocupada. — Nos separamos quando tudo começou.

— Ela está com Blodreina — respondi com simplicidade, vendo através da janela Manon pular das costas de Abraxos e cair na muralha, começando uma luta contra cinco homens de uma vez.

— Com a sua serpente alada? — assenti. — Fazendo o quê, exatamente?

— Acertando alguns desgraçados com flechadas no coração.

O QUÊ!? — a metamorfa gritou, arregalando os olhos. — Desde quando Evangeline monta a sua serpente alada? Achei que elas aceitavam apenas uma montadora.

— Blodreina deve ter sentido o desespero de Evangeline e quis ajudar. No momento, desde que elas fiquem vivas e matem uns desgraçados, eu fico feliz que Blodreina a tenha aceitado como uma... parceira secundária.

— E Aedion? O viu?

— Na muralha sul. Ainda sendo o cretino de sempre — outro grito enfurecido de Aelin e mais corpos rolando pela escadaria. — Será que você consegue ajudar com o incêndio? Logo mais vai tomar um terço da cidade.

Os olhos da metamorfa me avaliaram, ponderativos, então ela acenou, caminhando até a janela.

— Acho que posso dar um jeito — ela disse, então pulou pela sacada e, num giro, seu corpo se transformou em um gavião de cauda branca idêntico à Rowan.

Um grito de aviso no andar de cima fez com que eu levantasse um escudo por instinto. Um corpo voou até mim, bateu contra meu escudo e quebrou o pescoço no impacto. Passei sobre seu corpo, encurralando a última dúzia de homens entre os reis de Terrasen e eu. A espada em minhas mãos se movia como uma extensão do meu corpo, girando e cortando carne como se eu não estivesse acabada.

Depois dos homens estarem caídos e Aelin se apoiar contra um aparador no corredor, me aproximei e toquei seus ombros. Sangue manchava o cabelo dourado e o vestido vermelho de outono. Sua respiração era pesada, mas seus olhos estavam centrados. Goldryn pendia de seus dedos, o rubi na ponta palpitando num brilho no mesmo ritmo que o coração de sua portadora.

— Você está bem?

— Vou ficar depois de enxotar esses ratos para fora da minha casa — ela grunhiu, lançando uma bola de fogo que passou sobre meu ombro e acertou um homem bem no peito, arremessando-o escada abaixo.

A sensação do fogo quente de Aelin era diferente do meu, tão sombrio e gélido quanto o campo incinerado que deixei para trás em frente ao portão sul.

— Vi o que você fez com os homens no portão — Aelin soprou, abrindo um sorriso cansado em seguida. — Bom trabalho.

— Onde está Elentiya?

— Com a Flora — Rowan respondeu. Meu rosto se contraiu.

Com a Flora? — repeti, incrédula. — Ela é só uma menina cuidando de um bebê.

— Mas ela não é uma garota indefesa — Aelin retrucou. — E, oficialmente, ela é a minha acompanhante nessa corte. O dever dela é me proteger. Consequentemente, proteger minha filha.

— Deixaram-nas sozinhas?

— Elas não estão desprotegidas — Aelin riu, então acenou para o corredor em frente.

Caules do tamanho de troncos de árvores, grossos e espinhentos, cobriam cada centímetro do corredor e das paredes, não deixando nem mesmo um centímetro de espaço entre eles para que alguém pudesse se esquivar entre as raízes e passar pelo corredor. Cada espinho estava embebido em um veneno escuro, que pinga sobre o carpete do corredor e corrói o tecido rapidamente.

— Flora se trancou com Elentiya e Aedlyn numa das torres e encheu as escadarias com esses caules espinhosos e cheios de venenos — Aelin riu outra vez, recuperando o fôlego enquanto olhava para o meu semblante surpreso. — Eu sempre soube que ela era talentosa, só não era instigada o bastante para mostrar a totalidade da sua magia.

— Surpreendente — murmurei, girando a espada entre os dedos. Sabendo que as três estavam seguras, me virei para Rowan. — Você devia ir ajudar com o incêndio.

— Por quê? — ele disparou preocupado.

— Já tomou boa parte do lado norte da cidade.

Vi no rosto de Rowan a forma como ele estava indeciso sobre deixar Aelin ou correr até seu dever. Sabíamos que Aelin permaneceria de pé em frente àquele corredor espinhoso e cheio de raízes como uma estátua, servindo de último escudo entre os homens até sua filha e sobrinha. Ela não iria sair dali a menos que estivesse morta — mas não havia necessidade de Rowan estar ali, não quando sua magia com água poderia resolver o problema do incêndio em poucos minutos.

Um soldado de Orynth apareceu na escada, o corpo coberto de sangue e a espada ainda pingando o liquido rubro quando se aproximou.

— O que aconteceu? — perguntei antes mesmo dele chegar até nós.

— É Fenrys — apoio a ponta da espada no chão e então me sustento nela, não conseguindo confiar nas minhas pernas trêmulas. — Ele está nas câmaras subterrâneas. Alguns homens invadiram pela rede de esgoto e estão tentando entrar. Fenrys está sozinho segurando os invasores.

— Vamos — maneei a cabeça a ele, tomando o caminho das escadas. Estendi o braço para trás, na direção de Rowan, e grunhi: — A última vez que vi Aedion ou Lorcan eles estavam no portão sul. Mande algum dos dois desgraçados para os esgotos!

Minha descida pela escada circular não passou de uma piscada. Em menos de dois minutos eu estava correndo através da correnteza, desviando de corpos mortos que eram levados pela água, boiando com os rostos enfiados no rio. O informante se perdeu em algum momento entre as câmaras, ou então não conseguiu atravessar a correnteza. Não ligo. Sozinha posso muito bem ajudá-lo a impedir que os homens de Holdwyn invadissem o castelo e terminassem de destruir tudo pelo qual Aelin lutou para conseguir.

Me ergo nos braços, puxando meu corpo ensopado para fora da água. Tilintar de espadas e grunhidos de dor ecoam por um corredor, então é até lá que vou. Fenrys está curvado sobre sua costela, afastando-se de dois inimigos feéricos conforme estuda as melhores opções para finalizá-los.

Minhas adagas os acertam, atravessando as nucas e os sufocando até a morte. Fenrys olha para mim com alívio, respira fundo, e se aproxima mancando.

— Você protegeu os muros da cidade — ele me abraça com força, beijando minha testa. — Estou tão orgulhoso.

— Preciso te levar até Yrene — falei, observando o corte em sua costela.

— Não se preocupe, não vai me matar — ele disse, e vi seu gene avançado de feérico unindo as bordas do ferimento lentamente. — Eu vou ficar melhor daqui uns segundos.

Respiro seu cheiro, por um segundo me dando ao luxo de suspirar aliviada por ele estar bem. Coloco minhas mãos sobre suas costas, mas seu corpo fica rígido sob meu toque. Seus braços, antes aliviados por eu estar bem, agora me apertam como correntes me prendendo. Seu aperto começa a doer e me sufocar, então solto um grunhido, pedindo por ar.

— Eu... eu estou bem, não precisa me abraçar tanto assim — mas ele não me ouve, continua me apertando tanto que meus braços estalam e começam a doer. — Fenrys, está me machucando!

O macho me solta de repente, mas não encontro alívio nisso. Em um segundo fui afastada dele, mas então sua adaga está erguida, a ponta pressionando minha jugular enquanto ele me olha com olhos indiferentes. Frios. Assassinos. Meu rosto se contrai por confusão, por mágoa e dor quando me dou conta de que alguém me atraiu aqui para que eu fosse morta.

— Fenrys... — sussurrei, incapaz de acreditar em tal traição. Lágrimas brotaram em meus olhos e meu peito tremeu com um soluço. — Eu... o que você está fazendo?

— Ele está fazendo o que eu quero que ele faça — uma voz disse à minha direita, sombria e cruel. Virei o rosto, então uma onda de náusea me atingiu quando encontrei a criatura parada sob a luz de uma tocha, sorrindo como um demônio. — Incrível, não?

Posso dizer que já fui assustada e assombrada por muitas coisas na minha vida. Meus dias naquelas celas em Doranelle; meu medo pavoroso de escuro; o medo de perder alguém que amo; a culpa que provavelmente vou carregar até morrer de não ter salvo minha mãe e mais um punhado de arrependimentos que iriam me apavorar por toda a eternidade — mas nada poderia ter me preparado para aquilo.

Para uma nova categoria de horror.

Sua aparência é aterrorizante. Ela é alta e tão magra que consigo ver os ossos através da pele, as costelas aparecendo sob o pequeno pedaço de pano que ela usa como blusa. Usaram algo muito afiado e com uma ponta pequena — talvez uma agulha — para desenhar uma incontável quantidade de marcas de Wyrd e magia feérica antiga sobre toda a superfície de seu corpo. Seu rosto e seus braços são tomados por tais desenhos medonhos e amaldiçoados; o nariz é pequeno e meio achatado, quase como se tivesse apenas duas pequenas fendas de respiração. Seus lábios são duas coisas secas e descarnadas, os dentes miúdos e amarelos. Seu rosto é pequeno, mas seu queixo e orelhas são pontudos. Ela não tem sobrancelhas, nem cabelo. Os dedos são longos como garras.

Mas são seus olhos, vermelhos como sangue e brilhantes como dois rubis antigos e cruéis, que me deixa apavorada de medo.

Ela sorri sem lábio, apenas uma abertura esticada servia como boca. A criatura caminha lentamente até mim, se aproximando, farejando o ar e aproveitando o cheiro do meu medo. Fenrys ainda continua sob sua influência, ainda com a faca pressionada contra meu pescoço, prestes a abrir minha garganta em meio pensamento.

— É tão bom finalmente te conhecer! — há algo anormal nela, algo perturbado. Algo em seu sorriso maníaco e nas vezes em que ela balança a cabeça, como se estivesse tentando afastar mosquitos ou vozes. — Você é uma coisinha impressionante. Pulverizou todos aqueles homens na cidade com uma fagulha do seu poder. Uau, eu queria tanto ser você.

— Quem é você, porra? — disparei, sentindo meu nojo crescer conforme ela se aproxima cada vez mais. As marcas em seu corpo ficando mais visíveis e mais grotescas. — O que caralhos é você?

— Ah, você não me reconhece? Puxa, quase me sinto decepcionada com isso — ela faz uma careta triste, passando os dedos pelo rosto como se estivesse chorando, mesmo que um sorriso odioso estivesse curvando sua boca. — Como você não consegue me reconhecer? Como não consegue reconhecer a sua família?

Há algo dentro de mim que sempre soube. Algo sombrio, uma coisa que a reconheceu no mesmo instante que a vi parada sob a luz. Como se fôssemos filhas da mesma mãe, criadas pela mesma coisa.

Criadas por Wyrd!

Pisquei devagar, sentindo todo meu corpo começar a tremer quando me dei conta de quem ela era.

O medo se enraizou no meu coração. Profundo e verdadeiro. O tipo de medo que sentia quando Maeve estava por perto.

Aleesia.

Seu nome saiu como o chiado de uma cobra por entre meus lábios, e ela sorriu com deleite quando viu o horror em meus olhos.

— Surpresa, irmãzinha. Feliz em me ver?

— Achei... achei que você estava morta.

— Ah, foi isso o que aquela puta traidora da Isla te contou? — ela parecia entediada, nada surpresa. Aleesia rodeou meu corpo, como se estivesse me avaliando. — Ela era uma vadiazinha quando tudo aconteceu. Deve ter te contado a versão dela.

— Não existe a versão dela — gritei. — Você entregou as outras irmãs. Foi sua culpa tudo o que aconteceu!

A faca de Fenrys pressionou com mais força, arrancando uma gota de sangue.

Me calei. Aleesia sorriu.

— Você é só uma vagabunda que decidiu segui-las porque parecem decente para você e seu senso moral de merda sobre o que é certo — há asco em sua voz, desprezo em seu semblante. — Você é só mais uma hipócrita que não entende o que dever e honra significam.

— Se dever e honra significa que eu deveria matar minhas irmãs e entregá-las para um desgraçado sádico como Holdwyn, então prefiro nunca saber o que essas palavras significam!

Um tapa faz meu rosto arder. Suas unhas irregulares e afiadas cortaram parte da minha bochecha quando ela me estapeou.

— Nunca mais fale dessa forma sobre meu pai — Aleesia ameaçou, com a voz baixa e ofegante. — Caso contrário, vou arrancar sua língua e fazer você comê-la.

— Está tão cega pelas mentiras dele que aceitou tudo o que ele te fez — murmurei, perto o bastante de sua clavícula para ver as linhas irregulares de cada desenho profano sobre sua pele. — Está tão cega que deixou que ele te arruinasse. Deixou que ele torturasse e usasse você.

— Eu não estou arruinada, bobinha — ela gargalha, apertando minhas bochechas com o polegar e o indicador. Sua pele tem cheiro de mofo, algo que ficou submerso em lodo por muito tempo. É nojento. — Nosso pai não me arruinou, ele me salvou. Me deu poder e me mostrou como eu posso ser temida.

— Você não é poderosa, Aleesia — minha voz saiu abafada por entre seus dedos. Ela apertou minhas bochechas mais forte. — Você é só um peão nos jogos dele. Apenas mais uma peça descartável. Você sabe disso, não sabe, Aleesia? — seus olhos estavam sombrios. Ela não sorria. Era como se minhas palavras estivessem a manipulando para acreditar nisso. — Você é descartável. Você não passa de um experimento para ele. Ele gosta de nos arruinar. Gosta de nos quebrar e transformar nos bichinhos dele. É isso o que você é: uma cadela sob a coleira dele.

— Não, você está errada — ela me soltou, afastando-se e rindo com lágrimas nos olhos. — Eu não sou descartável. Meu pai me ama. Ele me ama, ouviu? Foi por isso que ele me manteve trancada durante esses anos, ele se preocupa comigo. Ele me queria por perto, segura. Ele queria que eu ficasse com ele e não fosse um perigo de traição como as outras foram.

— É isso o que ele te diz? Que fez isso tudo por que se importa com você? — quase sinto pena dela. — Para alguém que está viva há tanto tempo, você é mesmo mais burra do que eu pensava.

Aleesia começa a murmurar palavras desordenadas, balançando a cabeça como se tentasse se livrar de alguma coisa. Ela cambaleia para trás. A mão de Fenrys baixa, mas ele ainda segura a adaga com força, ainda com aquele olhar vítreo e sob a influência da magia de Aleesia. Olho para ela, encontrando-a no fundo da galeria, batendo a cabeça contra a parede e gritando palavras que Holdwyn deve ter dito a ela, como para se convencer de que ele a amava. Lamento por ela, mas não vou deixar que ela mate Fenrys ou eu no processo.

— Fenrys — chamei baixinho, olhando para seus olhos mortos. Ele não respondeu. — Fenrys, sou eu. Você precisa reagir! Precisamos sair daqui e chamar minhas irmãs. Aleesia está viva e é louca, porra, ela vai matar todos nós!

Ainda sem reação. Fenrys ainda parecendo-se como uma estátua viva. Outra olhada em Aleesia e agora ela estava gritando com a parede, como se estivesse discutindo com alguém, apontando o dedo como se realmente acreditasse que havia alguém à sua frente, discutindo de volta.

Agarro a cintura de Fenrys e tento movê-lo — é como tentar mover uma montanha. Ele sequer sai do lugar. Ainda se mantém parado, olhando para frente como se não visse nada de fato.

Suspirei, deixando que Aleesia agora se encolhesse contra a pedra, apertando os braços ao redor dos joelhos, balançando-se para frente e para trás conforme chorava, e olhei para Fenrys. Suspirei, então murmurei:

— Se estiver me ouvindo, desculpe por isso.

Dei um tapa em seu rosto, forte o bastante para que a marca dos meus dedos começasse a aparecer na pele marrom. O macho piscou furiosamente, então se segurou em mim para não tombar quando acordou do transe em que Aleesia o colocou. Seus olhos lacrimejaram e ele me apertou contra ele, medo de verdade brilhando em seus olhos quando ele sussurrou:

— Vamos embora daqui, devagar, sem chamar a atenção dessa puta ordinária.

Demos exatos três passos antes do cabo de uma espada acertar Fenrys nas têmporas com tanta força que o macho caiu ainda segurando minha mão, ainda enroscado contra meu corpo. Cai com ele, gritando. Um rasgo feio se abriu em seu supercílio e sangue escorria pelo seu lindo rosto desacordado. O coloquei sobre meu colo e chamei por seu nome, implorando que acordasse e não me deixasse na escuridão sozinha com Aleesia e Holdwyn.

Meu pai circulou meu corpo, desdenhando da minha tentativa falha de acordar Fenrys. Ele limpou o cabo de sua espada e parou diante de mim, olhando como eu me desesperava por sentir um aperto no peito conforme a respiração de Fenrys tomava um ritmo lento.

— Se levante, Aleesia. Se recomponha — a voz dele ecoou pela câmara, assustando Aleesia, que notou sua presença e se levantou num pulo, aproximando-se conforme secava as lágrimas. — Você deixou que uma pirralha entrasse na sua cabeça e te manipulasse. Será que eu não te criei bem, minha filha?

Aleesia estava arrasada. Seus olhos demonstraram a mágoa e tristeza que sentiu por deixar seu pai decepcionado.

— Eu sinto muito, pai. Isso não vai mais se repetir — então ela olhou para mim. Anos de ódio trancados me olhando quando ela sussurrou: — Posso terminar com ela como o senhor ordenou.

— Não, não vai ser necessário — ele inclinou a cabeça e me observou com curiosidade, estudando a forma como coloquei a parte superior do meu corpo sobre Fenrys, escondendo-o do olhar de escrutínio dele. Rosnei, furiosa e territorial. — Interessante.

— Vá para o Inferno!

— Você devia ter sido uma menina educada e se rendido quando teve a chance — falou de forma suave, tranquila, como se não houvesse uma chacina acontecendo acima de nós. — Aposto que aquelas vadiazinhas traidoras contaram a você sobre minha barganha. O quão egoísta você é para não ter aceitado aquilo?

Fiquei em silêncio. As palavras dele me acertando pior e mais dolorosas do que o tapa de Aleesia.

— Porque... você sabe que isso tudo... a destruição dessa cidade... tudo isso foi culpa sua — não sou boa o bastante em esconder meus sentimentos como Isla, por isso meus olhos ficam injetados de lágrimas no mesmo instante em que suas palavras me acertaram. — Tudo isso, todas essas mortes, poderiam ter sido evitadas se você tivesse se entregado. Dei duas semanas para que você pudesse se decidir e se despedir de todos esses idiotas e mesmo assim você escolheu ser egoísta.

— Isso não se trata de ser egoísta. Não se trata de mim — grunhi. — É tudo sobre você, sobre a sua ideia ridícula de vingar aquela puta da Maeve!

— No começo, foi sim — confessou sem remorso. — Mas depois daquela chance que dei a vocês... eu não fui dissimulado. Minhas palavras tem valor, tem peso e verdades. Eu realmente deixaria Erilea para trás se você tivesse se rendido, Lorella. Mas você escolheu ser egoísta...

— Eu não sou egoísta!

Ele sorriu, como se estivesse satisfeito por me tirar do sério. Me desestabilizar.

— Isso tudo é culpa sua. Você começou isso. Nós nunca pedimos por nada disso!

— Aelin Galathynius precisa aprender que o mundo não é uma caixa de realizações dos desejos — ele disse. — E que toda ação tem uma consequência. Eles mataram minha rainha, nada mais justo do que eu tomar a rainha deles.

— Você é louco! — gritei. — Um louco sádico que merece queimar no inferno!

— Todos nós merecemos o inferno, por motivos diferentes. Eu apenas sou honesto o bastante para assumir e sucumbir às decisões que me levarão ao inferno.

— Não aja como se você tivesse a porra da razão nessa história toda! — vociferei. — Você é pior do que Maeve.

— Obrigado, eu agradeço pela comparação. Mas agora eu tenho uma rainha para matar. Aleesia — virando a cabeça para ela, ele a olhou com soberba quando falou: — Cuide para que ela não fuja. Garanta que o Lobo de Doranelle esteja aqui de refém. Ela não vai a lugar algum enquanto ele estiver em perigo — me olhando de volta, ele sorriu. — Não é?

Quando não o respondi, ele assentiu, como se não se importasse de ter ou não uma resposta vindo de mim. Antes dele começar a caminhar em direção à saída, aos corredores que levariam ao castelo, me coloquei de pé e agarrei o cabo da espada caída de Fenrys. Me coloquei entre Holdwyn e a saída, inclinando a espada.

O macho me olhou como se eu fosse patética. Uma mosca que ele poderia afastar em um tapa.

— Admiro sua confiança em achar que pode me matar estando sozinha, filha.

Rindo, deixei que ele visse puro humor confiante em meus olhos quando fogo sombrio lambeu a lâmina da espada, a prata brilhando através da camada oscilante da minha magia.

— Quem disse que eu estou sozinha?

A atenção de Holdwyn desviou-se de mim para as outras cinco figuras que saíram pela quina de uma sombra, no canto da câmara, todas agora empunhando armas brilhantes com o sangue dos guardas que haviam executado.

Como uma só, elas sorriram ao dizer:

— Olá, pai.

Magia eclodiu de todos nós.

Meu fogo sombrio, as sombras de Isla, o vento de Holdwyn e o brilho das mãos de Bellamy quando ela usou sua magia de cura para cegar temporariamente Holdwyn. Arthemis estava sobre seu corpo um segundo depois, arremessando-o contra uma parede. Selene avançou tão rápido que uma sombra sequer se formou sob seus pés quando ela se moveu. A ponta de sua adaga comprida estava a menos de dois centímetros da garganta de Holdwyn antes do braço de Selene congelar no lugar e ela piscar furiosamente.

Isla está na minha frente quando esbarro com ela, seu corpo paralisando no lugar como uma estátua viva. As outras também estão imóveis, as armas levantadas e as pernas congeladas em direção à Holdwyn e seu sorriso desprezível.

Aleesia! — Arthemis rosna à minha esquerda. Ainda sinto meu corpo, ainda estou controlando, então finjo que fui pega atrás de Isla conforme deixo que os dois se aproximem.

A irmã citada abre um sorriso. Seu braço está esticado e sua mão está aberta em nossa direção, nos controlando — mas, diferentemente de Fenrys, ela permite que elas vejam, reajam e falem. Deixa que vejam de forma impotente quando Holdwyn puxa uma faca da bainha e a balança na frente do rosto de Selene.

— Olha só o que temos aqui: toda a ninhada defeituosa — ela ri. — É mesmo um dia de sorte, pai. Destruir todas aquelas que nos traíram em um único dia. Essa guerra já está ganha.

— Você ainda continua a mesma cadela de sempre — Isla disse com raiva, olhando para o corpo da irmã coberto por marcas de magia. — Só que agora o seu exterior se parece exatamente com o que você é por dentro.

Aleesia parece magoada; verdadeiramente magoada pelas palavras de Isla.

— A mesma cadela feia de sempre — Bellamy caçoou, rindo com desdém. — Pelo amor dos deuses, você fede à gente morta. Está tão feia que dói olhar para você. Que puta mais feia você manteve ao seu lado por tanto tempo — ela olha para Holdwyn. — Agora sei porque você vivia de mal humor. Eu também teria um humor de merda se tivesse essa coisa feia do meu lado o tempo todo.

Silêncio! — Holdwyn ordenou, então estapeou o rosto de Bellamy com força. Seus olhos lacrimejaram, mas sua cabeça não virou com o tapa. Aleesia a controlava para sentir tudo. Dilden agarrou suas bochechas e a fez olhar para ele.— Você sempre foi uma vadiazinha insolente e tagarela. Eu devia ter arrancado a sua língua há muito tempo.

— É, você deveria ter feito isso, sim — Bellamy revidou com atrevimento, rindo. — Então agora tem que aturar minha tagarelice. Se está irritado pela minha falação desnecessária, isso vai piorar quando nós te pegarmos e cortarmos o seu pau fora, então vou enfiar na sua boca até que você engasgue com o próprio pau e morra com ele entalado na garganta como a puta que você é!

Por longos segundos acho que nenhuma de nós sequer respira, esperando pelo ataque brutal à Bellamy e sua língua insolente. Holdwyn ainda continua apertando as bochechas de Bellamy, ponderando sobre qual atitude tomar para ensiná-la a respeitá-lo. Conforme um sorriso asqueroso se abre nos lábios de Holdwyn, meu sangue congela.

— Se está tão interessada em me fazer engasgar no meu próprio pau, talvez você devesse experimentar antes e me dizer o que acha — terror, puro e vibrante, aparece nos olhos de Bellamy. Nos olhos de todas nós. Até mesmo Aleesia olha para ele com cautela. — De joelhos — uma ordem, não um pedido.

Bellamy preferiria morrer do que se ajoelhar, mas ela não comandava seu próprio corpo agora. Aleesia a coloca de joelhos na frente de Holdwyn em um segundo, movendo um dedo. Minha irmã se recusa a olhar para ele, aperta bem os olhos e a boca.

— Aleesia — um comando. Ele começa a tirar o cinto.

Aleesia hesita por um segundo antes de relaxar o rosto de Bellamy, deixando sua boca aberta. Ela não consegue falar, mas seus olhos giram de um lado para o outro, desesperada. Lágrimas caem por suas bochechas quando Holdwyn joga o cinto no chão e Freya começa a gritar.

Não, não faça isso! Deixe-a em paz!— ela implora, chorando como a irmã ajoelhada. — Holdwyn, por favor! Ela é a sua filha!

— Ah, não há muita diferença. Ela é só uma vadia com uma boca atrevida para foder — preciso me segurar em Isla para não cair ou vomitar, ou os dois. Minha irmã sente o aperto em sua cintura e me olha de soslaio, alívio percorrendo seu corpo quando sabe que uma de nós vai lutar. — Além disso, gosto quando choram e imploram. Deixa tudo ainda melhor.

— Você vai morrer por isso! — Arthemis vociferou do outro lado, as paredes estremecendo com o eco de sua voz furiosa. — Vou matar você por isso!

— Vocês podem enganar a si mesmas — ele olhou para Bellamy, que derramava lágrimas de pavor e desespero em silêncio. — Mas, antes de tentarem, vão ver eu destruir outra irmã de vocês.

Lanço meu braço para frente, saindo de trás de Isla e lançando uma bola de fogo escuro na direção deles. Holdwyn dá um passo para trás, erguendo o braço para se proteger do fogo — que passa por ele e seu escudo de ar, atingindo diretamente a lateral do corpo de Aleesia. A mais velha grita e cai no chão, rolando de dor quando meu fogo queima de forma impiedosa.

Bellamy solta um grito arrepiante quando deixa o controle de Aleesia e se liberta, agarrando uma adaga em sua cintura e a enfiando com força na perna de Holdwyn. O macho grunhe, soca o rosto de Bellamy e se afasta aos tropeços. Minha irmã ri no chão, se apoiando nas mãos quando limpa a boca cheia de sangue e olha para o macho.

— Ainda continuo aqui, de joelhos. Por que não vem aqui e continua o que estava tentando fazer? — há crueldade nos olhos dela. — Mas cuidado, já me disseram que eu tenho uma boca muito atrevida.

Menina desgraçada! — ele rosna, arrancando a faca de sua perna. Bellamy ri, mordendo o ar à sua frente como se estivesse mordendo um pedaço de carne.

Os olhos de Holdwyn se desviam para mim, observando minhas mãos envoltas por fogo sombrio — uma brasa agora, uma centelha de vida esperançosa depois de eu ter gasto quase toda minha reserva pulverizando os homens no portão sul. Mas eles não sabiam da intensidade do meu poder, até onde meu poço alcançava e o quanto ainda havia dentro de mim. Eu só precisava encontrar os momentos certos para usar minha magia e enfiá-la goela abaixo dos dois cretinos que eu iria matar.

Os olhos de Holdwyn me observam com curiosidade por de trás da dor da facada em sua perna.

— Você não é controlada pelos poderes de Aleesia. Por que você não é controlada pelos poderes da Aleesia?

— Wyrd concedeu poder à ela da mesma forma que concedeu a mim — apontei para a testa de Aleesia, onde a marca do Escolhido de Wyrd havia sido desenhado com uma faca sobre a pele. — Mas ao contrário da Aleesia que o tomou, meu poder foi oferecido. Dado como um presente. E Wyrd tem seus preferidos.

O olhar de todos sobem até minha testa, onde uma marca azul está brilhando. A mesma marca que o sumo sacerdote Jeremiah e Aleesia haviam desenhado em suas testas — reivindicando a si próprios como Escolhidos — brilhava em meu rosto pela permissão da magia de Wyrd.

Porque a magia me escolheu. Seja por bem ou por mal, eu fui escolhida como o receptáculo desse poder. De um poder profundo, antigo e perverso, algo de diversos mundos que se fundiu numa coisa só. Uma magia perigosa, cruel e incontrolável.

E minha.

Holdwyn observa, incrédulo, conforme a marca brilha de forma incansável sobre minha pele, mostrando a todos eles quem eu sou. O que eu sou. Uma Escolhida. Como Aelin é. Como Aelin foi. Como eu e ela somos. Não por escolha nossa, não por atrevimento ao passar por cima das tradições de Wyrd ou suas escolhas — mas porque fomos selecionadas a isso, a grandeza. A realização de grandes coisas.

Me abaixei e peguei a espada de Fenrys no chão, abrindo um sorriso quando me aproximei. Selene abriu caminho para mim e abaixou a cabeça, desenhando a marca sobre sua testa com os dedos. Não sabia quase nada sobre minha irmã caçula, mas descobrir que ela era religiosa e seguidora de Wyrd não era uma das coisas mais improváveis de se descobrir sobre ela.

Sorri para a caçula, colocando a mão em seu ombro e o apertando. Ela sorriu de volta, olhos marejados, e baixou a cabeça.

Virando-me para os dois outros integrantes da nossa família, apoiei a espada no ombro e falei, sorridente:

— O que acham de lidarem com o velhote do nosso pai e eu lido com a vadia feia da nossa irmã? — perguntei, apontando para eles. Aleesia grunhiu com raiva, mas Holdwyn olhou ao redor, procurando uma saída. — Você escapou da morte uma vez, seu desgraçado. Não vou cometer o mesmo erro duas vezes.

Foi Bellamy quem atacou primeiro, girando suas cimitarras em direção a Holdwyn com tanta força que ela o derrubou no chão. O macho teve que se arrastar para sair do alcance dos pés de Arthemis.

Aleesia tentou me controlar. Suas mãos desesperadas abrindo e se fechando na minha frente, tentando me fazer parar de andar até ela. Ri, apreciando seu medo. Às minhas costas, Bellamy provocava Holdwyn sobre alguma outra coisa com formato fálico que ela enfiaria numa parte dele onde o sol não bate.

— Você devia ter morrido como na história de Isla — sussurrei, deixando que ela fosse cada vez mais para o fundo da câmara subterrânea. Deixando-a sem saída. Girei a espada nas mãos. — Você deveria ter entrado naquela caverna e ter sido devorada pelas aranhas estígias.

— As aranhas eram minhas amigas — Aleesia falou, quase como uma garotinha assustada. — Elas cuidaram de mim depois que o papai me deixou sob os cuidados delas. Elas me deram o poder de controlar as pessoas e o sangue e...

— Eu não estou interessada na sua droga de vida — cortei-a. Seus olhos marejaram. — Estou interessada em salvar minhas irmãs.

Nós somos irmãs!

Olhei para ela uma última vez, sentindo pena dela. Sentindo pena por ter sido tão destruída mentalmente por Holdwyn que ela sequer sabia o que era verdade, mentira, ou apenas enganação de todos esses anos. Apenas uma triste e sôfrega psicose em que ela acreditava como a sua realidade.

— A morte é uma piedade para alguém como você — falei, jogando a espada longe e me contentando com as unhas de ferro. — Eu vou tentar ser rápida. Por sermos irmãs.

Aleesia viu que eu não hesitaria, que ela não encontraria piedade. Suas mãos com dedos longos alcançaram uma faca escondida em sua bota, então ela disparou — ágil e mortal como uma víbora.

Recuei, desviando de cada golpe da letal lâmina prateada contra meu pescoço, contra o rosto ou minha barriga. Mais e mais para trás, até meu pé esbarrar na beirada de uma alcova por onde uma correnteza de água trespassava sob os pilares que mantinham esse lugar de pé.

Por cada ataque que eu tentava contra Aleesia, ela revidava com o dobro de força e chances, acertando meu corpo com pequenos rasgos. Ela ainda abria as mãos vez ou outra, como se não tivesse desistido de tentar me controlar — o que ela não iria, mas Aleesia era tão mortal com sua faca de combate como em sua magia controladora de sangue. Aleesia fez parte do primeiro grupo de filhas a ser treinada por Holdwyn. Era antiga e habilidosa, com dezenas de anos de aprendizado, por isso, não era surpresa que eu estivesse apanhando da mais velha.

Estoquei com as unhas, avançando, e Aleesia virou para o lado, só para jogar a faca de uma mão a outra e estendê-la, acertando meu pescoço. Sangue aqueceu a pele do meu pescoço, se acumulando na gola da blusa em meus ombros. Meu pé atingiu seu estômago e ela cambaleou. Aleesia ergueu a faca ensanguentada até o rosto e lambeu a prata, sorrindo como se estivesse se deliciando pelo sabor do meu sangue. Enojada, pressionei os dedos contra o ferimento abaixo da minha orelha, a fim de que a cura rápida em meu sangue fizesse algum efeito em que o sangramento fosse encerrado.

— É interessante o sabor que o seu sangue tem — nós duas circulamos o corpo uma da outra, atentas a quem desse o primeiro passo. — Por todo esse tempo eu fui alimentada com sangue. Diversos tipos de sangue. Particularmente sempre gostei de sangue feérico, mas diziam que isso me tornava meio canibal. Depois, me viciei em sangue de bruxa. Há algo diferente naquela coisinha azul — ela sorriu, olhando de soslaio para onde Freya estava, ocupada demais lutando ao lado das outras irmãs para tentar acabar com Holdwyn. O olhar de Aleesia se voltou para mim, lambendo a faca outra vez. — Mas agora, depois de provar a fusão das duas raças... vou fazer com que nosso pai te prenda e então vou me alimentar de você pelo resto da sua imprestável vida.

Avancei nela, deixando que minha raiva me consumisse. Aleesia desviou do golpe, mas passei sob seus braços e deslizei o pé no chão, fazendo-a tropeçar. Minha palma se encontrou com o ombro dela e então a empurrei, prendendo-a no chão, chocando sua cabeça nas pedras úmidas das galerias. A mulher piscou, aturdida, em seguida seus braços empurraram meus dedos, descendo violentamente em direção ao seu rosto. Num movimento ela estava de pé outra vez, segurando duas facas de luta agora.

A guerreira fez uma finta para a esquerda e eu a golpeei pela direita, minhas unhas passando sobre sua cabeça e sulcando a pedra de uma pilastra quando Aleesia se abaixou. Grunhi de ódio, me virando para Aleesia e interceptando seu ataque com uma das facas. Ela sorriu, apertando o cabo e avançando com a lâmina apontada para meu olho. Meus dedos se fecharam diretamente sobre a lâmina por puro instinto. Sangue roxo escorreu da minha palma fechada ao redor da lâmina quando olhei para Aleesia e sorri, apertando a lâmina até que se partisse em três pedaços em minha mão.

Aleesia tentou me acertar com a outra faca, desesperada e surpresa, mas eu a acertei com o joelho no estômago, arremessando seu corpo contra uma pilastra. A coluna de pedra se agitou com o impacto, fazendo uma rachadura no teto. De pilastra em pilastra Aleesia se escorou, escondendo-se e usando-as como escudo para minhas garras e meu ódio desenfreado. Sua intenção de passar a direita por uma lacuna foi interceptada por mim, que afundei as unhas em sua coxa, fazendo-a gritar.

Uma flecha veio de uma das minhas irmãs, acertando-a na outra perna. Aleesia gritou quando caiu, rastejando-se para trás. Seus olhos vermelhos brilhavam com lágrimas presas. Não consegui sentir pena dela, mesmo que eu soubesse que ela havia sido uma experiência de Holdwyn tanto quanto nós também fomos. Mas algo na Aleesia era diferente. Sua compaixão por ele, sua subserviência sem nunca contestar ou o fato de que sua mente estava tão enraizada dentro das mentiras do nosso pai que nada além da morte poderia salvá-la.

Lágrimas pingavam do rosto de Aleesia quando ela pressionou uma mão na perna perfurada pela flecha, ainda tentando se arrastar inutilmente para a alcova que carregava a correnteza para fora dos esgotos.

— Isso dói! — exclamou, lamentando com a voz de uma garotinha.

— Que pena — sibilei, me aproximando. Minhas unhas pingavam com seu sangue, o cheiro tão pútrido quanto seu corpo.

Ódio, antigo e fervoroso, tomou o rosto de Aleesia quando ela não tentou se arrastar outra vez para a água. Estava na beira agora. Seu corpo sem vida seria levado pela correnteza e sumiria para sempre. Holdwyn, perto, caiu de joelhos. Sua espada era metal retorcido e quebrado em milhões de pedaços espalhado pelo chão da galeria subterrânea. Ele fora encurralado entre uma pilastra e o poder de Isla, suas sombras avançando e tentando furar o escudo invisível de ar que ele conjurou ao seu redor. Sangue vazava de sua boca e uma delas tinha acertado um corte profundo em seu rosto, cortado parte do tapa olho e deixando-o exposto, permitindo que qualquer uma visse o vazio em sua cavidade ocular. Como se aquela falta de sua órbita visual representasse o interior de sua alma, a janela da sua alma: algo tão sombrio quanto seu coração.

Puxei a adaga da barra da minha calça, pronta para oferecer à ela o golpe final, libertando sua alma desse corpo tão torturado e fragilizado por Holdwyn. Ambos sucumbiriam juntos. Teriam seus finais lado a lado, como a dupla cruel que sempre foram. Ela viu a faca em minha mão, a ponta curva, a determinação nos meus olhos, e olhou de volta para mim, sorrindo como se estivesse preparada.

E ela estava preparada — porque quando eu avancei, abrindo a boca em um grito raivoso e pronta para enfiar aquela faca em seu coração, ela também avançou, jogando-se em minha direção e esticando a mão com aquela maldita faca remanescente entre os dedos.

Morreríamos juntas. Um monstro esfaqueando outro monstro no coração. Aleesia e eu, ambas profanas, apunhalaríamos uma a outra no coração e isso terminaria assim, aqui e agora — ou foi isso o que eu pensei.

Um ombro se chocou contra o meu, me lançando dentro da alcova de água. Meu corpo foi arremessado dentro da correnteza e tudo o que consegui ver antes da água cobrir minha cabeça foi o corpo de Selene receber a faca no coração destinada a mim.

Meu corpo atingiu a água em um baque pesado, afundando, e gritei dentro daquela água maldita e fria quando fiquei submersa. Gritei e gritei e gritei para a escuridão, soando mais alto do que o rugido da correnteza ao redor. Bolhas subiram pelo meu rosto, todo o ar dos meus pulmões saindo com fúria quando bati os pés no fundo da alcova e me lancei para cima em um nado desesperado.

Meus dedos alcançaram a borda da alcova e eu me agarrei na pedra até minhas unhas se quebrarem e sangrarem, sendo içada por Isla. Minha irmã me agarrou pelos braços, me puxando contra a correnteza. Um corpo disparou até a água, e tudo o que pudemos fazer foi observar quando Holdwyn abraçou a cintura de Aleesia e os jogou para dentro da correnteza — os dois sumindo, mortalmente feridos mas ainda vivos, entre as águas que desaguavam no Florine.

Quando Isla me tirou da água, apertando meu ombro com força, eu sabia. Antes de erguer os olhos e olhar adiante, eu sabia o que eu encontraria — por isso, enquanto luto para respirar e cuspir água, mantenho-me de joelhos, apoiando as mãos no chão, e me nego a erguer o rosto para encontrar aquilo que eu não poderia mudar.

Foi o choro de Arthemis que ouvi primeiro. Algo do qual jamais me esqueceria. Seu choro era um som profundo, mais terrível do que a lâmina de uma espada dilacerando carne. Uma coisa profundamente machucado. Um som que arrepiou minha alma.

A guerreira já havia enfrentado inúmeras batalhas ao longo de sua vida, destruído linhas de guerra, conquistado cidades, duelado com centenas de homens de uma vez e arrancado membros usando somente a força dos próprios punhos. Mas um coração partido, mais uma morte, foi a pior dor que a assolou depois de perder Nyra. A única das dores que a faria cair de joelhos, derrotada e vulnerável como nunca esteve antes, e chorar como se sua vida estivesse sendo tirada.

Isla me ajuda a levantar. Ela já está chorando. Seus dedos ao redor do meu braço eram frios e rígidos, e ela me apertou forte quando olhou para frente. Seu rosto ficou mais pálido, os lábios tremeram, e então ela me puxou com ela para onde Selene estava caída com uma faca no coração.

Quero fechar os olhos, correr do que vejo, mas meus pés e o aperto de Isla me carregam para a frente. Caio de joelhos ao lado de Selene, aninhada nos braços de Arthemis.

O olho da minha irmã está aberto e ela procura os meus. Eu me forço a desviar o olhar do ferimento aberto em seu peito.

Maldita Aleesia, vou acabar com ela por causa disso. Vou destruí-la.

Pego a mão da minha irmã caçula, uma coisa pequena e fria. Tento dizer o nome dela, mas minha voz desaparece. Arthemis chora, implora para que ela resista e não morra. Sua voz chacoalhando todo esse lugar como se estivesse perto de fazê-la desabar com a ira de sua voz.

Isla está de pé atrás de mim, e sinto sua mão cair em meus ombros e apertá-los. Uma bolha de sangue se forma no canto da boca de Selene e estoura.

— Sel... — encontro minha voz, baixa e incrédula. Bellamy e Freya soluçam ajoelhadas ao lado do corpo de Arthemis. As mãos de Bell ficam encharcadas de sangue quando ela pressiona as palmas sobre o ferimento e tenta estancar o sangue. — Fique comigo. Não me deixe, não ouse. Pense em todas as coisas que você precisa viver. Pense... pense no festival de pintura, nas artes que você pode fazer. Eu mesma a levarei até Adarlan e apresentarei você aos artistas. Selene, ela é a minha irmã, é isso o que vou dizer. E vão te tratar bem, como você merece, porque vou me assegurar disso. E então... e então, minha adorável irmã, todos aqueles lordes imprestáveis farão filas e irão brigar uns com os outros pelas suas obras de arte. Todo mundo vai saber quem você é. A minha irmã. Minha irmãzinha.

Há algo sonhador em sua expressão, mesmo com a dor e o sangue vazando de sua boca. Ela parece em paz, parece contente e esperançosa com tudo o que lhe espera pela frente. Seus dedos apertam os meus com a pouca força que lhe resta, então ela abre a boca e meu coração é despedaçado quando ela tenta dizer meu nome.

Lore... — a voz é algo que nunca ouvi, como se um animal selvagem estivesse aprendendo a falar. Todas estão chocadas, chorando ainda mais quando ela diz outra palavra: — D-dói.

— Eu vou dar um jeito. EU VOU DAR UM JEITO! — gritei, pressionando minhas mãos em seu peito, em cima das mãos de Bellamy. O sangue não parava de sair, pelos deuses, não parava de sair e eu... — Eu vou dar um jeito, Sel, eu vou. Juro que vou.

Me desculpe. Me desculpe. Me desculpe — Bellamy está murmurando em choque, ainda tentando estancar o sangramento com sua magia. Seu rosto está inundado por lágrimas e desespero conforme continua a implorar: — Me desculpe, Sel, me perdoe. Me perdoe.

— Eu vou dar um jeito, eu vou — continuei murmurando, olhando no olho azul claro de Selene. Ela soluçou e mais sangue vazou de sua boca. Arthemis gritou mais alto. Todo o castelo ouviu. — Fique comigo, nós estamos com você. Todas nós estamos com você. Vou dar um jeito nisso. Eu sou a sua irmã, vou dar um jeito.

Mas não havia jeito, e Selene estava morrendo. Arthemis a embalava em seu colo, balançando-a para frente e para trás como se ninasse um bebê. Art enfiou o rosto no pescoço de Selene e não se importou em ser afogada pelo sangue da irmã conforme gritava que a amava.

— É muito sangue... muito sangue, me desculpe, me desculpe — Bell continuou a sussurrar em choque. — Eu não sei o que fazer. Me desculpe, Sel, eu te amo. Me perdoe.

— Selene — Freya a sacudiu suavemente, não querendo machucá-la. — Selene!

O olho azul afetuoso de Selene encontra os meus, e, por um momento, acho que ela vai ficar bem. Há tanta vida ali... tanta Selene. Tanta coisa dela que ainda não sei, que ainda não tive a oportunidade de perguntar. Não sei sua cor favorita nem o que mais gosta de comer. Não sei se prefere saias ou calças ou se prefere o nascer do que o pôr do sol. Não sei se ela gosta de livros ou de música e teatro; não sei se ela prefere doce à salgado. Não sei nada sobre ela, nada, e ela esta morrendo.

Por uma única batida do coração, ela olha para mim — para dentro de mim, como se conseguisse ver a minha alma, e sorri. Seus dedos apertam os meus uma última vez, como se tivesse fé em mim. Sua boca se abre outra vez, apenas um espaço que mostra a língua mutilada, então sussurra:

Irmãs...

— Sim, nós somos suas irmãs e vamos dar um jeito nisso — ela me olhou e riu como se soubesse que o que eu estava falando era apenas uma doce mentira.

Linda. Selene era a mais linda de nós, mesmo com a cicatriz no rosto e o outro olho branco. Ela sempre foi a mais destemida de nós, a mais corajosa e doce. A irmã que sempre estava ali para preencher o vazio da solidão, mesmo em silêncio; sempre a espreita para que nenhuma de nós se sentisse verdadeiramente sozinha. Ela sempre se dava o trabalho de nos oferecer um pãozinho doce de manhã e sorria para nós antes de dormir, como se tivesse a certeza de que estaria viva no outro dia para oferecer outro pãozinho doce. Outro sorriso doce.

E eu soube... eu soube que quando seus olhos se fecharam, eles não se abririam outra vez.

Porque, como o lindo orvalho da manhã parte a cada nascer do sol, Selene parte como ele.

───── ⊹⊱✫⊰⊹ ─────

Quando Selene morreu, o Sol ficou frio.

Quando Selene morreu, houve um silêncio diferente que nenhuma de nós havia ouvido antes.

Era o silêncio da falta da presença dela por perto.

Era o silêncio de Bellamy sem suas provocações com alguém que a responderia à altura; era a falta da companhia de Selene que retrucava palavrões ainda mais chulos para a irmã atrevida. Era o silêncio de Bellamy sobre não ter alguém com quem reclamar sobre o tempo ruim, uma pintura feia ou um homem ainda mais feio.

Era o silêncio de Freya para discutir táticas de luta, criações gastronômicas, roupas de gala e a companhia pacífica e apaziguadora quando Bellamy e eu brigávamos. Era a falta de ter uma irmã para sair de manhã e comprar os pãezinhos doces, uma amiga nas tardes chuvosas e na parceria de treino.

Era o silêncio de Isla por não estar ao lado de Selene, aproveitando sua presença tranquila ao observarem o pôr do sol. Era o silêncio da mais velha de nós em não ter protegido a mais nova de nós. Era o arrependimento por palavras não ditas e nunca conhecidas.

Era o meu silêncio. O silêncio do arrependimento por ter falhado com ela. Por não ter feito mais. Por tê-la deixado morrer sem saber qual era sua cor favorita. Era meu silêncio por nunca ter cantado para ela. Por não ter mantido-a debaixo da minha asa e protegê-la como Manon me protege. Era o arrependimento por não tê-la chamado mais vezes de irmã, com a voz orgulhosa. Era o arrependimento por não ter voado com ela sobre Blodreina, por não tê-las apresentado. Era o arrependimento de não ter vivido com Selene algumas das experiências que tive com Flora — como invadir a cozinha de madrugada e dividir uma jarra de leite e biscoito, contando à ela como eu gostaria de acompanhá-la na exposição de pinturas de Adarlan. Era o arrependimento de não tê-la visto pintar. De expressar suas opiniões e vontades como uma menina livre. Era arrependimento, cruel e incansável, que me consumiu durante todo o tempo em que eu e minhas irmãs velamos seu corpo nas catacumbas de Aelin.

E havia o silêncio de Arthemis. Aquele era ruim.

Era cru, de um jeito diferente. Um jeito monstruoso, cruel, antigo e profundo. Um silêncio que ninguém nunca esqueceria.

Em Arthemis, o silêncio queimava por ter perdido outra filha bem debaixo de suas mãos.

Ela não passava de uma casca vazia um dia depois de termos queimado o corpo de Arthemis num barco que enviamos Florine abaixo. Nós cinco observamos em um silêncio fúnebre conforme Arthemis ascendeu a ponta de sua flecha embebida em óleo e a lançou, ascendendo a cabine do barco onde o corpo sem vida de Selene fora posto.

Enquanto observamos o corpo de Selene ser tomado pelas chamas, todas nós choramos. Todas nós entendemos que ela nunca mais voltaria. Que seus sorrisos amáveis e suas frágeis e roucas gargalhadas nunca mais estariam entre nós.

No castelo, quando nós cinco entramos pela porta da frente, haviam pares de olhos fissurados em nós. Com compaixão, claro, mas era algo a mais do que pena — era medo. Medo do que nós poderíamos fazer agora. Como estávamos destruídas e como iríamos destruir o mundo pelo o que foi feito com Selene.

Havia poucas de nós agora, e aquele vazio sem a presença de Selene sempre seria sentida. Aquela fagulha jovem que nos unia para lutar, a mesma fagulha de vida que fez as outras irmãs se rebelarem contra Holdwyn — e ele havia matado-a. Aleesia havia enfiado uma faca no seu coração.

Não houve cumplicidade em nenhuma de nós quando nos reunimos no meu quarto e cada uma se jogou num lugar. Bellamy estava em choque e ainda sussurrava pedidos de desculpas. Isla e Freya não paravam de chorar e Arthemis estava perdida num limbo de vazio que eu sabia que nada arrancaria sua alma de lá outra vez.

E havia eu. O motivo de Selene ter sido morta.

Olhando para minhas irmãs devastadas, eu soube o que tinha que fazer.

Não havia nem uma gota de medo em meu coração quando, uma semana depois, enquanto Fenrys e todo o castelo estavam dormindo no meio da madrugada, alcancei um pedaço de papel e escrevi duas cartas. Uma delas foi solta e enviada por um pássaro mensageiro.

E a segunda... a segunda foi deixada sobre a mesa de um quarto específico com um pedaço do cabelo de Selene que ficou preso nos meus dedos naquele dia.

Conforme olhei uma última vez para o macho dormindo tão profundamente na cama, memorizei seu lindo rosto quando sussurrei que o amava e deixei o quarto, cobrindo minha cabeça com o capuz. Se alguém pudesse me ver agora, diria que estou com medo e que o medo torna as pessoas estúpidas — mas a coragem faz a mesma coisa.

Não deixei que o medo me sufocasse quando desci as escadas do castelo. Não deixei que o medo me paralizasse quando vi Holdwyn e poucos homens me esperando na praça da cidade, segurando grilhões de ferro com eles. Não deixei o medo me tomar conforme fui apreendida pelas correntes, arrancando minha magia. Não deixei que o medo me engolisse quando aceitei ser guiada em direção ao navio que nos esperava no Florine. Não sabia que era uma lutadora antes de tudo isso. Agora eu sabia que estava pronta para lidar com o meu passado e faria qualquer coisa pelas pessoas que amava. Ninguém mais iria morrer por mim. Nunca mais. Essa guerra acaba agora.

Antes de ser enfiada numa cela sob o deque do navio, respirei ar puro uma última vez e olhei para o castelo com lágrimas nos olhos.

Meu lar ficaria bem. Minha família ficaria segura. E tudo aquilo pelo o que lutei acabaria aqui e comigo.

Tudo aquilo acabaria comigo.

Com a minha morte. 

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