Esfrego os olhos, com sono, e clico em outro vídeo, meus ovos e bacon - comidos pela metade - já frios na mesa ao meu lado. Passei a noite toda acordado assistindo aos vídeos dela, um atrás do outro. Foi uma maratona de Stella Grant, mesmo com o tema chato que é fibrose cística.
Dou uma espiada na barra lateral e clico no próximo. Esse é do ano passado, com a iluminação ridiculamente escura, exceto pelo flash da câmera do celular. Parece um evento para arrecadar dinheiro dentro de um bar muito mal iluminado. No palco, há um cartaz enorme pendurado que diz: "SALVE O PLANETA - APOIE O DIA DA TERRA".
A câmera foca em um homem tocando violão, sentado num banco de madeira, enquanto uma garota de cabelo castanho e encaracolado canta. Reconheço os dois dos vídeos que já assisti. O pai de Stella e a irmã dela, Abby.
O foco muda para Stella, que dá um sorriso enorme, seus dentes tão brancos e perfeitos quanto eu imaginava. Ela está maquiada, e eu me surpreendo ao ver como ela fica diferente assim. Mas não é por causa da maquiagem. Ela está mais feliz. Mais calma. Não como ela foi pessoalmente.
Até a cânula no nariz fica bem quando ela sorri assim.
- Meu pai e Abby! Roubando a cena! Se eu morrer antes dos vinte e um, pelo menos vou poder dizer que estive num bar. - Stella vira a câmera para mostrar uma mulher mais velha, com o mesmo cabelo castanho que ela, sentada num banquinho vermelho e lustroso. Sua mãe. - Diz "oi", mãe!
A mulher dá um tchauzinho e sorri para a câmera. Uma garçonete passa pela mesa deles e Stella a chama.
-Ah, sim. Vou querer um uísque, por favor. Puro.
Dou uma risada abafada quando a mãe dela grita:
- Não vai, não!
- Aaaaah, boa tentativa, Stella - digo, rindo.
Uma luz forte aparece, iluminando o rosto de todos eles. A música de fundo termina e Stella começa a bater palmas, virando a câmera para mostrar sua irmã, Abby, sorrindo para ela do palco.
- A minha irmâzinha Stella está aqui hoje à noite... - Abby diz, apontando para Stella - Porque, como se não bastasse lutar pela própria vida, ela quer salvar o planeta também! Anda, mostra o seu talento, Stella!
A voz de Stella soa confusa e surpresa nos meus alto-falantes.
-Hum, vocês armaram isso?
A câmera volta para a mãe dela, que sorri. Sim, claramente armaram.
-Vai lá, querida! Eu filmo - ela oferece, e tudo fica fora de foco enquanto Stella entrega a câmera para sua mãe.
Todos aplaudem quando Stella entra no palco arrastando seu oxigênio portátil. Abby a acompanha nos degraus e as duas ficam no centro do palco. Stella ajusta a cânula, nervosa, enquanto o pai entrega um microfone para ela.
Olhando para a multidão, ela diz:
- É a primeira vez que eu faço isso... Pra uma plateia, pelo menos. Não riam!
Então, naturalmente, todos riem, incluindo a própria Stella. Mas a risada dela é de nervosismo. Ela olha para a irmã, preocupada. Abby diz algo baixinho que o microfone quase não capta:
- Um alqueire e um celamim.
O que isso significa?
Seja lá qual for a resposta, funciona, e o nervosismo de Stella desaparece feito mágica. O pai começa a dedilhar no violão e eu começo a cantarolar de boca fechada, antes mesmo de o meu cérebro registrar o que eles estão cantando. Todo mundo na plateia acompanha o acorde, mexendo seus corpos de um lado para o outro, batendo os pés no chão de acordo com o ritmo.
- Ouvi dizer que havia um acorde secretol...
Uau. As duas realmente cantam.
A irmã tem uma voz forte, clara e poderosa, enquanto a de Stella é mais baixinha, calma, suave do jeito certo. Aperto o botão de pausa quando a câmera fecha no rosto de Stella, observando todos os seus traços em evidência sob a luz dos holofotes. Livre, despreocupada, sorridente e feliz no palco, ao lado da irmã e do pai. Me pergunto o motivo pelo qual ela estava tão... tensa ontem.
Passo a mão na minha cabeça, observando o cabelo longo dela, sua clavícula, o jeito que seus olhos castanhos brilham quando ela sorri. A adrenalina que sente deixa seu rosto
um pouco vermelho, a bochecha rosada.
Não vou mentir. Ela é bonita.
Muito bonita.
Desvio o olhar e... espera. Não pode ser. Passo o cursor em cima dos números.
-Cem mil visualizações? É sério?
Quem é essa garota?
Nem uma hora depois, meu primeiro cochilo matutino após uma noite sem dormir é interrompido primeiro por um alarme estridente que toca no final do corredor, depois pela visita da minha mãe e da dra. Hamid. Entediado, abafo um bocejo e olho para o jardim vazio, o vento gelado e a previsão de neve provavelmente trancando todos em casa.
Neve. Pelo menos uma coisa boa pela qual esperar.
Encosto a cabeça contra o vidro gelado, ansioso para ver o mundo lá fora revestido por um cobertor branco. Não encosto em neve desde a primeira vez que a minha mãe me mandou para um centro de tratamento para servir de cobaia de uma droga experimental que combate a B. cepacia. Foi na Suécia, e eles vinham aperfeiçoando essa coisa por cinco anos.
Obviamente não estava perfeita o suficiente, porque eu fiquei lá umas duas semanas e voltei para casa.
A essa altura, já não me lembro muito de como foi essa internação em particular. A única coisa que lembro da maioria das minhas visitas aos hospitais é a cor branca. Lençóis brancos, paredes brancas, jalecos brancos por todos os lados. Mas também me lembro da quantidade de neve que caía enquanto eu estava internado lá, neve da mesma cor de tudo no hospital, só que mais bonita, natural, menos estéril. Real. Sempre sonhei em poder esquiar nos Alpes, mas com os pulmões que tenho, seria a morte. A única neve que consegui tocar na minha vida foi a que se acumulou no teto da Mercedes que a minha mãe alugou uma vez
- Jaden - minha mãe diz de repente, interrompendo meu devaneio. - Está ouvindo?
Ela está falando sério?
Viro a cabeça para olhar para a minha mãe e para a dra. Hamid e faço que sim com a cabeça feito um fantoche, mesmo não tendo escutado nem sequer uma palavra esse tempo todo. As duas estão analisando os primeiros resultados do meu tratamento desde que entrei aqui no hospital e, como sempre, nada mudou.
- Precisamos ter paciência - afirma a dra. Hamid. - A primeira fase dos testes em humanos começou há apenas dezoito meses. - Olho para a minha mãe, que assente de forma entusiasmada, fazendo o cabelo loiro se mover para cima e para baixo no mesmo ritmo das palavras da médica.
Me pergunto quantos pauzinhos minha mãe teve de mexer e quanto dinheiro ela jogou fora para me enfiar nisso.
- Estamos monitorando ele, mas o Will precisa nos ajudar. Ele precisa deixar as variáveis em sua vida no mínimo. - Ela olha para mim, seu rosto magro e sério. - Jaden, os riscos de infecção cruzada são ainda maiores agora, então...
Eu a interrompo:
- "Não tussa em ninguém com Fc". Já entendi.
Suas sobrancelhas pretas se juntam quando ela franze a testa.
- Não se aproxime de nenhum deles. Pela segurança deles e pela sua também.
Ergo a mão simulando um sinal de juramento, e declaro o que poderia ser o lema dos pacientes com fibrose cística:
- Seis passos de distância, sempre. - A médica assente.
-Você pegou a ideia.
- O que eu peguei é B. cepacia, então essa conversa é inútil. Isso não vai mudar tão cedo.
- Nada é impossível - a dra. Hamid exclama, entusiasmada. Minha mãe se delicia com essa frase. - Eu acredito nisso. E você precisa acreditar também.
Abro um sorriso bem forçado e faço um joinha com a mão, antes de virar o dedo para baixo, o sorriso sumindo. Quanta besteira. A dra. Hamid pigarreia e olha para a minha mãe.
- Certo. Vou deixá-lo com você.
- Obrigada, dra. Hamid - minha mãe agradece, apertando a mão dela com entusiasmo como se tivesse acabado de conseguir um acordo para um cliente particularmente difícil.
A dra. Hamid olha para mim com um sorrisinho discreto antes de sair.
Minha mãe se vira para me olhar, seus olhos azuis perfurantes e a voz trêmula:
- Me esforcei muito pra trazer você pra esse tratamento, Jaden.
Se por "esforço" ela quer dizer fazer um cheque que poderia pagar a faculdade de uma vizinhança inteira, mal sabe ela que a única coisa que fez foi se esforçar para me transformar numa placa de petri humana.
-O que você quer? Que eu te agradeça por me trancafiar dentro de outro hospital, desperdiçando o meu tempo? - Levanto e a encaro de pé. - Daqui a duas semanas faço dezoito anos. Um adulto, pela lei. Você não vai mais ter esse poder.
Ela parece surpresa por um segundo, mas depois semicerra os olhos e me encara. Então ela pega seu casaco, o último lançamento da Prada, pendurado no encosto da cadeira ao lado da porta, veste e me olha de novo.
- Te vejo no seu aniversário.
Me encosto no batente da porta, observando-a ir embora, ouvindo o salto bater no chão. Minha mãe para no posto da enfermagem, onde Barb está folheando alguns papéis.
- Barb, certo? Vou te dar meu número. - Escuto-a dizendo enquanto abre a bolsa e tira a carteira de dentro. - Se o Cevaflomalin não funcionar, o Jaden pode... dar um pouco de trabalho.
Como Barb não diz nada, minha mãe pega um cartão de visitas e entrega a ela.
- Ele já se decepcionou tanto com os tratamentos que acha que esse
também não vai funcionar. Se ele não estiver cooperando, você me liga?
Ela põe o cartão de visitas em cima do balcão antes de jogar uma nota de cem em cima dele, como se estivesse no caixa de um restaurante chique e eu fosse a mesa que requer um "tratamento especial". Uau. Ótimo.
Barb encara o dinheiro e levanta uma sobrancelha para a minha mãe.
- Fui indelicada, não fui? Desculpa. É que já passamos por tanta coisa que... - A voz da minha mãe vacila e eu observo quando Barb pega o cartão de visitas e o dinheiro do balcão, encarando-a com o mesmo olhar que usa quando me força a tomar algum remédio.
- Não se preocupe. Ele está em boas mãos. - Barb enfia os cem dólares de volta na mão da minha mãe e guarda o cartão de visitas no bolso, olhando por cima dos ombros dela e me vendo.
Volto para o quarto rapidamente, fecho a porta e puxo a gola da camiseta com força.
Ando de um lado para o outro e volto a sentar na cama. Depois vou para a janela e abro as persianas, sentindo as paredes se fechando contra mim.
Preciso sair. Preciso de ar que não tenha cheiro de antisséptico.
Abro a porta do armário, pego uma blusa com capuz, visto o mais rápido que posso e olho para o posto da enfermagem para saber se a barra está limpa.
Nenhum sinal de Barb nem da minha mãe, mas Julie está ao telefone atrás do balcão, entre mim e a porta da única escadaria deste prédio que leva ao telhado.
Fecho a porta com cuidado para não fazer barulho e caminho na ponta dos pés pelo corredor. Ao passar pelo posto da enfermagem, me abaixo o máximo que posso, mas um cara de quase dois metros tentando se esconder é tão sutil quanto um elefante vendado. Julie olha para mim e eu me encosto na parede, fingindo me camuflar. Ela estreita os olhos e afasta o telefone da boca para falar:
-Aonde você pensa que vai? - Faço uma mímica com os dedos, respondendo que vou dar uma volta.
Ela faz que não com a cabeça, sabendo que estou confinado na ala da fibrose cística desde a semana passada, quando peguei no sono no meio das máquinas de comida do Edifício 2 e causei uma "caça ao doente" por todo o hospital. Faço um gesto de súplica com as mãos, torcendo para que o desespero que estou exalando a convença.
A princípio, nada. Julie mantém a expressão firme e o olhar inflexível.
Depois, ela revira os olhos e me joga uma máscara antes de me dar um tchauzinho e a chave para a minha liberdade.
Graças a Deus. Preciso sair desse inferno branco mais do que qualquer outra coisa.
Pisco para Julie. Pelo menos ela tem um pouco de humanidade.
Empurrando a porta pesada que dá para a escada, saio da ala da fibrose cística e subo os degraus de dois em dois, mesmo sentindo os pulmões queimarem logo depois do primeiro andar. Tossindo, agarro o corrimão de metal, passando pelo quarto, quinto e sexto andares até finalmente chegar a uma enorme porta vermelha com um aviso estampado: "SAÍDA DE EMERGÊNCIA. O ALARME SOARÁ QUANDO FOR ABERTA".
Pego minha carteira no bolso de trás, tirando de dentro dela a nota de um dólar bem dobrada que uso para momentos como esse. Estico o braço e enfio a nota no sensor do alarme para ele não disparar. Depois, abro uma frestinha da porta e me esgueiro para o telhado.
Abaixo para colocar minha carteira entre a porta e o chão para mantê-la aberta e evitar problemas. Aprendi isso da pior maneira possível.
Minha mãe teria um infarto se visse que estou usando a carteira da Louis Vuitton que ela me deu há alguns meses como apoio de porta, mas foi uma péssima ideia dar um presente desses para uma pessoa que só frequenta lanchonetes de hospital. Pelo menos ela serve de peso de porta.
Levanto e respiro fundo, automaticamente começando a tossir ao sentir o ar gelado do inverno entrar nos meus pulmões. Mas é ótimo estar do lado de fora. Não estar preso entre paredes monocromáticas.
Espreguiço e olho para o céu cinzento, os já esperados flocos de neve flutuando pelo ar e pousando na minha bochecha e cabelo. Com cuidado, caminho até a beirada do telhado e sento numa pedra coberta de gelo, balançando minhas pernas suspensas. Inspiro e solto o ar como se estivesse segurando-o desde o dia em que cheguei aqui, há duas semanas.
Daqui de cima, tudo é lindo.
Qualquer que seja o hospital para aonde eu vá, sempre tento achar um jeito de chegar ao telhado ou à cobertura.
Já vi desfiles de blocos de Carnaval no Brasil, vendo, lá do alto, as pessoas parecendo formiguinhas coloridas, dançando livremente, se divertindo pelas ruas. Já vi a França dormir, a Torre Eiffel reluzindo no horizonte, as luzes dos prédios baixos apagando aos poucos, restando apenas a luminosidade da lua. Já vi as praias da Califórnia, com quilômetros e mais quilômetros de extensão de água, as pessoas se refrescando nas ondas perfeitas logo de manhã.
Cada lugar é diferente. Cada lugar é único.
São os hospitais de onde os observo que não mudam. Essa cidade não é exatamente animada, mas parece pacata e aconchegante. Isso talvez fosse motivo para eu me sentir mais confortável, mas só está me deixando mais inquieto. Provavelmente porque, pela primeira vez depois de oito meses, estou perto de casa. Casa. Onde Cynthia e Quinton estão. Onde meus amigos da escola, aos poucos, vão se aproximando das provas finais e se preparando para entrar em qualquer uma das universidades da Ivy League que os pais vão escolher para eles. É onde o meu quarto - minha porcaria de vida, na verdade - continua vazio e não vivido.
Observo os faróis dos carros que passam pela rua do hospital, as luzes de Natal cintilando ao longe e a risada das crianças correndo na superfície do lago congelado ao lado de um pequeno parque.
Há uma simplicidade nisso tudo. Um tipo de liberdade que faz as pontas dos meus dedos coçarem.
Lembro de quando costumava ser eu e Quinton, escorregando no gelo e descendo a rua da casa dele, o frio perfurando nossos ossos enquanto brincávamos. Ficávamos fora por horas, disputando quem conseguia deslizar mais tempo no gelo sem cair, atirando bolas de neve um no outro e fazendo anjos na neve. Aproveitávamos cada minuto até minha mãe invariavelmente aparecer e me arrastar para dentro de casa.
As luzes do pátio do hospital acendem. Olho para baixo e vejo uma garota sentada, dentro do seu quarto, no terceiro andar, digitando num notebook e usando um fone de ouvido enquanto se concentra na tela.
Espera aí.
Olho mais atentamente. Stella.
O vento gelado balança o meu cabelo e eu coloco o capuz, observando seu rosto enquanto ela digita. No que ela pode estar trabalhando em pleno sábado à noite?
Ela estava tão diferente nos vídeos que assisti.
Eu me pergunto o que mudou. Será a doença? Todas as internações? Os remédios, tratamentos, essas paredes brancas e insossas que, em doses homeopáticas, pressionam e sufocam, dia após dia?
Fico de pé, me equilibrando na ponta do telhado, e espio o pátio lá embaixo, a sete andares daqui, imaginando, só por um momento, como deve ser a sensação de ficar suspenso no ar, da queda livre. Vejo Stella olhar pelo vidro, nossos olhares se cruzando bem na hora em que uma rajada de vento parece me roubar totalmente o ar que me resta. Tento respirar fundo para recuperar o fôlego, mas meus pulmões de merda mal absorvem o oxigênio.
O pouco ar que consigo inspirar fica preso na garganta, e eu começo a tossir. Muito.
Minha caixa torácica reclama à medida que a tosse rouba cada vez mais ar dos pulmões, meus olhos começando a lacrimejar.
Finalmente, começo a controlar a crise, mas...
Vejo tudo girar e, de repente, minha vista escurece.
Cambaleio, desesperado, tentando recuperar o equilíbrio e caminhar até a porta de saída ou uma parte mais segura do chão, qualquer coisa em que possa me jogar. Olho para as minhas mãos, na esperança de que minha visão clareie, que o mundo ao redor volte à cor de sempre. Sei que o ar livre continua ali, a poucos centímetros de distância dos meus pés.