Drão

By dinamogn

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Quem poderá fazer aquele amor morrer, se o amor é feito um grão? Morre e nasce trigo - vive e morre pão. More

I - Prólogo: Ela e Eu
II - Drão
IV - Saudosismo
V - Atrás da Porta
VI - A Rita
VII - Flores (Sonho Épico)
VIII - Maior Abandonado
IX - Acabou Chorare
X - Deixo
XI - Mania de Você
XII - Outra Noite Que Se Vai
XIII - He Can Only Hold Her
XIV - Sublime
XV - Espumas ao Vento
XVI - Carnalismo
XVII - Here, There and Everywhere
XVIII - My Valentine
XIX - Dona da Minha Cabeça
XX - Índigo Blue.
XXI - Azul
Carta de Amor

III - Não Vou Deixar

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By dinamogn




Primeiro: A sensação é alucinante.

Menos de uma semana, ambos os capítulos de Drão atingiram, separadamente, mil visualizações cada. Cada leitura, releitura, nova leitura e investidura de tempo nessa história que eu venho semeando aqui com tanto carinho pra mim, é lindo.

Eu tomei algum tempo para ler cada mensagem bonita que li sobre o fim de Doces Bárbaros (e ainda leio, sou uma só e tenho certos problemas com mensagens rs), e pensei... meu Deus, como posso produzir algo melhor que isso? Algo que atenda bem quem lê, que atinja todas as expectativas... que seja, realmente, tão bom ou melhor quanto Doces Bárbaros?

Em meio a essa epifania de pensamentos, eu comecei a esboçar qualquer coisa que fugisse do esperado. Tipo, atirei para todos os lados. Mil plots, e todos, já pareciam ser contados.

Não dá pra inventar mais nada, tudo já estava feito, pensei. E seria pavoroso para mim criar mais do mesmo, atingindo comparações incomparáveis, e uma autossabotagemn sorrateira. Esse negócio de básico, modesto, métrico e comum não é comigo.

Tomei meu tempo, fiz um planejamento, tive ideias — debati muitas ideias com as minhas amigas do Deep e com a Giulia de Alma Barroca e Resposta ao Tempo que são simplesmente as mentes mais insanas que conheço, e bem... saiu alguma coisa.

E aí, refletindo sobre o que eu fazia, como fazia e como prometi fazer, na minha calmaria toda... eis-me Drão: e iniciei os escritos de Drão no mesmo dia que postei o último de DB.

Para mim, parecia a coisa mais óbvia do mundo, no grau de instabilidade do nosso casal real da Bahia que o divórcio era consequência. Eu só precisei exercitar o pensamento, mostrar para algumas colegas, discutir mais um pouco. Até porque a história deles sempre esteve pronta. Sempre foi óbvia, e linda.

JURAVA QUE IA SER MUITO MAIS RETALIADA! Mas, aparentemente, estamos na mesma página.

Espero que entendam, gostem, e tenham certa paciência. A meta é cumprir com as atualizações semanais, como de praxe, mas tudo é possível.
Tudo no fim vale a pena.

Boa leitura!





✯✯✯✯✯




Não vou deixar você esculachar com a nossa história. É muito amor, é muita luta, é muito gozo, é muita dor e muita glória.

(...) Apesar de você dizer que acabou — que o sonho não tem mais cor... eu grito e repito, eu não vou.

— Não Vou Deixar, Composição de Caetano Veloso.


✯✯✯✯✯


Despertei sob vibrações do telefone. Não era o despertador – quiçá lembrei de ativá-lo pela noite passada. Esqueci de fazer muitas, muitas coisas na noite passada.


Era a segunda ligação do dia de Narciso Nero, de pronto, me despertando em meio ao breu inebriante do meu largo quarto, da larga cama, do frio espaço.


Assustada com o relógio, que quase marcavam 8 da manhã de sexta, cocei os olhos e retornei a ligação, de forma imediata. De forma curiosa.


— Bom dia, seu Narciso. - dizia, sonolenta, apertada em meio aos lençóis.


Te acordei, minha filha? – soou o mais velho, como se preocupasse com o incômodo possivelmente causado.


— Não, não, de forma alguma. Pode falar.


Lembrei que as crianças entraram de férias nessa semana, e estava aqui pensando em levar eles dois para passear. Sei que não combinei nada com você antes, que eles tem uma rotina... mas tô morrendo de saudades dos meus netos.


— Que isso! O senhor sabe que não precisa combinar, os meninos são loucos pelo senhor. E o ócio está acabando com eles... Qualquer dia desses, vão revirar a casa de ponta-cabeça. — rimos no telefone, descontraídos. — O Alexandre vai levar o Caetano no futebol, e quando voltar, eu peço pra ele deixar os meninos na sua casa. Tudo bem por você?


— Perfeito, filha. Ah, eu te comprei uma coisa. Segunda te mostro.


— Uma coisa, seu Narciso? – respondi, sem entender muito bem o que o homem propunha.


— É, uma lembrança. Seu aniversário tá chegando, achei sua cara. Tu vai gostar. Só... me tire uma dúvida, filha. Alexandre está por aí, hoje, é? Ele me disse que ia na sua casa ontem. — respondeu, sugestivo. – Você tinha que ver a alegria que deixou ele quando você mandou mensagem.


Alexandre ainda está na minha casa? Ou escapou, antes que eu acordasse, como um gatuno?


Não sei. Nas últimas semanas... vínhamos nos estranhando. Nossa relação andava atípica, fria, meramente mau humorada.


Algo haver com algumas mensagens que ele, por infortúnio, havia lido no meu telefone durante uma de suas visitas ao meu escritório. Duas ou três mensagens de Mathias, um dos engenheiros da Nero Gouveia que tive o desagrado de tentar compartilhar um negroni e um beijo qualquer num barzinho, meramente sem sucesso.


A verdade é que desde a separação de fato... eu não consegui ter outro homem. Falo de sexo.


Já é inoportuno ser uma mãe solteira com dois filhos, e ainda por cima mais inoportuno ainda viver com o ex na espreita, esperando o primeiro momento de fraqueza para atacar, pedindo para reatar, pedindo para que tudo retorne de maneira perfeitamente imperfeita.


E um ex como Alexandre... colocava todas as pretensas concorrências no chinelo. Ninguém cheirava, ninguém dançava, ninguém beijava como ele. Só ele.


Certo dia, eu encarei ele visualizando o visor do telefone, e senti de longe o amargo das retinas que sentiam algo que cheirava mal, muito mal para ele.


Eram todas as sensações do mundo, travadas na garganta. Travadas na hipótese de ser uma coisa que o tirasse de campo, definitivamente.


Resultado disso: De maneira ignorada, ele manteve o tom de conversa, como se nada tivesse acontecido. De maneira ignorante... Ele demitiu o bonitão de 30 e poucos anos, como se fosse o dono da razão, de certo.


Brigamos, de uma maneira bem, bem feia, na sede. Acho que os nossos gritos poderiam acender todas as luzes da cidade de Salvador e Lauro de Freitas. E depois, fingimos que a briga não ocorreu. Ignoramos veemente as palavras jogadas. Não discutimos esse pós, e conhecendo eu, e ele... Não iríamos discutir isso mesmo.


— Seu Narciso...


Eu preferia quando você me chamava de meu sogro. — sugeriu o mais velho pelo telefone. — Até quando vocês vão ficar nessa, hein?


— Seu Narciso... o senhor sabe que essa não cola mais comigo... Eu e o Alexandre somos amigos, pais, e só. Já era.


— Giovanna, não creio que você tenha ficado assim tão contagiada com  essa onda de divórcios na família a ponto de dizer que você e Alexandre simplesmente... não tem volta. Não entra na minha cabeça uma conversa dessas, minha filha.  — respondeu, com certo sarcasmo na fala.


— O senhor sabe muito bem como o Alexandre pode ser...


Temperamental? Cabeça quente? Estressado? Dono da razão? Sei. Sou pai dele há 48  anos. – disse Narciso. – E ele não é tão diferente de mim.


Eu também sou assim. – disse, torcendo meus lábios, doendo-me admitir isso. – E a gente nunca está disposto a dar o braço a  torcer. Sabe como a gente funciona, é injusto viver tentando uma coisa que tá fadada ao... fracasso


Amar é fracasso desde quando, Giovanna? – Houve um silêncio tibetano na linha telefônica. – Foi o que pensei. Ele pode ser isso tudo, você pode ser isso tudo. Mas ele também é louco, devoto, apaixonado por você. É a única coisa, fora os garotos, que move ele. Que anima... estimula. É esse amor torto de vocês dois. – descrevia Narciso, enquanto eu, impaciente e pensativa, andava pelo quarto, largada, observando a vista para o mar.


Garota, você sabe que minha dívida contigo é vitalícia. Te quero um bem tremendo. Você me trouxe meu filho de volta, me trouxe a alegria de ser avô. Faça uma promessa pra esse velho que gosta de você como se você fosse a filha que ele nunca teve... e não me negue isso.


Respirei fundo. Decidi acatar. Diga, vovô Naná. - respondi, rindo.


Se deem uma chance de tentar. Vocês nunca tentaram, nem com Bárbara. Se não der... bola pra frente. Não viva isso de amor frustrado entalado no pensamento, minha filha. Olhe o que aconteceu comigo e com Linda. – houve um silêncio na linha.


Um silêncio atordoante, que me petrificou em meio ao ambiente. – Não façam isso com vocês mesmos. Pense nisso com carinho, Giovanna.


Penso.


Acho bom. Avise aos meninos da saída depois do almoço, tá?


— Aviso sim! Bom dia, seu Narciso.


E desliguei a ligação. Levou meus planos, meus pobres enganos, meus raciocínios – e de quebra, me deixou muda e atordoada com o que havia me pedido.


Eram 8 da manhã. Eu não ia racionalizar tudo que o meu sogro havia dito. Pelo menos não agora.


Amarrei meus cabelos e me dirigi até a cozinha. Conseguia escutar as falas empolgadas de Ana Bárbara a milhas de distância. A garota era falante — um prodígio nesse aspecto, e ter um pai graduado em letras com um treinamento quase que militar no que consta métrica e conhecimento gramatical, a fez ter uma disposição vocabular semelhante a de um vereador, ou de um golpista.


João Caetano, idem. Ressalvado que ele era menos falante, mais mau humorado e bem, mais poucas ideias do que ela; nessas discordâncias, e na plena incompatibilidade de gênios dos menores... o engalfinhamento solidário era recorrente naquela casa, apesar do amor fraterno bem, bem escancarado.


— Mainha! - disse a mais nova ao ver a minha entrada sútil dotada de uma ressaca moral nada colaborativa, veio, correndo até os meus braços, deixando inúmeros beijos. — Painho fez tapioca! E o Cacá cortou os morangos com o vovô.


Ok. Fiz a contagem. Vovô, Cacá, Babusca na mesa. E painho? Contei todos os presentes, realmente?


— E você fez o quê, hein, Babusca? — disse, tomando a garota num abraço apertado, e dando beijos no seu rostinho, ainda amassado do sono.


— Nada. Eu só olhei tudo. — o gênio cômico da garota falante me quebrava, sempre.


Bom dia, Leãozinho. — disse, deixando um beijo no topo da cabeça de João Caetano, já vestido nas roupas da escolinha de futebol, tão lento e mal humorado pela manhã como sua mãe.


Bom dia, minha mãe.


— Isso são horas, Giovanna? - bateu o velho nos ponteiros do relógio Casio milenar, indicando que passavam das 8h.


— Paizinho, sextou. — disse, deixando minha dose de afetividade paterna ali, no rosto do meu criador. — É dia de home office, e depois do almoço, o Narciso vem pegar os meninos para levar para o zoológico, shopping, praia, não sei... só sei que nada poderia estar mais sob controle do que está agora.


— Eu sei. Acordei 7h40 com seu filho reclamando da alegria matinal da sua filha no meu quarto. — respondeu o mais velho, apertando meu antebraço de leve. — Sorte foi o seu ex-marido ter acordado cedo e preparado o café. Homem santo.


— Santo... e eu devo ter sido expulsa do inferno, não é? – brinquei, com o semblante exausto.


Catei um dos morangos cortados por Caetano com muito esmero: Azedos, certamente estavam fora da estação. Voltei meu raciocínio, me parecia mais importante no momento. – A verdade, seu Osório, é que nós dois somos péssimos exemplos para esses dois.


— Pra variar, eu não entendo quase nada. — o mais velho deu de ombros.


— E falando em mal exemplo, cadê o Alexandre? Ele... já foi pra casa?


Claro que não. Quem ia fazer seu café? — dizia Alexandre, saindo pela cozinha com um prato de tapioca na mão, e um café preto na outra, uma caneca antiga da Strada Empreendimentos que estava perdida na louça de casa. –  Essa camiseta é minha, né não?


Revirei os olhos. Era, a camiseta era do desgraçado. Estava furada na axila, a tinta da estampa do Clube da Esquina já tinha se dissipado, e enlargueceu-se ao ponto de se tornar quase um vestido no meu corpo.


Mas era deliciosa de se vestir.


E algo, no fundo do meu peito, dizia que na gola da camiseta velha, o cheiro do antigo Alexandre estava impregnado, para sempre.


— Bom dia, mainha. – o sorriso tímido e intimidador tomou seu rosto, como paraíso artificial.



— Bom dia. — sentei ao lado de Bárbara na mesa redonda, que sentava ao lado do avô, que sentava ao lado do meu primogênito, numa sequência quase-que-perfeita.


Haviam 2 cadeiras vazias. Haviam mais duas cadeiras vazias na bendita mesa.


Mas era óbvio que Alexandre iria escolher a que, comodamente, se situava ao meu lado, servindo os pratos quentes que vinham da cozinha.


— Eu não tô vendo uma coisa, vovô. - indagou a garota, ajeitando-se em seu assento, com seu copo de plástico de flores coloridas.


— Fala, minha Bárbara. — respondeu meu pai, com toda paciência do mundo.


— Mainha não deu o beijinho de bom dia do meu pai. — respondeu em alto e bom tom, para que todos os presentes da mesa escutassem. — e ela deu em todo mundo.


Eu e Alexandre nos entreolhamos, e de pronto, erguemos uma sobrancelha até a menina, vendo até onde ela poderia ir.


Besta. Ela nunca dá beijinho em meu pai, eles não namoram. — respondeu o garoto em um tom mau mal humorado, e razoavelmente... cruel. Cruel demais para uma criança de 4 anos.


— Epa, Caê. Fale direito com a sua irmã, rapaz. - tentou mediar.


— João Caetano, você aprendeu essa palavra com quem?


— Com painho, oxe.


Sem muita força e saco, ele só deu de ombros, como se não se importasse.


Enquanto o meu pai, sempre não impositivo na criação que dava aos meus filhos, quedou-se silente.


Tu não ajuda, hein, Alexandre. - ri, com a comicidade da situação. — Caê, desde quando pra dar um beijinho de bom dia, tem que namorar?


— Ah, Tadeu me disse uma vez. — Tadeu, o amiguinho-problema-um-ano-mais-velho do futebol. — Uma vez que eu queria saber uma coisa disso.


— Sobre o quê? — franzi a sobrancelha.


Disso de papais que não se beijam. Os pais do Tadeu também não se beijam. Nem se veem.


Sextou na residência Antonelli, Bastos e Nero. - disse meu pai, muito dotado de sabedoria anciã.


Bárbara acompanhava o pingue pongue com os olhos castanhos confusos.


— Meu filho, quando tu quiser saber esse tipo de coisa, pergunte a sua mãe, a mim. Não a Tadeu. — disse Alexandre. - Ele é criança que nem tu, Caê. Sabe de nada dessas coisas de adulto.


— Então você beija mainha, meu pai? - Bárbara interviu por sua vez, curiosa como sempre.


Ana Bárbara!  - repreendi.


— Claro que beijo, Babusca. Que nem eu beijo você, que nem eu beijo o vô Naná, e que nem eu beijo o Caê. Ó. — disse Alexandre, apertando meu rosto e deixando um beijo rápido nele. Forçado. Estridente. — E isso não é coisa de namorado.


Os olhinhos da garota se cintilaram, enquanto os do garoto, acordavam aos poucos. Afinal, eles gostavam do circo.


Qual tipo de criança não gostaria de ver os pais juntos, se amando de maneira harmônica?


Mais uma pontada no Deus que habitava as minhas entranhas. A situação já estava mais indigesta do que meu estômago forrado pela ressaca de vinho tinto e ácido pelo maligno cítrico mordiscado de qualquer forma.


Mas admito... Alexandre era um pai pedagogo. Um bom pai. Um ótimo pai, diga-se de passagem.


— A gente já explicou pra vocês dois como funciona a relação da mamãe e do papai, não explicamos? — busquei ajudar Alexandre naquela seara cheia de confusões infantis. — Nós somos amigos. E amamos vocês mais do que tudo nessa vida.


— Tá, tá. — a garota gesticulou nervosa, tomando mais um morango na boca, tomando a mesa com assuntos mais relevantes... como o seu super-golpe-fatal que o seu professor ensinou na aula de karatê passava, e em como os dois estavam ansiosos para ir até o zoológico com o vovô Naná.


O assunto matinal me martelou, buzinou, bagunçou as estribeiras. A conversa com Cissa, caindo como um tiro pela culatra, para variar. Estávamos começando a confundir eles. E já nos confundimos com as nossas pernas por todo caminho que percorremos até aqui.


A questão toda era: até quando iríamos viver isso?


Fui dar banho em Bárbara e ele me acompanhou na tarefa complexa, cheia de conversas longas e inebriantes, que iam de zero a mil em milésimos de segundos, talento nato da garota. Meu pai arrumou a mochila de Caetano para o futebol nesse meio tempo, enquanto nós dois arrumamos a garota e seus itens pessoais para a maratona da manhã conjunta à mim, sendo minha escudeira em todos os locais que eu iria percorrer.


Conversávamos os 3, às vezes, os 4,  mas nunca nós dois.


Deixamos a garota distraída com um livro de colorir, enquanto nos encaminhávamos silenciosamente até a porta da casa.


Eu ainda nos pijamas, fragmentadas memórias de tempos em que eu só poderia andar pela casa nas roupas em que ele vestia, sem queixa nem causa, enquanto ele, olhando para os lados, travestia-se de uma realidade alternativa onde era ok passar mais uma noite em cômodos nada cômodos sob o mesmo teto que eu.


Sob o meu teto, meu céu, minha realidade — nossa ficção.


Estávamos vivendo a realidade mais-que-imperfeita, impetrada e perpetuada de tal forma.


— Vou passar rapidinho em casa, e acompanho ele por lá. O treino termina umas 11h... Tu ainda vai tá por aqui nesse horário? — Dizia Alexandre se direcionando para a porta, com a mochila de desenhos de dinossauro nas costas largas, contrastando com o homem impávido.


As mesmas roupas de ontem, ressalvado por um boné bege no bolso, com o brasão da Sollaris estampado em linha marsala.


— Acho que não. Horácio me convidou para ir até o Bosque resolver umas papeladas da empresa... vou aproveitar pra levar Ana Bárbara comigo pra almoçar depois disso. No máximo, umas 13h eu tô em casa.


— Certo... painho me ligou ontem, marcou um almoço comigo e com Tibério...


— Encontro dos Nero Gouveia... Alta cúpula reunida.


— Sabe que eu não me lembro do dia que ele aprontou isso? É sempre um ou outro. Mas enfim, depois disso eu entrego os meninos pra ele e parto pra Esotérico. É.. Bosque é aquele restaurante novo? - assenti com a cabeça. — Cê já pensou em aparecer pelo Falsa, qualquer dia desses?


— Eu sempre vou ao Falsa. — falácia minha.


Vai nada. — revirou os olhos. - foi uma vez no mês passado, só pra pegar os meninos. Nem provou do almoço.


— Saudade da moqueca de Diná, confesso... Saudade dos meninos também, ando falando muito com Dara... - mordisquei os lábios, memorando algo além da comida. - Quem sabe, nesse período das férias... eu passe um fim de semana por lá.


Quem sabe. Você sabe que a gente podia tá fazendo isso. Nós 4. — ele apertou os lábios, girando a cabeça de um lado pro outro.


Alexandre, eu não...


Eu sei que tu não tem tempo. - deu um muxoxo, segurando a porta do carro nos dedos, mexendo, como se estivesse ansioso. — Sei que você não tem tempo pra mim. Tu não precisa tá reafirmando isso toda vez que me encontra, não.


—Alê...


— Quando arranjar tempo, eu quero conversar sério com você, depois. —  os olhos acompanharam a vinda de João ao ambiente, mais animado do que no começo da manhã. - E não me adie. Bora, Leãozinho?


Bora! - exclamou o garoto, animado.


— Dê um beijo na sua mãe. — desacompanhado do por mim.


Sem cerimônia, e como se fosse o último dia que fosse me ver... Caetano deixou um beijo molhado na minha bochecha, além de um abraço apertado.


— Tchau, meu sogro. Tchau, preta. — sem respeitar a regra básica, ele veio até mim, deixando com que sua mão invadisse minha cintura por baixo da sua camiseta antiga, e me deixando um beijo no rosto, próximo da boca, atordoante, desolador — pessoalmente, desafiador.


Na beira do meu ouvido, com os dedos pressionando a pele com força, o segundo que beirava o minuto, e o minuto que beirava a eternidade... Alexandre exclamava, na minha base auditiva.


Se não quer ser provocada, se não me quer, se não quer mais ser a minha mulher mesmo... pare de usar as minhas roupas na minha presença. Porque você está estupidamente minha nessa camiseta, e eu não posso fazer nada a respeito.


Não sabia que tantos pronomes possessivos poderiam ser usados dessa forma. Não mesmo.


Em meio a tudo... eu sentia que nascia vindo da imensidão e morria no meio do vazio, ao ponto de simplesmente zerar todos as sensações dos meus nervos sob a ponta dos lábios doces, bárbaros, alexandrinos e decassílabos de Alexandre, criando uma nova forma de desejar. Uma nova forma de sentir, de existir; justo por ele, sempre tão impiedoso com a minha resistência.


Balbuciando, e acompanhando o olhar confuso de João, só consegui dizer o básico: — Tchau, Alê.


Tchau. Como eu havia de me despedir de Alexandre, em algum tempo?


Só havia de escutar a voz desconfiada do outro lado da porta do meu filho, indagando: Isso foi um beijo de namorado?


Com as mãos sob meus lábios, pensativa, só poderia ser interrompida por uma força maior para sair do meio do meu transe.


— Vocês dois... sei não. - disse Osório, em meio a um muxoxo, virando a página do jornal.


— Não ouse, seu Osório. - respondi, atônita, girando o rosto em discordância da minha existência.


Ouso. Dos seus filhos, cuide você mesma. Mas dos meus, eu mesmo me encarrego. Minha filha...


— Eu sei o que o senhor vai falar...


— Se sabe, porque não faz o que teu pai te aconselha?  – disse ele, tirando os óculos dos olhos.


— O senhor sabe muito bem que reatar não é uma opção. Eu não quero que os meus filhos vivam... o fogo cruzado que eu vivi com o senhor e com a minha mãe. - soltei, num tom melancólico, me jogando no sofá. – Isso não. Eles não merecem.


— Quem disse que vocês vão viver o fogo cruzado que eu vivi com a Gida, garota? – Fechou o jornal, aparentemente estressado.


— Eu sou filha dela, Osório! Eu também tenho o temperamento dela. – reprimi, vendo que a garotinha de cabelos mais claros, cachos finos e macacão estampado vinha em direção a mim no sofá, se jogando por cima das minhas pernas. – Não é algo que eu quero ter... mas tá no sangue. E sabota minha vivência demais...


— Tolice sua. Ignorância totalmente sua.


Tampei os ouvidos da minha filha, que se distraia com qualquer pedaço de brinquedo quebrado que carregava na mão. — O senhor só diz isso porque adora aquele hippie mal-humorado. Tu ama Alexandre. Adora essa postura possessiva dele, essa coisa de ser galera, melhor genro do ano. Adora ele invadindo meu espaço, ficando de olho nas minhas paqueras... Assume, Osório.


— Eu não tenho o que assumir, realmente amo meu genro, ele é um homem bom. Pai incrível, marido exemplar... Você era mais bem humorada quando ele te dava um trato. E ainda de quebra, ele sempre me traz bons whiskeys. – ele piscou o olho, sorrindo de maneira pilantra. – Não, não acho que ele não erre, é humano, como eu e você. Mas você há de convir que 01 ano e 03 meses de casamento é muito, muito pouco pra saber realmente se você suporta ou não uma pessoa.


— Não queria ter que levar mais de uma década pra isso. – alfinetei.


— E eu não quero ter mais essa conversa com você, minha filha. Pro banho, já.





✯✯✯✯✯





O dia foi uma sequência de furacões, raios e trovões.


Com a minha tomada de decisão de passar a trabalhar somente para Nero Gouveia depois do divórcio com Alexandre (mesmo que, vez ou outra, eu estava assinando papeladas da Esotérico e da Falsa, já que bem... o restaurante estava no meu nome), Narciso me pôs numa posição invejável, como manda-chuva de muitas coisas, fato que chamou atenção de Tibério, ou até mesmo sua inveja, de certa forma.


Eu tinha a confiança, e por sequência, o nome.


Eu era, via de regra, sangue do sangue deles. Tinha herdeiros, tinha o Nero no nome. Nero Antonelli era, de maneira nada discreta, uma combinação bombástica.


Nero Antonelli. Meus filhos nunca sofreriam bullying no colégio.


Talvez, na hipótese de realidade que havia de viver... eu manteria o nome de casada. Realmente gosto — é melódico, tal como um blues raro de chesapeake.


Houveram motivos para que eu não quisesse assinar aquela papelada, de ter sido eu quem não quis assinar aquela papelada.


Era 03 de Janeiro de 2025. E a reunião com o nosso advogado do nosso divórcio estava marcada para o dia 7 do mesmo mês. No entanto, tínhamos uma agenda matrimonial a ser cumprida.


Flashback on: Festa de 50 Anos da Nero Gouveia, 03 de Janeiro de 2025, 23h14, Salvador, Bahia.


Sorriam! – disse o fotógrafo, indicando nossos locais em meio a festa, nos arrancando sorrisos sôfregos e mal humorados para alguma coluna social qualquer de Salvador.


Posamos, e Alexandre foi diretamente em direção ao fotógrafo, colecionador de amores por meio da fotografia.


Mantendo aqueles momentos todos para ele mesmo.





— Tu não vai querer nem ver a foto? — jogou um olhar de repreensão junto com a voz mansa, de quem mantinha as aparências de uma forma assustadora.


— Eu... vou procurar um Dry Martini. — apontei, bêbada, para o bar. Foi assim que eu lidei com o divórcio: bebendo muito.


Não estava sob o melhor dos meus comportamentos naquela festa. Ousaria dizer que estava sob um dos piores. E o álcool... realmente não vinha me ajudando.


Criei o hábito quando parei de amamentar Caetano. Foram 4 meses razoavelmente longos e dolorosos de se conviver com Alexandre enquanto pai, porque ele era um pai fantástico. Maravilhoso. Ativo. Do tipo que acordava antes mesmo que eu.


E mais doloroso ainda, foi viver 4 anos de divergências infindas entre nós dois. Entre nós dois, um oceano inteiro de convivência conflituosa, sinuosa, atordoante.


Entre nós dois, a notícia de que não tinha dado certo.


Havia vontade de mudar, claro. Mas são gênios tão polares... adversos, confusos, meticulosos.


Brigas constantes, discordâncias absurdas, até mesmo cenas de ciúmes tiradas de um contexto inexistente, de ambas as partes. Não... teria como. Sexo nem sempre resolveria tudo, não importa o quão bom fosse.


Houve o tempo em que dizemos: chega. E ali já estava certo. Ele sofreu por mim, por Caetano, por ele mesmo. Ficava de plantão a toda e qualquer ligação, e tivemos a benção de conciliar uma boa relação de pais até então.


Mas no fim das minhas noites... a companhia vinha sendo um copo amargo de whiskey, e um cigarro de filtro consumido ao pé  da janela do quarto.


Cerveja era, por vezes, uma opção — nas noites em que eu sentia a falta do palato dos seus lábios. Nas noites piores, e mais difíceis.


Por enquanto, na fila do álcool, acompanhada pelo aspirante a ex-marido satélite, a um braço de distância, encarando todos os homens da festa, com olhar de demônio.


Me esbarrei, no entanto, com uma das socialites recém divorciadas mais requisitadas e retocadas da capital, com o aspecto de guardada, característica única de quem vive em busca de uma incessante procura pela juventude eterna.


— Fátima, quanto tempo! – disse, sendo simpática na medida do possível.


— Antonelli!!! Quanto tempo, querida! Acho que não nos vemos...


1 de Setembro de 2023. Meu casamento, é claro. – pigarrei, constatando o óbvio.


Grande festa. Alta sociedade carioca, alta sociedade soteropolitana, baixa sociedade matense.


Bebi aos montes, ri aos rios, fui feliz, de maneira genuína.


Aquele foi o meu casamento de igreja, o que não vivi com Lorenzzo, e tive o prazer de viver com Alexandre.


Meu vestido do Carlos Bacchi, a pomposidade de gastar uma nota com a Igreja do Bonfim por capricho de Alexandre — e na nota da coluna social, algo do tipo: A união real entre Bahia e Rio de Janeiro.


Eu acho que não preciso descrever o quão ridículo eu e Alexandre achamos toda aquela pompa.


Amamos o nosso momento, como todos os outros, mas a recordação da noite de Santo Antônio, da cerimônia intimista, iluminada pelas luzes da lamparina, e colorida pelas bandeiras e fitas... é a que me recordo com maior prazer.


É a que gosto, e a que  brilhava de forma linda nas nossas memórias.


Mas não é sobre essa epifania em especial que eu devo me recordar no momento, caro leitor. Estamos aqui para descrever a noite em que decidi por não assinar o meu divórcio. Retomo ao texto, de forma mais ágil, passando para frente certos diálogos esdrúxulos e fúteis sobre a sociedade cosmopolita soteropolitana:


— (...) Soube que você está vivendo sozinha em Salvador agora, é verdade? - a empresária questionou, com um olhar de coitadismo e maldade, claramente interessada em saber mais do que deveria.


— Soube? – pisquei os olhos, segurando um riso de ofensa.


— É... sabe que nada passa despercebido na sociedade baiana... muito menos os homens. Confere?


Meu sangue ebuliu. Porque após aquilo, ela olhou sorrateiramente sugestiva para o meu marido. O meu homem. Sob o olhar do anelar preenchido em dourado valioso.


Não se importava comigo, não se importava com o meu filho — não se importava com os meus sentimentos. Se importava, única e exclusivamente com o estado civil do meu marido.


— Ah, preta... soube errado. Fátima, você sabe... sozinha nunca. – disse, puxando o braço de Alexandre que passeava aos lados, como um satélite, para que alcançasse meu quadril de maneira firme, como gostava de fazer.


– Eu tô assumindo uma certa parte dos negócios da Nero Gouveia agora, o Alexandre também, não é, pretinho? Então um lugar maior e mais confortável para nossa família era a melhor saída. É mais prático, menos cansativo... sem contar que logo mais, o João vai começar a estudar, não é? Temos que pensar em todo o bem da nossa família.


Aproveitei o ensejo para derrapar os dedos sob sua barba, desfranzindo as rugas que se formavam, assustadas, sem esperar a minha reação, meu toque, minhas palavras, mas entendendo bem até demais, onde eu iria chegar.


— Olhe, Fatinha, essa mulher... você não entenderia o vigor e a garra dela de conseguir arrancar o que quer de um homem. – rimos, mas eu me tensionava a tudo que começava a ocorrer ali.  Alexandre aproveitou o ensejo para me agarrar em um de seus braços, controlando um copo de whiskey caro e uma mulher instável na palma da mão. – Meu amor, bora ali resolver uma questão, rapidinho? Tô precisando falar contigo.


— Claro. Mil perdões, Fátima... mas eu vou seguir meu marido. – disse, me despedindo da terceira interessada. – Até mais.


Segui a marcha do Sargento Pimenta até a ala interna do casarão, com sua mão guiando meu quadril, bem firme, e com a cara sorridente, forjando um sentimento de amor-ódio para além do que se poderia ver.


Passamos por Narciso, passamos por meu pai, passamos até por Tibério – e todos, sem distinção de grau familiar, olhavam a nossa cena espantados.


Faziam dois meses que nós sequer nos falávamos de maneira  habitual para além das nossas necessidades de pai de primeira viagem, imagine nos tocar da forma que nos tocamos, ou forjar beijos carinhosos pelo rosto como de praxe, fazíamos ali.


Mas que presepada da porra é essa? – ele dizia, disfarçando a fala indignada, descrita no aperto que ele fazia nos meus quadris. – Bora ali, Giovanna. Vamos ter uma conversinha séria.


Ai amorzinho, que estresse... Tu não é assim...



Não me tesa... - respondeu, rangendo os dentes.




O álcool descia e subia na minha cabeça.


Ele falava por mim, eu sempre fui sincera na minha margem de alcoolismo. Era meu momento de sinceridade mais vívido.


Alexandre me guiou pela escadaria de tapeçaria vermelha, sempre zeloso, mas irado, e dava pra se notar de longe.


Nos trancamos no escritório do segundo andar de Narciso, aquele de espelhos envelhecidos no teto, decoração de época, e toda a parafernalha pomposa digna de novela de época que bem, honestamente eu amo.


— Venha cá, o que é que tá acontecendo com você, hein, Giovanna? - respondeu, levemente revoltado.


Tu fica tão bonito estressado, Nero... – pensei, em voz alta.


Foco. - disse, estalando os dedos no ar, no intuito de me fazer menos ludibriada. – Pare de cachorrada por 2 minutos e me responda, que cena é essa? O que é que tá se passando na sua cabeça pra aprontar uma dessa na frente de Fátima, da festa toda?


— Como assim? - virei o rosto, em busca de sobriedade e compreensão, como se o ato de pender minha mente para o lado esquerdo exercitasse meu lado racional para elaborar pesquisas.


— Tu tá inconveniente.


— Eu tô tranquila. – minha voz saiu afunilada.


Alexandre respirou fundo, e apoiou uma das mãos sob a porta que dava para a varanda. Conhecendo-o bem, ele iria encarnar seu estado de espírito freirense, me ensinando da forma mais pedagoga possível o básico para se sobreviver em meio a sociedade.


— Minha santa, você está bêbada numa festa da empresa em que você trabalha, falando aos montes, se comportando mal... mas até aí tudo bem, eu tolero, não é de minha conta. Mas tu não pode assim, do nada, trocar seu comportamento da água pro vinho comigo desse jeito, me confundindo desse jeito. Passando do estágio de me ignorar a noite pra fazer marcação cerrada no meio da cena, se agarrando num homem que em tese, já não é mais teu.


– Ou! Discordo completamente. Você é meu. O que é isso, Alexandre? Deixou de me amar?


Poderia ser efeito do álcool, mas eu estava sendo sincera até demais no momento.


Entregue, até demais no momento.


Respirando fundo, ele concluiu o seu pensamento. — Ninguém tá te entendendo. Ninguém tá entendendo nada, eu não tô entendendo nada. Não acha que tá na hora de parar com esse show, tomar uma água, e ir pra casa?


Meu coração subia e descia. Meus hormônios também.


— Eu não vou pra minha casa, eu não vou pra lugar nenhum. Bebi demais, tô sabendo. Falei demais também, mas e daí? Aquela vagabunda queria saber demais da minha vida. Da criação do meu filho. Do meu marido. E nada disso é da conta dela. Satisfeito, porra?


Sua expressão facial era de interrogação. Seu queixo, caído, formava nos lábios rosados e finos um O de Ode a Confusão. Os olhos arregalados, a porta da confusão.


Eu, dotada de uma energia insana mais forte do que eu, caminhava pelo espaço amplo em direção a ele, que ainda muito bestializado com tudo, acompanhava minha linha.


— Não vai me responder não? – bati de frente. – Deixou de me amar, Alexandre?


— Não ponha palavras em minha boca. Nunca foi por falta de amor. O que foi que eu lhe disse quando eu sai de casa? – disse, vindo para perto de mim, arrancando meu ar, ligeiramente ofendido. - Hein?


– O que eu lhe disse? Eu disse que tu é a mulher da minha vida. Que eu não quero outra coisa nenhuma, morro sozinho, não tenho problema com isso. Que é melhor te perder de perto, do que de ter daquele jeito, tão de longe. Porque eu te amo, mas você já não era mais feliz comigo. E você concordou com tudo que eu disse, calada.



A morte por mil cortes. Estava numerando todas as partes de mim que ele não havia afetado ou tocado. Não havia nenhuma.


— Alexandre...


— Eu não tenho como não me meter. Eu vou ser esse rabugento pra sempre, esse doido por você pra sempre. Seu pai falou comigo... disse que você tá bebendo demais, escondida. E eu não gostei de saber isso.


Alexandre.


— Eu vou reclamar, me deixe reclamar! Porque eu tenho que ficar calado numa coisa que me tira o sono desse jeito? Uma coisa que tá apertando meu juízo desse jeito? - se exaltou, nervoso. – Eu tô preocupado com você, porra! Vai me tirar esse direito de sentir também? Não vai me deixar sentir o que tô sentindo agora, essa angústia, toda?


Eu deixo. Alexandre... tu é o meu marido. O meu esposo. O pai do meu filho. E se for pra ser assim, desse jeito, com meia dúzia de oportunista te farejando desesperada... eu não vou assinar porra de divórcio nenhum pra mulherzinha nenhuma tá me desacatando desse jeito, no meio da festa da minha família. Eu não aceito. Eu não admito. Eu não quero. Eu não vou deixar isso acontecer na minha frente. E se você ousar dar uma de bom na minha frente com uma dessa... Você tá me entendendo, Alexandre? – disse, agressiva, batendo as duas mãos no peitoral dele, como se a dor do medo fosse passar com o contato físico desesperado.


Tu faz o quê, hein, maluca? — disse, segurando meus pulsos com firmeza, diminuindo a distância entre nós e cortando toda e qualquer tontura causada pelo meu estado ébrio.


Eu te amaldiçoo o resto da vida. Você não vai conseguir tocar em uma mulher na sua vida que não seja eu. Não vai conseguir beijar uma boca que não seja minha... não vai conseguir fazer amor com alguém que não seja eu.


Eu, certamente, estava totalmente fora de mim. Totalmente.


Giovanna...


— Tá avisado. Eu não vou te deixar em paz nunca.


É bom você parar de falar essas coisas... Tu vai se arrepender hora ou outra. – disse, em tom de censura, e dor física.

A dor física de se segurar por entre as pernas, resguardando-se de um estrago maior que estava muito, muito eminente.

Até porque, não sei como conseguimos esse feito, como acabamos aqui... mas estávamos na mesma posição de anos atrás. Na mesma posição de carnavais atrás.

Alexandre no entanto, encostado no alambrado da varanda alta, enquanto eu colocava minhas coxas entrelaçadas sob as suas, fazendo com que seu joelho alcançasse de uma maneira intrusiva e explícita, o vão das minhas pernas, movimentando o necessário para demonstrar que bem... alguns meses sem sexo se fazem cruéis ao corpo de uma mulher em meio ao período fértil.



Sua coxa esquerda erguia-se o suficiente para levantar o mínimo do desrespeito do tecido em paetê brilhoso azul, enquanto meus ombros eram segurados na melhor explicitude do nosso desejo.


Desejo sempre foi a palavra. Desejo sempre será a nossa palavra de ordem. Sempre haveremos de desejar.


— Não mudo uma vírgula. Não é o álcool. É o que penso. – cuspi as palavras em seu rosto. — Eu tô bem sóbria nisso. Nos meus pensamentos.


Arque com isso então. — deu minha sentença de morte, de maneira bem súbita.


Alexandre cravou as mãos na minha nuca e na cintura, e com vigor, desejo e saudade, nos beijamos de maneira ensandecida sob a luz da lua que iluminava o balcão do escritório de Narciso.


Puxando-me para perto, arrastou sua mão esquerda, forte, dolorosa, gostosa, proibida por minha coxa, adentrando tecido adentro, buscando por qualquer instinto de reação positiva ali: Afinal, ele saberia que conseguiria me arrancar da dureza.


Meu sentimento, e meu órgão derme reagia de maneira involuntária: pulsava, arrepiava, procurava e se derramava por Alexandre.


Derretia, numa excelência única. Numa delicia e num desejo único.


Minhas pernas se abriam, involuntariamente, ao toque dele. E percebendo o que ele almejava no momento, eu reagi. Dei um passo para trás e com auxílio da minha falta de vergonha na cara, arriei a calcinha azul-marinho rendada, jogando o tecido minúsculo em sua direção, enquanto eu seguia para dentro do ambiente, tratando de desligar as luzes do lugar — as sensações seriam os nossos guias, e a entrega, nossa libertação pura.


Ao alcançar a soleira da porta, com as mãos em cada limitação do espaço, pude sentir o choque do corpo de Alexandre contra o meu: A ereção alterando todos os meus hormônios e sentidos, uma mão alcançando o zíper enquanto a outra se alastrava pela altura dos meus seios, criando um choque de sensações únicas no meu corpo.


Eu... estava morrendo de saudade de você. – confessei, em meio a gemidos.


Preta, não... não me quebre desse jeito... – ele pausou as mãos enquanto arranhava a barba no meu pescoço. – eu não quero isso pra minha vida. Eu não quero ter a noite da minha vida pra depois ver você olhando com cara de arrependida pra mim pela manhã.


Me virei em busca do seu rosto e passei minhas mãos pelo seu terno, me demorando na barra do cinto da calça apertada, enquanto minha boca se arrastava por seu ouvido.


Eu não quero saber de arrependimento agora. Eu quero saber de você. Dá pra gente não pensar... por dois segundos?


— Então assume logo, Giovanna. – dizia, em meio a uma revirada de olhos letal.


— O quê?


Que tá arrependida pra porra. – disse Alexandre segurando meu rosto com as duas mãos, num ato litúrgico que me tirou da dicção libidinosa e lasciva daquele momento. — Que não quer desistir da gente. Que me ama. Que não quer fazer sexo agora, que você quer é fazer amor comigo, que nem só nós dois fazemos. E que quer gritar isso, rasgado, pra Bahia toda escutar que eu que sou seu homem.


Eu deixaria ele me arruinar por aquela noite.  E como deixei.


Segurei em seu maxilar, enquanto a mão esquerda desabotoava a camisa negra de botões que cobria seu corpo. — Eu quero tudo. Quero meu marido, por mais uma noite. Eu quero você agora, Alexandre. É só isso.


E foi, só. Então... nessa brincadeira que fomos crescendo, crescendo, absorvendo... Ana Bárbara foi concebida. Sob a mesa de madeira quase centenária do avô. Foi uma das melhores noites que compartilhei com Alexandre.


Os detalhes ainda me atordoam, na verdade. Foi a última das últimas vezes que fizemos amor, sexo... qualquer coisa. E o rombo mental e o tempo de recessão vinha sendo... duro.


Depois de descobrir a gravidez, eu procurei um analista. E a partir desse dia, meus encontros na sexta pela tarde são exclusivos à Dra. Dalila. Eu venho melhorando, em passos gradativos.


Minha noite foi dedicada a pôr os dois menores na cama, abrir uma garrafa de vinho sozinha, e acompanhar um dos últimos capítulos da reprise de Doce Lascívia na televisão, até dormir. Ao menos, tentar.


Tentei dormir mentalizando isso. Mentalizando todas as ideias e possibilidades de um mundo que poderíamos ter vivido. De uma vida que poderíamos ter tido.


Eu sei que ele também imaginava — a memória iria nos amaldiçoar até nossos últimos dias de vida.


A ideia de ser e pertencer nos detonaria pelos anos que poderíamos percorrer, de mãos dadas, e mentes concordantes. Onde se há a hipótese do talvez... há a perturbação. E a demora da paz é realmente perturbadora.


Porque tudo demora. E tudo é véspera e nostalgia desse Agora, o agora que a gente tanto pensa que tanto demora.


E eu não acho justo que a vida não o atormente, nem demore o tanto quanto eu vinha sendo assombrada e prolongada.


Até acordar em meio ao frio dos lençóis vazios e preenchidos inteiramente por mim, escutando o telefone tocar, sem cessar, sem parar. Eu xinguei uma palavra ou outra, reclamei um pouco ou muito, até ver o nome branco, saltado, brilhoso, na tela do telefone.


Pedrão. Onze da noite.


Atendi de imediato.


— Oi, Pedrão. O que é que tá acontecendo?


— Minha filha, pegue o carro e corra pra Praia do Forte. Venha. Deixe os meninos com seu pai, e venha. – disse o homem, nervoso, com o tom abalado.


— O que tá acontecendo, Pedrão?! – questionei, subindo o tom, mas passeando pelo quarto, em busca de uma bolsa larga, com uma muda de roupas, que eu sempre mantinha pronta em caso de emergência. – O que aconteceu com o Alexandre?!


— Giovanna... é o Seu Narciso. – uma ponta do meu coração apontou. Estava inquieta. Estava angustiada. Estava desesperada.


Eu sabia o que ele iria me dizer. Eu não sabia como, mas sabia. E as coisas passavam na cabeça como um filme bonito.


Seu Narciso... faleceu, Giovanna. E Alexandre só chama por você.


✯✯✯✯✯

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