Quando mestre Pierce me diz que interpretarei "Air Des Clochettes", de Lakmé, fico muito preocupada. Essa ária é extremamente difícil e além de exigir o máximo da voz e da afinação, uma vez que alcança notas altíssimas, também apresenta uma grande carga dramática, já que a ópera retrata a história do amor impossível entre uma jovem hindu e um oficial britânico, no período de ocupação da Inglaterra, o que, teoricamente, os tornaria inimigos.
Treino por dois dias somente com o mestre e então começamos os ensaios com a orquestra. Os músicos da filarmônica são excelentes e, ao contrário dos atores, me recebem de braços abertos. Talvez porque tenham me ouvido cantar, antes de darem atenção aos boatos.
Sei que a minha responsabilidade é grande. Praticamente estarei por alguns minutos no sábado carregando todo o teatro, o espetáculo, os funcionários e, principalmente, o sonho do mestre Pierce em minhas costas. Tudo o que mais desejo é dar orgulho a ele e, se possível, adquirir algum respeito de meus colegas, além é claro, de conseguir o bendito patrocínio tão vital.
Meu chefe me faz milhares de recomendações de cuidados com a voz, que agora realmente vale ouro. Ele parece muito tenso e eu queria poder fazer mais. Queria poder dizer "fique tranquilo, eu dou conta". Mas eu realmente não sei.
Seo Joseph tem me buscado mais cedo, mas ainda chego em casa todos os dias por volta das 18:30, para garantir que consiga dormir num horário decente, afim de preservar minhas cordas vocais.
Parte desse tempo já apertado é usado para que a figurinista, Marla Aires, tire minhas medidas para o vestido que será passado na frente de todos os outros, e será produzido a toque de caixa.
Depois de muito debate com seus assistentes sobre qual seria a melhor cor e tecido, fica decidido que usarei um vestido sem mangas, longo e justo de veludo verde musgo, com uma pequena fenda para movimentação atrás, decote quadrado baixo para valorizar os seios e luvas brancas compridas. Como complemento, terei um colar de cristais swarovski, réplica de um de diamantes usado pela rainha da Jordânia e um par de brincos em formato de gota do mesmo material, ambos encomendados especialmente para mim e que depois passarão a integrar o acervo do teatro.
Desde que fui contratada tenho trabalhado tanto, que só agora entro em contato com a parte mais glamourosa da profissão e sinto, animada, um gostinho do que é ser uma diva.
Pierce fez exigências para a equipe sobre como me tratar, de modo que estou sendo mimada e paparicada como nunca. Nem me importo mais com o que os funcionários devem estar pensando; a missão que tenho a cumprir é tão importante que acho que tudo bem receber algum alívio.
Me encontro em silêncio, sentada na cadeira do meu mais novo camarim, em frente à penteadeira e ao grande espelho rodeado de lâmpadas, ouvindo a discussão entre a figurinista e o cabeleireiro acerca do penteado que deveria usar.
— Quanto tempo vocês ainda precisam que ela fique presente? — Pergunta o mestre, ao irromper intempestivamente pela porta. À medida que se aproxima a apresentação, ele fica cada vez mais impaciente.
— Me desculpe, mestre. — Responde Marla. — Estamos tendo um pequeno desentendimento sobre qual seria o melhor penteado para Cecilia. Temos que decidir isso para fazer o teste.
— Cabelos soltos.
— Na verdade, estávamos pensando num cabelo preso elegante...
— Cabelos soltos. — Ele repete. — Precisamos ganhar esses patrocinadores e usaremos todas as armas à disposição, isso inclui os lindos cabelos de Cecilia. — Conclui, me olhando intensamente pelo espelho.
Coro como uma garotinha. É tão raro ele me elogiar, sempre tão exigente, que quando o faz, é meio que um choque para mim.
— Tudo bem, senhor. Moldaremos as ondas para que fiquem mais bem acabadas e dividiremos o cabelo na lateral, o que vai oferecer mais sensualidade.
— Assim é melhor. — Ele assente, parecendo satisfeito.
— Em trinta minutos Cecilia estará livre, mestre.
— Ótimo, volto para buscá-la para retomarmos os ensaios em meia hora.
★★★
No sábado, estamos em meu camarim, mestre Pierce e eu, minutos antes de entrar no palco. Ele está me ajudando a aquecer a voz, mas percebe que estou muito nervosa, então começa a falar para me distrair.
— Você sabe por que os artistas em geral desejam merda, ou merde, em francês, ao invés de boa sorte antes de uma apresentação de teatro? — Ele pergunta.
— Não.
— Antigamente os mais ricos e proeminentes só se locomoviam em coches puxados por cavalos. Quando uma apresentação fazia sucesso, lotada de figurões, esses cavalos se aglomeravam fazendo uma grande sujeira nas ruas. Assim, ruas lotadas de merda, significavam casa cheia e por fim, sucesso.
— Faz sentido. É bem interessante.
Ele sorri, mas nem consigo apreciar, frente à preocupação.
— Estou consciente de que coloquei muita pressão em você, mas eu o fiz porque sei que é capaz.
— Sabe? — Pergunto surpresa, porque ele sempre parece pensar o contrário sobre mim.
— Você não vai chegar à perfeição se eu ficar o tempo todo exaltando o quanto é boa. Mas você é, Cecilia. Não me colocaria em suas mãos se não fosse.
Fico emocionada com o que ele diz, porque vejo em seus olhos a sinceridade. Ele confia em mim, muito mais do que eu mesma.
— Vou conseguir. — Afirmo.
— O mundo é seu, formosa diva, pegue-o. — Ele diz apertando minhas mãos nas suas com firmeza para me passar confiança. E eu confio. Eu consigo.
Carol nos encontra assim quando entra para avisar que está tudo pronto. Chegou a hora.
— Merde, Cecilia. — Ele diz, e beija a minha mão enluvada. Assinto, sabendo que não se deve agradecer para que a sorte se mantenha, e ando a passos cada vez mais firmes em direção ao tablado.
Assim que me posiciono em frente à plateia, noto que ela é formada por apenas quatro homens e uma mulher, trajados elegantemente. Todos se sentam na primeira fila.
Pierce surge ao meu lado também muito elegante de smoking e cabelos alinhados para o discurso.
— Sejam bem-vindos, caros amigos, a essa pequena apresentação especial. Todos estavam curiosos para conhecer a protagonista de nosso novo espetáculo, então a trouxe para a sua apreciação. Eu poderia tecer elogios ao seu talento, mas prefiro que ele fale por si só. Ouçam com seus próprios ouvidos. Com vocês, a bela Cecilia Harper.
Após a breve introdução, os músicos têm a deixa para começar, e eu em seguida.
Où va le jeune Indoue,
Fille des Parias,
Quand la lune se joue
Dans les grands mimosas?
Quand la lune se joue
Dans les grands mimosas?
Elle court sur la mousse
Et ne se souvient pas
Quand la lune se joue
Que partout on repousse
L′enfant des parias.
Elle court sur la mousse,
L'enfant des parias; Le long des lauriers roses, Rêvant de douces choses,
Ah!
(...)
[Para onde vai a jovem hindu,
Filha dos párias,
Quando a lua brinca
Nas grandes mimosas?
Quando a lua brinca
Nas grandes mimosas?
Ela corre no musgo
E não se lembra
Quando a lua brinca
Que em todos os lugares nós recuamos
O filho dos excluídos.
Ela corre no musgo,
A filha dos excluídos;
Ao longo dos loendros,
Sonhando com coisas doces,
Ah!
(...)]
Quando a ária termina, com o grande agudo final, que durante todos os ensaios me esforcei para chegar com perfeição, e o som apoteótico da orquestra, os presentes demoram uma batida de coração, como que chocados, para começar a aplaudir ardorosamente. O maestro Guido Spínola me cumprimenta e os músicos também aplaudem, parecendo orgulhosos. Tenho lágrimas nos olhos que me esforço para não deixar cair. Coloco as duas mãos no coração e me curvo agradecendo a ovação inesperada, ao menos para mim.
No momento em que os aplausos cessam, mestre Pierce surge da coxia com um ligeiro sorriso e faz um meneio de cabeça em aprovação. Esse pequeno gesto, muito mais que a manifestação dos convidados, me faz ter certeza de que fui bem sucedida. Ele se coloca novamente ao meu lado para recepcionar os patrocinadores, que sobem para me cumprimentar pessoalmente.
Depois de vários apertos e beijos nas mãos, dois pedidos de casamento, que nego educadamente, dizendo ser casada com minha carreira (aprendi essa com madame Odette) e de muitos elogios, me retiro para o camarim, enquanto Pierce segue com eles para a sala de reuniões.
Aproveito para tirar as luvas e o colar pesado, descansar e contar tudo por WhatsApp para Jill.
Cerca de vinte minutos depois, mestre Pierce escancara a porta sem bater e exclama, animado:
— Conseguimos!
Ele está sem o paletó e a gravata borboleta e abriu alguns botões da camisa. Está lindo de uma maneira que poderia ser considerada humanamente impossível, mas que, de alguma forma, ele consegue, e agora abre os braços para mim, pedindo um abraço.
Eufórica com a notícia, pulo do pequeno sofá de couro branco onde estou e corro de encontro a ele.
Para a minha surpresa, ele se abaixa um pouco e envolve a minha cintura ficando de pé em seguida, tirando meus pés do chão e me rodando cavalheirescamente. Descubro nesse momento que ele é um falso magro, pois sinto músculos fortes escondidos debaixo de sua aparência elegante e longilínea acentuada pelas roupas que sempre usa.
Seguro em seus ombros para não cair, mesmo sabendo que ele me mantém bem presa. Seu perfume misterioso me inebria e me sinto como se estivesse ficando bêbada. Quando o giro termina, ele continua próximo, me descendo lentamente até que meus lábios rocem os seus.
Meu coração dá um solavanco dentro do peito. Não consigo acreditar no que está acontecendo. Sonhei a vida inteira em estar assim com ele, tão perto a ponto de sentir sua respiração quente contra mim...
Meu pulso fica totalmente disparado e inspiro ofegante quando ele me coloca no chão, mantendo um braço firme em minha cintura, colando nossos corpos, enquanto enfia a outra mão em meus cabelos, trazendo a minha boca para a sua.
— Cecilia... — Ele sussurra, e então me beija de uma forma como nunca fui beijada antes.
Sua língua me invade de uma vez e me explora destemidamente, como se eu sempre tivesse sido dele e só estivesse pegando aquilo que lhe pertence. Eu apenas permito, completamente rendida. Minhas mãos estão crispadas em suas costas, mas a dele desce da minha cintura e alisa e aperta a minha bunda, sem pudor. Estou quase desmaiando. Sinto sua ereção despontar atrevidamente entre nós, enquanto percebo a umidade se acumular abundante no meio de minhas pernas. Meu nível de excitação é delirante, estou me derretendo por ele. Sei com toda a certeza que há no mundo, que se ele me deitar nesse chão agora, eu o deixo fazer o que quiser comigo. Seu beijo e a adrenalina de tudo o que acabou de acontecer são vertiginosos.
Em seguida, ele sobe a mão, me aperta ainda mais forte contra si e começa a beijar meu pescoço, me fazendo arfar em agonia não satisfeita. Sinto uma vontade irracional de me esfregar toda nele em busca de alívio. Pierce então pega meu rosto.
— Encantadora Cecilia... Ele diz, sua voz como uma carícia, olhando no fundo dos meus olhos e, desse momento em diante, sei que estou perdida para sempre. Esses olhos verdes fizeram minha alma prisioneira, sem qualquer chance de fuga.
Ele volta a me beijar e quando nos acalmamos um pouco, me abraça, e repouso a cabeça em seu peito firme, enquanto o sinto afagar meus cabelos.
De repente tenho um estalo e olho para ele.
— Não podemos fazer isso.
Pierce sorri, como se já soubesse do que estou falando, mas mesmo assim pergunta:
— Isso o quê?
— Ficarmos juntos, desse jeito. — Respondo, constrangida. — Você é o dono do teatro, diretor do espetáculo...
— E as pessoas vão começar a fazer comentários maldosos, te tratar mal e dizer que você só ganhou o papel porque sai comigo? Acho que elas já pensam dessa forma, ou não? Me esforcei bastante para que fosse assim.
Me afasto um pouco dele, confusa.
— Quer dizer que você fez todo mundo pensar que temos alguma coisa de propósito, para no caso de termos realmente algo, não ser nenhuma novidade para ninguém? — Questiono, em choque com a constatação.
— É claro que sim. Por acaso você acha que eu não poderia esperar todo o processo da audição terminar e te escolher da mesma forma? Ou que não poderia enviar outro carro e motorista que não os meus particulares para te buscar e levar, ou mesmo permitir que nossos ensaios privados fossem abertos ao restante da equipe? Na realidade, fiz o que fiz para que você não encontrasse empecilhos para ter qualquer coisa comigo, pouco me importa o que as outras pessoas pensam.
Estou boquiaberta.
— Então é verdade que não me contratou pelo talento? — Pergunto, insegura.
— Não seja tola, Cecilia. Não viu o que acabou de conseguir para mim? É óbvio que te contratei pelo talento. Você ser como é, é apenas um bônus muito satisfatório. — Ele sorri e me dá um beijo rápido na boca que me deixa tonta e me faz perder o fio da meada.
— Mesmo que não fosse linda assim, eu te contrataria. Provavelmente ainda ia te querer. O que você tem por dentro, é ainda melhor do que o que é por fora.
Nunca recebi uma declaração dessas em toda a minha vida. Se os céus me arrebatassem nesse instante, eu estaria plenamente feliz e realizada.
— De qualquer maneira, estar sempre um passo à frente é a lição mais valiosa que a vida já me ensinou. — Ele pisca, maliciosamente.
Voltando, ou pelo menos tentando voltar a mim mesma, pergunto.
— Então você quer ficar comigo?
— Sim. — Ele responde sem hesitar, e já me vejo de véu e grinalda em frente ao altar, tão emocionada que sou, mesmo nunca tendo tido o sonho de me casar assim.
— Como namorada? — Questiono, estranhando ter que ser eu a fazer essa pergunta.
— Namorada? — Ele ri como se eu tivesse contado uma piada muito engraçada.
Fico imediatamente com vergonha.
— Não te quero como namorada Cecilia, mas tem coisas que é mais fácil mostrar do que explicar. Se quer saber, venha comigo, ele diz, me estendendo a mão.
— Onde vamos? — Pergunto, desconfiada de que tenha algo de muito errado nisso tudo. É da minha vida e de um homem que estamos falando. Como poderia ser simples?
— Em dois lugares. Primeiro, ao escritório.
— E depois?
— Você terá que pagar para ver. — Ele me olha confiante, sabendo que já é tarde demais para mim.
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Você pagaria para ver ou fugiria para as montanhas enquanto é tempo?🤔