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PERCY JACKSON.
— VAI FICAR TUDO BEM. — SUSSURRAVA CATERINE PARA SI MESMA, COMO UM MANTRA, A VOZ ROUCA E ANSIOSA. — VAI FICAR TUDO BEM. ESTAMOS QUASE SAINDO. Todos vão ficar bem. Tudo irá ficar bem.
Caterine sussurrava aquelas pequenas palavras como se fossem sua âncora. Ainda mais quando pisamos no coração de Tártaro cercados por nossos inimigos. Aquela era a âncora para a filha de Hades manter as forças, no entanto, as minhas eram diferentes. Me lembro de um pensamento reconfortante que estava usando para me agarrar e atravessar as portas. O pensamento tinha me atingido em cheio enquanto observei os inimigos reunidos no Tártaro, quando me senti tão desamparado quanto as almas no Rio Cócito. E daí que sou um herói? O mal estaria presente, regenerando-se, fervilhando sob a superfície. Não passo de um pequeno estorvo para os imortais. Só precisavam esperar e um dia morrerei. Um dia, meus filhos ou filhas poderiam enfrentar esses monstros novamente.
Filhos e filhas.
Meu desespero se foi tão rápido quanto havia surgido. Cravei meus olhos em Caterine Chernyy, minha namorada que ainda parecia um cadáver ambulante, mas imaginei sua verdadeira aparência: os olhos de duas cores determinados e teimosos, os cabelos negros e sedosos presos com uma trança de lado, o rosto pálido com seus lábios vermelhos e macios. Imaginei nossos filhos ou filhas, será que teriam os olhos tão marcantes como os de Caterine? De duas cores? Talvez um deles tenha o meu olho verde e o ouro líquido dela... seria algo interessante. Uma pequena cópia de nós dois, com os olhos heterocromáticos da mãe e seus cabelos negros ondulados. Ele ou ela poderia falar em russo, Caterine iria ensinar. Filhos e filhas. Uma ideia ridícula. Um pensamento maravilhoso que me fazia continuar. Bem ali no Tártaro, mais uma vez, sorri, observando o rosto ansioso e determinado de Caterine ao meu lado. Caterine era... deuses, não tenho nem palavras. Oh, cara. Quero ter filhos, mas somente se minha mulher quiser.
Contando que ela sempre esteja comigo já era o suficiente para mim.
Balanço minha cabeça, voltando a prestar atenção aos inimigos que nos cercavam. O chão arroxeado era escorregadio e pulsante de modo regular. À distância parecia liso, mas de perto era cheio de dobras e elevações que dificultavam cada vez mais nosso avanço até às portas. Emaranhados de artérias e veias serviam de apoio para meus pés, consequentemente meu corpo servia de apoio para Caterine — entre nós, minha namorada parecia ter mais dificuldade de andar pela pulsação do Tártaro já que sua túnica ficava rente aos seus pés, fazendo-a tropeça com regularidade. E é claro que havia monstros por toda parte. Matilhas de cães infernais caçavam pela planície, latindo, rosnando e atacando qualquer monstro que abaixasse a guarda. Arai voavam em círculos com suas asas de morcegos, e suas silhuetas negras eram visíveis contra as nuvens venenosas.
Tropecei, Caterine sendo mais ágil do que pensei, conseguiu me segurar por minha cintura quando quase cai que nem merda no chão, mas uma sensação de formigamento subiu por meu braço e apoiei minhas mãos em uma artéria.
— Está tudo bem, Perseu? — perguntou ela, preocupada, me ajudando a me erguer do chão.
— Tem água aqui. — Murmurei, retirando minha mão da artéria. — Água de verdade.
Bob deu um grunhido.
— Um dos cincos rios. O sangue dele.
Caterine retorceu o rosto em nojo, se afastando do amontoado de veias mais próximo.
— Isso é sangue dele? — disse a filha de Hades, a voz baixa ardendo em enjoo. — Sabia que todos os rios do Mundo Inferior desaguavam no Tártaro, mas isso...
— É. — Concordou Bob. — Todos correm por seu coração.
Deslizei a ponta do meu pé por uma teia de vasos capilares, sentindo o formigamento subir por minha perna. Será que era a água do Estigo que corria sob meus pés? Seria o Lete? E se uma daquelas veias estourassem em cima de Caterine? Estremeci, me afastando das artérias e agarrando a mão fria da minha namorada, deixando-a bem longe das teias de sangue do Tártaro. Me dei conta que estamos caminhando pelo sistema circulatório mais perigoso do mundo.
— Vamos logo, por favor. — Pediu Caterine, apertando com forças nossos dedos entrelaçados. — Temos que conseguir...
Ela não pôde terminar a frase.
Diante de nós, riscos irregulares rasgavam o ar, como raios, só que completamente negros.
— As Portas. — disse Bob, sombrio. — Um grupo grande deve estar passando.
Senti o gosto de sangue de górgona na minha boca, rasgando minha garganta como ácido. Mesmo que meus amigos do Argo II conseguissem encontrar o outro lado das Portas da Morte, como poderiam enfrentar as ondas de monstros que estavam passando por elas, especialmente se os gigantes já estivessem à espera deles?
— Todos os monstros passam pela porta do lado mortal? — perguntou Caterine, sua testa franzindo em preocupação, ficando as sobrancelhas de um jeito adorável. — Eles saem direto para a Casa de Hades e depois o quê? Usam a porta da frente ou vão para outro lugar por outro portal?
Bob deu de ombros.
— Não sei, Munchkin. Talvez sejam realmente mandados para outro local quando passam por um outro portal. A Casa de Hades fica na terra, não é? Lá é domínio de Gaia. Ela pode enviar seus súditos para onde quiser.
Fiquei arrasado. Já era ruim que os monstros passassem pelas Portas da Morte para ameaçar meus amigos em Épiro. Depois disso, passei a imaginar o lado mortal como um enorme sistema de metrô que despejava gigantes e outras criaturas malignas onde quer que Gaia desejasse: Acampamento Meio-Sangue, Acampamento Júpiter, ou no caminho do Argo II antes mesmo que o navio chegasse a Épiro. Passei minhas mãos nos ombros de Caterine, visto que a garota murchou em desanimação. Sirius miou fracamente, encarando a garota tristemente como se sentindo a preocupação da dona.
— Se Gaia tem tanto poder assim, por que ela não controla para onde nós vamos? — perguntou a filha de Hades, o rosto cadavérico afundado em preocupação. — Ela poderia ter feito isso há tempos, ou está deixando para fazer isso com Nico e com os outros para impedir que fechemos as portas de ambos os lados ao mesmo tempo. Quem garante que meu irmão não esteja, sei lá, na Noruega em vez de Épiro por causa de Gaia? E quando saímos das portas e não nos encontrarmos...
Não gostei nem um pouco dessa pergunta. Às vezes desejava que Caterine não fosse tão inteligente, até porque foi a esperteza dela que a levou a cair no Tártaro. A voz de Atena veio a minha mente, um aviso que era para Caterine de que a inteligência dela lhe causaria sofrimento. Um aviso que até mesmo Ella, a Harpia, deu indiretamente em Portland. Decorei os avisos que eram para Caterine. Talvez para impedir que algo acontecesse com ela. Bom... não impedi. Caterine tinha descoberto primeiro o que teria que ser feito, tinha descoberto sobre as Portas da Morte. "A sabedoria tem seu preço... ", foi isso que Atena disse. "Um terrível destino lhe aguarda. Inteligência demais causa sofrimento", foi isso que Ella disse. Como posso impedir que minha garota sofresse com sua própria mente? Como posso garantir que Caterine não carregue mais sofrimento do que já aguenta? Balanço freneticamente minha cabeça, espantando esses pensamentos como se fossem mosquitos — tenho que focar primeiro em tirar minha namorada e nosso gato desse lugar. Tirar Bob desse lugar. E então vou me focar nela, convencê-la a conversar e se abrir comigo...
Bob coçou o queixo, o rosto prateado pensativo.
— Ela poderia fazer isso se vocês fossem monstros, mas não são. Talvez seja diferente com vocês.
— Ótimo. — Resmunguei, mordendo meus lábios para impedir que um bico emburrado surgisse. — Legal, poderia ser pior, nunca conheci a Noruega...
Não gostei nada da ideia de que Gaia estava nos esperando do outro lado, pronta para teletransportarmos para o meio de uma montanha na Noruega. Mas pelo menos as Portas eram uma chance de sair do Tártaro. Não tínhamos uma alternativa melhor — e além do mais, a Noruega era mais interessante do que andar sobre as veias de um cara que eram formandas por cinco rios sinistros do Mundo Inferior.
Bob nos ajudou a subir até o topo de mais uma elevação. De repente, as Portas da Morte surgiram diante de nós: um retângulo de escuridão gigantesco no topo da colina-músculo seguinte, a cerca de quinhentos metros de distância, cercado por monstros tão apinhados que posso percorrer todo o caminho andando em cima de suas cabeças. Ainda estamos longe demais para vê-la em detalhes, mas os titãs plantados de cada lado eram bem reconhecíveis. O da esquerda usava uma armadura dourada reluzente que transmitia calor. Caterine soltou um bufo baixinho, mas tinha um sorrisinho desafiador que me fazia querer segurá-la para impedir minha namorada de se jogar em uma luta.
— Hiperíon. — disse ela, sorrindo traiçoeira.
Cerrei meus olhos, circundando os ombros da filha de Hades com meu braço para mantê-la ao meu lado.
— Nem pense nisso, Caterine. — Reclamei. — E esse cara não consegue ficar morto, não?
Minha namorada me olhou de modo inocente, mas seus olhinhos de ouro e mármore negros estavam travessos. Caterine poderia se parecer como um anjo, andar como um anjo, falar como um anjo, mas depois de tantos anos observando-a fiquei esperto — Caterine Chernyy era o diabo disfarçado. Minha garota era do tipo de perigo silencioso, onde só nos damos conta quando é tarde demais. E de certa forma isso só a deixava ainda mais atraente aos meus olhos.
— Não pensei em nada, meu bem. — Retrucou Caterine, sorrindo de canto e olhando maldosamente para os titãs que matou ano passado.
Voltei meu olhar para o titã da direita que usava uma armadura azul-escura, com chifres de carneiro projetando-se nas laterais de seu elmo. Me lembrei de que havia o visto em meus sonhos, a descrição de Caterine sobre ele também era exatamente a mesma quando ela me contou o que fez durante o período que desapareceu na Batalha de Manhattan — aquele era Crio, o titã que a filha de Hades, justamente com Jason Grace, mataram juntos na Batalha no Monte Tam.
— Os outros irmãos de Bob. — Falei, virando meu olhar para o rosto de minha Caterine. A Névoa da Morte tremeluziu em torno dela, transformando-se por um breve momento seu rosto em um crânio com um sorriso maldoso. — Hum... Bob, você consegue lidar com eles, se precisar?
— Eu consigo. — Respondeu Caterine, os olhos brilhantes em travessura.
Fechei minha cara, olhando-a feio.
— Caterine, pelo amor dos deuses. — Resmunguei, emburrado. — Colabora comigo, está bem? Você faz mal pro meu coração quando tem suas ideias loucas.
Caterine deu de ombros e apertei sua pele em repreensão. Bob ergueu a vassoura como se estivesse pronto para fazer uma faxina pesada ou separar brigas.
— Munchkin não pode se empolgar e lutar com titãs. — Concordou Bob, mas percebi que ele não respondeu minha pergunta. — Precisamos ir logo. Sigam-me.
Até aqui, o plano de nos camuflar com a Névoa da Morte parecia estar funcionando. Então, naturalmente, espero que dê tudo errado no último minuto. Quando faltavam apenas dez metros para chegarmos às Portas da Morte, Caterine e eu congelamos.
— Ah, deuses. — Murmurei, incrédulo. — Elas são idênticas.
As Portas eram emolduradas com ferro estígio, o portal mágico era um elevador — as portas decoradas com painéis prateados e negros com desenhos art déco. Tirando o fato de que as cores estavam invertidas, eram exatamente iguais às dos elevadores do Edifício Empare State, a entrada do Olimpo. Observando-as, comecei a sentir tanta saudade de casa que perdi meu fôlego. Não apenas do Monte Olimpo, mas de tudo que deixei para trás: a cidade de Nova York, o Acampamento Meio-Sangue, minha mãe e meu padrasto. Caterine me falou de minha mãe, de como ela estava morrendo de preocupação durante os meses em que fiquei sumido. Como Paul Blofis foi o apoio de minha mãe toda vez que ela ficava no meu quarto e desabava de chorar. Meus olhos arderam em lágrimas e fiquei calado. Fiquei com medo de que se falasse algo, minha voz me trairia e revelaria meu choro. As Portas da Morte pareciam um insulto pessoal, criadas para me lembrar de tudo que não posso ter. Assim que o choque inicial passou, passei a reparar em outros detalhes: o gelo que se espalhava a partir das portas, o brilho arroxeado em torno delas e as correntes que as prendiam ao chão. Correntes de ferro negro pendiam das laterais do portal, como os cabos de sustentação de uma ponte suspensa. Estavam presas a ganchos fixados no solo carnoso. Os dois titãs, Crio e Hiperíon, montavam guarda próximos a nós.
Então notei o rosto chocado da minha namorada, os olhos de duas cores fundos e mortos cravados nos detalhes das portas.
— Acho... — Sussurrou Caterine, muito confusa e perdida. — Que já vi elas antes...
Franzi meu cenho, percorrendo meus olhos intensamente pelo rosto da filha de Hades.
— Como assim já viu as Portas antes? — perguntei, minha voz levemente embargada por ainda estar com as imagens de minha vida em minha cabeça.
Caterine ergueu os olhos para meu rosto — seu semblante sério, como se estivesse analisando um conjunto de cálculos complexos que localizariam uma nova estrela se ela estivesse correta. Por fim, a filha de Hades suspirou e agarrou minha mão, nossos dedos cruzados em um aperto gentil dela.
— Você está pensando em casa. — Afirmou ela certeiramente, a voz tão suave que pisquei meus olhos, de repente poderia dormir com Caterine falando comigo nesse tom. — Iremos voltar, Perseu. Vamos voltar para Nova York e ao acampamento.
Observei o rosto calmo em meio a Névoa da Morte de Caterine, me perguntando como minha namorada podia me conhecer tão bem ao ponto de saber o que penso sobre observar meu rosto quando pelo canto do olho vejo que o portal estremeceu. Um raio negro atravessou o céu. As correntes se sacudiram, e os titãs pisaram com força nos ganchos para mantê-las presas. As portas do elevador deslizaram, revelando o interior dourado. Me preparei para avançar, mas tanto Caterine quanto Bob colocando as mãos em meus ombros, me impedindo.
— Espere. — Alertou Bob.
Hiperíon gritou para a multidão ao redor.
— Grupo A-22! Depressa, suas lesmas!
Uma dúzia de ciclopes se aproximou, sacudindo bilhetes vermelhos e gritando de empolgação. Eles não deveriam passar pelas portas de tamanho humano, mas quando se aproximaram, seus corpos se distorceram e encolheram, e as Portas da Morte os sugaram para dentro, como em um desenho animado, só que muito real e mais horroroso. O titã Crio apertou com o polegar o botão de subir do lado direito do elevador. As portas se fecharam. O portal tornou a estremecer, o relâmpago negro se esvaiu.
— Vocês precisam entender como funciona. — Murmurou Bob. Ele estava se dirigindo aos gatinhos em suas mãos, Sirius lambei o polegar do titã enquanto Bob Pequeno mordia carinhosamente Sirius, talvez para que os outros monstros não ficassem se perguntando se o antigo "o Perfurador" tivesse ficado doido. — Cada vez que as Portas se abrem, elas tentam teletransportar para um lugar diferente. Tânatos as fez assim para que apenas ele pudesse localizá-las. Mas agora estão acorrentadas. As portas não conseguem sair dali.
— O que dá total controle aos titãs que as controlam. — Sussurrou Caterine, os olhos fundos na Névoa da Morte brilhando intensamente ao encarar fixamente a nossa saída. — Esse exército não permite que Tânatos retorne seu controle sobre as portas e se estão acorrentadas... Temos que cortar as correntes, pois, assim que entramos as Portas irão voltar a desaparecer e Tânatos poderá pegar o poder sobre elas com mais facilidade. Os monstros perderão seu atalho para o mundo mortal.
Bob sorriu levemente com o argumento certeiro da filha de Hades, um olhar orgulhoso em suas órbitas prateadas — entendo o que porque Caterine o apelidou como "Lua", realmente, os olhos do titã eram bonitos como a lua cheia. Olhei para a forma reluzente de Hiperíon. Da última vez que lutei contra o titã, Caterine e eu o matamos. Minha namorada tinha dado o golpe final. Agora temos que enfrentar dois titãs, com milhares de monstros como reforço.
— Nossa camuflagem... — disse eu. — Ela vai desaparecer se fizermos alguma coisa agressiva, como cortas as correntes?
— Não sei. — disse Bob para os gatinhos esqueletos.
— Miau. — Respondeu Bob Pequeno, mordendo carinhosamente o pescoço de Sirius.
Sirius se irritou e devolveu a mordida. Bob Pequeno não gostou e mordeu de volta com mais força, esquecendo seu carinho. Os gatinhos voltaram a brigar na mão enorme de Bob, que parecia achar graça da briga de rua dos felinos.
— MIAU! — berrou Sirius, mordendo a bunda de Bob Pequeno que soltou um miado alto e surpreso.
Catarine revirou os olhos, balançando a cabeça enquanto tinha os olhos fixos no seu gato negro arteiro e mal-humorado.
— Sirius, pelo amor dos deuses, Bob Pequeno estava te mordendo com carinho. Não precisava agir assim, meu filho, ele é seu amiguinho de bigodes. Peça desculpas para ele.
Sirius parou de morder o gatinho tricolor de Bob, miando para Caterine como se estivesse se justificando enquanto Bob Pequeno tinha o rostinho risonho e convencido— com certeza estava rindo do amigo que levou bronca da mãe. Caterine suspirou, se voltando para Bob, o titã.
— Lua, você precisa distraí-los. — Falou ela, sua expressão analítica como uma filha de Atena planejando um ataque mortal. — Perseu e eu vamos dar a volta sem sermos vistos e cortar as correntes por trás. Quando isso acontecer, tudo irá desmoronar e iremos ser atacados. Teremos que ser rápidos.
— Está bem. — Concordou Bob. — Mas ainda temos um problema. Quando alguém passa pelas portas, outra pessoa tem que ficar do lado de fora e apertar o botão e defendê-lo.
Caterine arregalou os olhos e se não estivesse parecendo um cadáver posso jurar que minha garota iria ficar tão pálida quanto um morto.
Engoli a seco, não gostando disso.
— Hã... defender o botão? — perguntei, receoso.
Bob assentiu enquanto acariciava os pêlos dos gatos em sua mão.
— Alguém precisa continuar apertando o botão para subir por doze minutos, ou a viagem não termina.
Fitei as Portas. Era verdade, Crio ainda estava segurando o botão subir com o polegar. Doze minutos... De alguma forma, teríamos que afastar os titãs daquelas portas. Caterine soltou um soluço, cravando as mãos sobre a boca para impedir que seu choro alertasse nossos inimigos. Fiquei ainda mais tenso e me voltei para ela.
— O que foi? O que isso significa? — Sussurrei minha pergunta, minhas mãos tremendo com a possibilidade.
Caterine me encarou e seus olhos lacrimejantes parecia o espelho de um coração partido, naquele momento, mais uma vez, a inteligência de Caterine Chernyy estava lhe causando sofrimento — ela percebeu algo antes de mim, a realização de um fato sendo a causa de mais angústia para a filha de Hades.
— Alguém terá que ficar e apertar o botão. — disse ela, baixinho, como se tentasse engolir a força cacos de vidros que deixavam sua voz dolorosa. — A-alguém vai ficar para trás.
Meu sangue gelou com isso. Ter que deixar alguém para trás... Alguém terá que apertar o botão por doze minutos, no meio de um exército de monstros no coração do Tártaro, enquanto os outros dois subiam para o mundo mortal. Era impossível. Engoli o gosto amargo em minha boca, mais uma vez, desejando que Caterine não fosse tão inteligente.
— O que acontece se a viagem não termina, Bob? — perguntou Caterine, cautelosa.
Bob não respondeu. A julgar pela sua expressão aflita, decidi que não quero estar naquele elevador se ficasse engarrafado entre o mundo mortal e o Tártaro.
— Tem que ser feito. — Insistiu Bob. — Munchkin é esperta. Acertou em sua suposição sobre as Portas e Tânatos. As Portas vão se restaurar o desaparecer do Tártaro, ressurgindo em outro lugar, onde Gaia não pode usá-las...
— Vai ser tudo molezinha. — Murmurei. — Exceto por... bem, tudo.
Sirius começou a lamber o pescoço de Bob Pequeno, como um gesto de desculpas por sua malcriação, fazendo seu amigo felino ronronar.
— Posso ficar e apertar o botão. — Ofereceu Bob, a voz calma e cheia de aceitação.
Uma onda massiva de sentimentos me dominou: tristeza, pesar, gratidão e culpa. Aquilo tudo pesava tanto quanto cimento em meu estômago. Viro meu olhar para Caterine, observando como a minha garota reagiu com isso — e não foi nada bem. As mãos da filha de Hades tremiam, fazendo a névoa que cobria seu corpo ficar esfumaçadas, como se estivesse se dissipando e prestes a revelá-la para os monstros. Agarro as mãos de Caternie, segurando-as com firmeza e fico em sua frente, cravando meus olhos no rosto dela, imaginado seus detalhes belos e vivos, e não o semblante de uma garota que foi uma com uma machadada na têmpora.
— Caterine, temos que fazer isso. — Digo, com minha voz cheia de pesar e culpa. — Temos que sair, mas... não quero que Bob fique, quero que ele passe pelas portas também para ver o céu de novo, e as estrelas...
— Não. — Cortou Caterine, a voz dura e embargada. As lágrimas brilhavam em seus olhos, trazendo um pouco de vida em seus olhos mortos. — Tem que ter outro jeito, Perseu. Não podemos deixá-lo nesse l-lugar. Não vão matá-lo, vão deixá-lo v-vivo para que possam torturá-lo. Isso é p-pior que morrer. P-podemos voltar até Aqueronte e pensar em outra maneira de contornarmos esse p-problema...
— Munchkin, por favor. — Interrompeu Bob, a voz tão gentil que lágrimas começaram a descer pelo rosto fantasmagórico da filha de Hades.
— M-mas... — O rosto de Caterine se distorceu em uma súplica, sua voz sussurrada em lastima. — Bob, p-por favor, não faça isso...
— E quem irá fazer, Munchkin? — perguntou o titã, a voz bondosa enquanto passava os dedos por Sirius e Bob Pequeno. — Você é pequena, tem uma vida inteira pela frente. Você mesma disse, minha amiga Caterine... não irão me matar de primeira. Posso usar isso como vantagem e escapar um dia... não sei, talvez o Sol e as Estrelas venham em meu auxílio. Mas agora, Bob irá tirar a amiga Munchkin desse lugar. Gostaria de ver as estrelas por conta própria — O tom de Bob ficou sonhador. — Mas alguém tem que apertar o botão. E quando as correntes forem cortadas... meus irmãos vão lutar para impedir sua passagem. Não vão querer que as Portas desapareçam.
Observei a horda infinita de monstros acima da cabeça de Caterine. Mesmo se deixarmos Bob se sacrificar, como um único titã poderia se defender sozinho contra tantos por doze minutos sem tirar o dedo? Talvez... O cimento em meu estômago assentou-se. Sempre desconfiei como isso acabaria. Vou ficar para trás, talvez com a ajuda dos cincos rios do Mundo Inferior consiga deixar os monstros para trás enquanto aperto o botão e permito que Caterine, Bob e os gatos voltem ao mundo mortal — era óbvio que a filha de Hades não queria que isso acontecesse, que Bob fosse deixado para trás. Caterine tinha razão, iriam torturar Bob, não vão deixá-lo morrer com tanta facilidade. De algum modo, tenho que convencer minha namorada teimosa a ir sem mim. Enquanto Caterine estivesse a salvo e as Portas desaparecessem, irei morrer sabendo que fiz a coisa certa por ela.
— Perseu...? — Caterine me encarou com seu rosto lamentar, mas havia um tom desconfiado em sua voz quebrada.
Caterine era inteligente demais. Me conhecia bem demais. Se nossos olhos se encontrassem, ela iria saber exatamente o que estou pensando, por isso não a encarei a imagem do amor da minha vida, engolindo a seco.
— Uma coisa de cada vez. — Murmurei, me inclinando e beijando a testa fria da filha de Hades. — Vamos cortar estas correntes.
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— JÁPETO. — GRITOU HIPERÍON, SARCÁSTICO. — ORA, ORA. ACHEI QUE VOCÊ ESTIVESSE SE ESCONDENDO EMBAIXO DE UM BALDE OU EM ALGUM LUGAR separando a briga dos filhos de Hades. Soube que Caterine Chernyy fazia uma baita bagunça no Mundo Inferior e Hades o mandava para cuidar daquela garotinha desgraçada.
Caterine bufou baixinho, lançando um olhar tão feio para o titã reluzente que fiquei feliz por ela não me encarar assim. Bob, de cara amarrada e com a expressão irritada, caminhou pesadamente até Hiperíon, Sirius e Bob Pequeno montando guarda em seu ombro, como pequenos cães treinados.
— Eu não estava me escondendo. — Resmungou Bob, carrancudo. — E não fale assim de Ca... deixa para lá.
Caminhei discretamente para o lado direito das Portas e Caterine, para o lado esquerdo. Os titãs não pareceram repara em nós, mas não quero arriscar. Mantive Contracorrente na forma de caneta, pronto para retirá-la e minha lâmina corta o ar. Andei bem agachado, me lembrando dos puxões de orelha que Caterine me dava quando ensinou Beckendorf e eu a andarmos sem fazer barulho para invadir o Princesa Andrômeda... Isso parece que foi a tanto tempo. Caterine parecia ainda menor ao imitar meu caminhar — minha garota não imitia nenhum som, parecendo uma aranha de tão discreta e que estava prestes a dar o bote em sua presa para matá-la. Os monstros inferiores mantinham uma distância respeitosa dos titãs, por isso havia espaço suficiente para nos mover ao redor das Portas; mas estou bem consciente da multidão que rosnava em minhas costas.
Caterine e eu tivemos uma discussão rápida — queria que ela ficasse atrás de Bob enquanto eu corria e cortava os dois lados das correntes na Porta sozinho. Bom, como podem ver, não funcionou. Minha doce e incrível namorada me olhou irritada, resmungou: "Vai tomar no seu cu se acha que vou deixar você ir sozinho. Temos que cortar as correntes ao mesmo tempo, sua lacraia-do-mar." e caminhou até o lado esquerdo das correntes. Como amo minha Caterine, delicada como uma flor. Queria deixá-la de fora, pois, Caterine foi responsável pelas mortes de Crio e Hipérion bem mais diretamente do que eu e achei que, alguma forma, os titãs iriam senti-la. A única coisa que me restava era rezar aos deuses e Parcas para que os titãs não sentissem minha garota e a matassem em minha frente. Deuses, não vou aguentar isso...
Balanço minha cabeça e me concentro. Não posso me deixar levar pelo medo de Caterine ser morta. Ela não iria morrer, não comigo aqui. Do outro lado das Portas, Crio estava parado, sombrio e silencioso, com o elmo de cabeça de carneiro cobrindo seu rosto. Mantinha um pé no gancho das correntes e o polegar no botão subir.
Bob encarou os irmãos. Plantou a lança no chão e tentou parecer o mais feroz e assustador possível com dois gatinhos briguentos em seus ombros.
— Hiperíon e Crio. Me lembro de vocês.
— É mesmo, Jápeto? — O titã dourado riu, olhando na direção de Crio para dividir a piada. — É bom saber disso! Soube que Percy Jackson fez uma lavagem cerebral em você e o transformou em uma empregadinha de Hades. Que Caterine Chernyy te encheu com as besteiras de estrelas e constelações.
— Ei. — Reclamou Crio, aborrecido. — Sou o titã das constelações, mais respeito, por favor.
Hiperíon o ignorou.
— Como Percy Jackson te rebatizou... — Continuou o titã reluzente. — Betty?
— Bob. — Rosnou o titã prateado, irritado.
— Bem, já era hora de se apresentar, Bob. Crio e eu estamos presos aqui há meses...
— Semanas. — Corrigiu Crio, sua voz em um retumbar profundo no interior do elmo.
— Não importar! — Exclamou Hiperíon, desdenhoso. — É um trabalho entediante: guardas as portas, fazer os monstros passarem por elas e seguir as ordens de Gaia. Falando nisso... Crio, qual é o próximo grupo?
— Vermelho Duplo. — Respondeu Crio.
Hiperíon deu um suspiro. As chamas brilhando mais intensamente e quentes em seus ombros. Ele encarou Bob.
— Olhe para mim, o titã do Leste! O Senhor da Luz! Mestre do Alvorecer! Sendo obrigado a esperar na escuridão enquanto os gigantes vão para a batalha e ficam com toda a glória. Nós quatro seguramos Urano. Eu, Coio e vocês dois. Cronos nos prometeu os quatro cantos do mundo por ajudá-lo a assassinar nosso pai. E gostei de fazer isso! Teria usado a foice eu mesmo se tivesse tido a chance! Mas você, Bob... — Hiperíon usou o nome do titã prateado como se fosse uma ofensa. — Você sempre esteve em dúvida sobre matá-lo, não é? O titã gentil do Oeste, fraco como o pôr do sol! Nunca vou conseguir entender por que nossos pais o chamaram de Empalador. O Perfurador. Está mais para Chorão.
O rosto de Caterine ficava sombrio a cada segundo com as palavras ácidas do titã do Leste sobre Bob, o que a deixava ainda mais sinistra com seu rosto cadavérico e o corte de manchado em sua cabeça. Nós nos abaixamos em sincronia ao lado do gancho em nossos respectivos lados. Tirei a tampa da minha caneta e Contracorrente voltou à sua forma original. Crio não reagiu. Sua atenção muito concentrada em Bob, que tinha apontado a lança para o peito de Hiperíon com nítida ira nos olhos prateados.
— Ainda posso empalar. — disse Bob, com a voz baixa e firme. — Você se gaba demais, Hiperíon. É forte e bravo, mas Caterine Chernyy cortou sua garganta como se fosse nada. A filha de Hades e Percy Jackson te assassinaram e você ficou engasgado com o próprio sangue enquanto morria. Virou churrasquinho para uma humana de um metro e meio.
Caterine retorceu o rosto, me olhando indignada enquanto movia os lábios para formas palavras sem som, dizendo: "Um metro e meio e cinco centímetros. Por que sempre esquecem os cinco centímetros?!". Sorri levemente, apreciando minha namorada que reclamava com caretas e bocas por sua altura de um metro e meio.
Os olhos de Hiperíon flamejaram.
— Cuidado, irmão.
— Pelo menos o trabalho de zelador é honesto. — disse Bob. — Eu limpo a lambança dos outros, separo brigas de irmão e depois os faço se abraçaram para fazerem as pazes. Deixo o palácio mais bonito do que quando o encontro. Mas você... você não liga para as cagadas que faz. Seguiu Cronos cegamente e perdeu duas vezes. Agora recebe ordens de Gaia.
— Ela é nossa mãe! — Berrou Hiperíon, zangado.
— Mas não despertou para nossa guerra. — Lembrou Bob, perspicaz. — Ela prefere seus outros filhos, os gigantes.
A campainha do elevador soou. Os três titãs e os gatos esqueletos pularam de susto enquanto Hiperíon murmurava com medo de que Gaia estivesse ouvindo a conversa deles.
Já se passaram doze minutos? Perdi a noção do tempo. Crio tirou o dedo do botão e chamou:
— Vermelho Duplo! Onde está o Vermelho Duplo?
Grupos de monstros se agitaram e empurraram uns aos outros, mas nenhum deles se aproximou. Crio suspirou, irritado. Caterine já estava pronto, os olhos brilhando maliciosos atrás de Hiperíon. Ela ergueu a espada de osso de drakon acima da base das correntes. Sob a luz brilhante da armadura do titã, a Névoa da Morte e seu sorriso cruel deixava Caterine Chernyy como um ghoul em chamas. Ela ergueu três dedos, pronta para fazer a contagem regressiva. Tínhamos que cortar as correntes antes que o grupo seguinte tentasse entrar no elevador, mas também precisamos nos assegurar de que os titãs estivessem os mais distraídos possíveis.
Bob olhou de esguelha para Caterine e eu enquato Hiperíon reclamava da falta de organização dos monstros. Achei que Bob fosse começar uma briga, mas em vez disso, levantou a lança e se dirigiu as portas.
— Está bem. — disse Bob, tranquilo. — Fico de vigia. Qual de vocês quer tirar uma folga primeiro?
— Eu, é claro. — disse Hiperíon.
— Eu! — Rebateu Crio. — Estou segurando este botão há tanto tempo que meu polegar vai cair.
— Estou em pé aqui há mais tempo. — Resmungou Hiperíon. — Vocês dois vigiem as Portas enquanto vou ao mundo mortal. Tenho que me vingar de alguns heróis gregos!
— Ah, não! — Reclamou Crio. — Aquele garoto romano está a caminho de Épiro, aquele que me matou no Monte Otris junto de Caterine Chernyy. A garota vai morrer aqui embaixo, tenho que me vingar de pelo menos um que me matou. Caterine Chernyy e Jason Grace tiveram muita sorte. Agora é minha vez.
— Sorte. — Debochou Hiperíon. — Pelo que soube, Crio, Caterine Chernyy te empalou com um só golpe na sua jugular e ainda te decapitou.
— Seu idiota! — gritou Crio, a voz alta fazendo as correntes tremerem com sua fúria. — Caterine Chernyy também matou você!
Caterine olhou em meus olhos e falou sem emitir nenhum som: Um, dois...
Antes que pudermos acertas as correntes, um silvo agudo perfurou meus ouvidos, como o som de um foguete se aproximando. Só tive tempo de pensar: "Ah, merda...", antes que uma explosão abalasse toda a encosta. Uma onda de calor me derrubou no chão. Estilhaços pretos atravessaram Crio e Hiperíon, despedaçando-os tão facilmente como papel em um triturador. Bob cambaleou, mas conseguiu ficar de pé. De alguma forma, a explosão não atingiu o titã. Ele agitava a lança à sua frente, tentando localizar a origem da voz. Sirius e Bob Pequeno desceram do ombro e se esconderam dentro do uniforme de zelador.
Uma voz inexpressiva ecoou pela vastidão, abalando o solo quente e carnoso.
TITÃS, disse a voz cheia de desdém. SERES INFERIORES. IMPERFEITOS E FRACOS.
Caterine tinha aterrissado a uns cinco metros das Portas. Quando conseguiu se levantar, fiquei aliviado por vê-la viva que levei tempo para perceber os olhos arregalados dela. Caterina estava com sua aparência normal. A Névoa da Morte tinha evaporado. Olhei para minhas próprias mãos. Meu disfarce também tinha desaparecido.
Em frente às Portas da Morte, o ar escureceu e se solidificou. O ser que apareceu era tão grande e irradiava tanta maldade que tive vontade de me rastejar até o Estige e dissolver meu corpo e alma. Em vez disso, forcei-me a olhar para o deus, começando por suas botas de ferro negro, grandes como caixão. As pernas estavam protegidas por grevas negras; o corpo era musculoso e a pele, roxa e grossa como o chão. O saiote da armadura era feito de milhares de ossos retorcidos e enegrecidos, unidos como os elos de uma corrente. Ele era preso por um cinto de braços monstruosos entrelaçados. No peitoral do guerreiro, gigantes, ciclopes, górgonas e drakons se comprimiam, suas faces borradas se alternando na superfície como se tentassem sair da sua prisão infernal. Os braços do guerreiro — musculosos, roxos e reluzentes — estavam nus, as mãos grandes como pás de escavadeira. O pior de tudo era a cabeça: um elmo de rocha e metal retorcido sem forma aparente, apenas com pontas irregulares e pedaços pulsantes de magma. Todo seu rosto era um redemoinho; uma espiral de escuridão. Enquanto o observei, as últimas partículas da essência de titã de Hiperíon e Crio foram aspiradas pelo guerreiro.
Do outro lado das portas, Caterine tinha o rosto mortalmente pálido.
— Tártaro. — disse ela, a voz ardendo em choque.
O guerreiro produziu um som como o de uma montanha se partindo ao meio, fiquei na dúvida se isso era um rugido ou uma risada.
Esta forma é apenas uma pequena manifestação do meu poder, disse o deus. Mas é o suficiente para lidar com vocês. Não costumo interferir, pequena semideusa. Lidar com insetos como vocês não está à minha altura. Vocês demonstraram ser surpreendentemente resistentes. São umas celebridades entre os monstros que me circulam. Chegaram muito longe. Não posso mais apenas observar seu progresso.
— Hã... — Minhas pernas estavam prestes a me deixar na mão. — O senhor... é muita gentileza, mas... hum... não precisa se incomodar.
— Puta que pariu. — Resmungou Caterine. — Como odeio minha vida.
Tártaro abriu os braços. Por todo o vale, milhares de monstros uivaram e rugiram, batendo suas armas e gritando em triunfo. As Portas da Morte estremeceram nas correntes, querendo serem libertadas.
Sintam-se honrados, pequenos semideuses, disse o deus das profundezas. Nem mesmo os Olimpianos mereceram minha atenção. Mas vocês... Vocês serão destruídos pelo próprio Tártaro!
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CATERINE NATALIE CHERNYY.
SER MORTA PELO PRÓPRIO TÁRTARO NÃO ME PARECIA UMA GRANDE HONRA. NA VERDADE, NÃO ME SINTO HONRADA. AO ENCARAR A ESCURDÃO DE SEU ROSTO preferi morrer de uma forma menos memorável — ter morrido por ter pulado na Mansão da Noite parecia-me uma maravilha agora. Ou quem sabe caindo de escadas, escorregando no banheiro e quebrando minha bacia. Melhor ainda: uma morte pacífica durante o sono quando tivesse meus cabelos inteiramente brancos, depois de passar a noite falando das estrelas para Perseu e recordando com ele nossa vida tranquila. Deuses, morrer dessa forma — depois de viver mais setenta anos ao lado de Percy Jackson — era meu único desejo que pulsava em meu coração e me deixava com uma pontada de esperança. Uma vida inteira ao lado de Perseu...
Encarando o próprio Tártaro em minha frente, senti a minha única esperança que me permito começar a morrer, mas não me permito pensar nisso. Estamos ao lado da saída... Temos que sair. Vamos sair. Talvez se eu ficar para trás e ajudar Bob, Perseu e Sirius possam conseguir chegar ao mundo mortal...
Não é a primeira vez que enfrento um inimigo que não posso vencer usando minha própria força — literalmente, acabamos de passar pela Noite encarnada e só conseguimos sair de lá por causa de muito improviso e uma viagem falsa a Disneyland do inferno. Mas Tártaro... era diferente. Minha voz não saía, paralisada demais com o deus das profundezas em sua pequena manifestação. Estou vagamente ciente do exército de monstros correndo ao meu redor, mas após o rugido triunfal, a horda ficou em silêncio. Àquela altura, Perseu e eu devíamos ter sido feitos em pedaços de semideuses. Em vez disso, os monstros mantinham distância, esperando Tártaro fazer alguma coisa.
O deus das profundezas flexionou os dedos, examinado as garras negras. Não tinha expressão, mas aprumou os ombros como se estivesse satisfeito em matar dois semideuses insignificantes.
É bom ter forma, entoou Tártaro, o tom malicioso. Com estas mãos, posso eviscerar vocês.
A voz dele era como se estivessem sendo sugadas pelo vórtice em seu rosto, soando como uma gravação tocada ao contrário. Na verdade, tudo parecia ser sugada pelo rosto daquele deus: a luz fraca, as nuvens venenosas, a essência dos monstros, até minha frágil força vital. Era como se o rosto do Tártaro fosse um buraco negro — um buraco negro que sugava a vida de todos com sua mera presença.
Sei que devia começar a tagarelar idiotices para aumentar nosso tempo até pensar em um plano brilhante, mas o que caralhos posso dizer? Não há como sair dessa, não sei como chamar a atenção do deus. Perseu e eu só tínhamos sobrevivido até esse momento porque Tártaro estava ocupando saboreando nosso sofrimento, ter o prazer de destruir nossas almas com as próprias mãos para sermos sugados pelo buraco negro do esquecimento em seu rosto cheio de escuridão.
Essa era uma péssima maneira de morrer.
Ao meu lado, Perseu fez algo que nunca havia visto fazer. Ele largou a espada. Contracorrente caiu lentamente de seus dedos frouxos e bateu no solo arroxeado com um ruído abafado. A Névoa da Morte não estava mais em seu rosto, mas Perseu ainda parecia um cadáver. Ver o filho de Poseidon cair de joelhos e ter seus olhos verdes-mar desesperançosos me fez querer vomitar. Perseu não desistia, mas agora... com o próprio Tártaro disposto a nos matar...
O deus das profundezas rosnou de novo, provavelmente rindo.
O medo de vocês é um aroma delicioso, disse o deus. Entendo o apelo de ter um corpo físico com tantos sentidos. Talvez minha amada Gaia tenha razão ao desejar despertar de seu sono.
Pensar em Tártaro e Gaia juntos me fez querer jogar ácido nos meus olhos. Tártaro esticou sua mãe gigantesca em direção a Perseu enquanto me preparava para correr até meu namorado paralisado e fazê-lo reagir, mas Bob o interrompeu.
— Vá embora! — O titã apontou a lança para o deus. — Você não tem o direito de se meter!
Tártaro se virou. Seu rosto, a espiral de escuridão em um buraco negro, começou a girar mais rápido. O som uivante era tão terrível que cai de joelhos sobre o solo carnoso, tampando meus ouvidos para não os arrancar. Bob se desequilibrou, sendo espetado pelas garras de Sirius e Bob Pequeno que tentavam segurar-se na pele prateada do titã — a energia vital de Bob, na forma de uma cauda de cometa como se a lua estivesse sendo atraída pelo campo magnético do buraco negro, ficou mais alongada ao ser sugada na direção do rosto do deus. Tentei me levantar, minha garganta se fechando em desespero em ver Bob morrendo, mas fui interrompida pelo grito de desafio do titã prateado. Bob partiu para cima do deus, mirando a lança no peito de Tártaro. Antes que ela o atingisse, o deus das profundezas jogou Bob para o lado como se ele não passasse de um inseto irritante. O titã foi jogado para longe junto de Sirius e Bob Pequeno, que se esconderam no uniforme do zelador.
Me levantei, agarrando minha espada quando o som uivante de Tártaro se desavinhou na atmosfera sulfúrica, soltando um suspiro de alívio quando Bob se ergueu outra vez — os olhos de Lua intensos em um despertar de determinação.
Por que você não se desintegra?, perguntou Tártaro, confuso e irritado. Você não é nada. É ainda mais fraco que Crio e Hiperíon.
— Não. — Sussurrei, fechando ambos meus punhos em minha espada de osso. — Bob não é fraco. É o mais forte de todos.
— Eu sou Bob! — gritou o titã prateado, a voz orgulhosa e desafiadora.
Tártaro rosnou.
O que é isso? O que é Bob?
— Escolhi ser mais do que Jápeto. — disse Bob. — Aceito meu passado, mesmo que não goste dele, mas escolho ser melhor. Você não me controla, Tártaro. Não sou como meus irmãos.
A gola de seu uniforme se moveu. Sirius e Bob Pequeno saíram debaixo da roupa e pularam em sincronia para o chão, aterrissando na frente de Bob, o titã. Sirius cresceu rapidamente, seu tamanho de cão doberman mal-humorado — mas, meu lindo gatinho preto compensava seu tamanho pequeninho com um rugido tão poderoso que todos os monstros caíram para trás de susto. Sorri orgulhosa para meu gato. Então Bob Pequeno começou a crescer e entendo o porquê Atlas desdenhou de Sirius ao vê-lo (ainda estou puta com o idiota por ter sido cuzão com meu gato). Bob Pequeno parou de tremeluzir até se transformar em um esqueleto de tigre-dentes-de-sabre em tamanho real, Sirius sendo muito menor do que o amigo felino, porém, meu gato negro era tão feroz quanto um leão.
— Além disso... — Anunciou Bob. — O gato de Munchkin é mal-humorado. Minha amiga Caterine e Bob temos bons gatos.
Sirius e Bob Pequeno atacaram Tártaro, cravando as garras em sua coxa. Os felinos escalaram as pernas do deus, parecendo fazer uma competição entre eles de quem irritava mais o inimigo, entrando por baixo da cota de malha de Tártaro. O deus das profundezas começou a fazer uma dança engraçada, gritando e batendo os pés, aparentemente deixando de saborear sua forma física.
Fiz uma nota mental para dar um bom banho em Sirius depois daqui — não acho que a malha de Tártaro seja lá muito cheirosa, considerando o fedor de enxofre que Perseu e eu enfrentámos durante toda nosso caminho.
Tártaro rugiu quando Bob cravou a lança no lado de seu corpo, logo abaixo de seu protetor peitoral Ele tentou acertar Bob, mas o titã recuou e fugiu de seu alcance, libertando sua lança da carne do deus com um arranco forte, fazendo voar de volta para ele. Sirius e Bob Pequeno pularam debaixo da saia do deus, correndo até Bob com icor dourado escorrendo de suas enormes presas de cachorro e tigre. Tártaro bateu o punho no peitoral de sua armadura, dizendo que Bob iria morrer primeiro. Na armadura do deus havia rostos pálidos aprisionados no metal que se agitavam em gritos silenciosos, implorando para sair — ali seria a eternidade de Bob e comecei a entrar em pânico.
Bob se virou para mim, sorrindo gentilmente.
— Cuidem das Portas. — disse o titã.
— Bob... — Tentei, meus olhos ardendo em lágrimas.
— Eu cuido do Tártaro. — Pediu Bob, olhando-me bondoso.
O deus das profundezas jogou a cabeça para trás, urrando em diversão, o que criou um vácuo tão grande que os demônios voando mais próximos foram sugados pelo vórtice de seu rosto, sendo despedaçados ao nada.
Cuida de mim?, perguntou Tártaro, zombeteiro. Você não passa de um titã, um filho inferior de Gaia! Não podem me matar. Estou muito além de sua vida inútil. Vai pagar por sua arrogância, por seu crime ao se voltar contra a família. E quando a esses mortais insignificantes... Tártaro gesticulou para o exército de monstros, convidando-os a avançar.
DESTRUAM-NOS!
No mesmo instante, ergui minha espada, começando a finalmente a usar meu poder de medo, mesmo que esteja receosa por causa da experiência com a maldição das arai.
— Perseu! — berrei.
Ele sacou Contracorrente.
Golpeie as correntes que prendiam as Portas da Morte com toda minha força, minha lâmina de osso de drakon tão afiada que as cortou no primeiro golpe. Comecei a correr até Perseu, vendo pelo canto do meu olho Sirius começar a vir em minha direção. Apontei minha mão em direção as correntes do lado do filho de Poseidon, soltando um grito de guerra e as partindo somente com minha força de pensamento sobre os metais preciosos — as portas estremeceram, depois de abriram com um Ding! agradável.
Perseu estava ocupado, repelindo a primeira onda de monstros quando me joguei em cima de uma arai, matando-a com um golpe de decapitação certeira. Me curvei ao receber a maldição, um golpe profundo em meu pulso, como uma lâmina cortante que rasgou minha pele — sangue começou a descer por minha mão, mas me forcei a permanecer de pé.
— Porra de maldições! — Grunhi, zangada.
O filho do mar agarrou minha mão, apertando sem querer meu pulso aberto pela maldição da arai.
— Desculpe! — Exclamou Percy. — Vamos, vamos, vamos!
E começamos a correr em direção à frente das Portas da Morte.
Olhei ao redor, desesperada — Sirius estava vindo, mas não tinha chegado ainda. Onde ele estava? Em volta do Tártaro, Bob e seu ajudante felino de dentes de sabre continuavam a atacar o deus, se esquivando para ficaram longe do alcance de seus golpes. Não pareciam causar muito dano, mas Tártaro, desengonçado em sua nova forma, ia de um lado ao outro, ele não estava acostumado a ter pernas pelo visto.
— Sirius! — gritei, minha voz rouca ecoando pela batalha.
E consegui ver onde meu gato estava — sendo atacado por quatro empousai. Sirius iria cair e minha visão escureceu por um momento quando me soltei agressivamente de Perseu e comecei a correr até meu gato. Monstros tentaram se colocar em meu caminho até Sirius, mas eram mortos, sejam por minha espada ou pela névoa de terror que expelia de meus poros como veneno. Escutei Perseu gritar meu nome, porém, já estava atacando as vampiras que estavam em cima de Sirius. Decapitei a cabeça em chamas de três ao mesmo tempo, saltando por cima do corpo trêmulo de Sirius e fincando minha espada de osso na barriga da última. Sirius se levantou, começando a marchar velozmente ao meu lado enquanto voltamos até as portas que estavam começando a se fechar.
Perseu era o único que estava mantendo-as abertas com o pé enquanto lutava, pelo menos ele não tinha que se preocupar em ser atacado pelas costas.
— Vá, leve Sirius! — gritei, tentando empurrar Perseu para dentro do elevador. — Vou apertar o botão.
Perseu me olhou carrancudo.
— Uma das arai me lançou uma maldição de dor. — Ele atingiu um grifo no ar enquanto Sirius e eu fazíamos picadinho de dracaneas. — Dói, mas não estou com o pulso aberto como você, Caterine. Posso ficar e segurar o botão.
Me voltei para meu namorado, irritada.
— Perseu, pelo amor dos deuses, você não vai...
E tudo aconteceu rápido demais.
Me distraí por três segundos apenas. Três malditos segundos. E foi suficiente para um dracaenae se jogar em cima de mim, as garras prontas para rasgarem minha garganta. Se ela não tivesse sido impedida por um vulto negro que se colocou entre nós duas. Sirius mordeu tão forte o monstro que ela se desintegrou em uma nuvem de poeira, mas... Meu gato caiu ao chão, ficando em seu tamanho natural enquanto seu corpinho se desfazia em pó dourado.
Os olhos verdes-floresta me encarando em seu último suspiro.
Um último miado baixinho, como meu gato de pelagem negra costumava fazer quando o dava carinho e o dizia que o amava.
E o gatinho esqueleto desapareceu por completo.
Sirius havia morrido.
— Não... — Sussurrou Perseu, parando seus ataques pelo choque.
Toda uma falange de Ciclopes atacou, aproveitando o momento.
E meu grito angustiante ecoou entre a horda de monstros, que se perdeu na imensidão de sangue e criaturas hediondas. Um grito alto de tristeza que se transformou em fúria, causando uma onda de desintegração coletiva nos inimigos ao terem contato direto com minha voz quebrada. Meu lamento provocando a morte instantânea dos Ciclopes que atacaram Perseu e eu. Das empusai, das arai que voaram desesperadas para longe. Ogros. Manticores. Grifos. Cães infernais. Telquines. Todos os monstros ao redor, somente os mais distantes conseguiram escapar de minha voz morta e ainda assim alguns começaram a se suicidar coletivamente quando o medo os contaminou. Meu grito rouco que estourou o solo carnoso, revelando os rios do Mundo Inferior. Perseu soltou um grito de guerra, usando fogo líquido do Flegetonte para afogar os monstros em chamas. A veia arrebentada tentou se fechar, mas não por causa da nuvem de escuridão que começava a deixar todos os monstros cegos e desesperados.
Minha nuvem de escuridão.
Ergui minha espada, pronta para acabar com cada demônio aqui, mas um braço se firmou em minha cintura, deixando-me congelada perto das portas.
— Caterine, você tem que ir! — gritou Perseu ao meu ouvido. — Não podemos ficar os dois aqui!
— NÃO! — gritei de volta, colérica e irracional. — Eles mataram Sirius!
Girei meu cotovelo nas costelas do filho de Poseidon com brutalidade, fazendo ele me soltar no chão.
— Caterine, não faz isso!
Cerrei meu maxilar, minhas mãos tremendo enquanto encaro o inimigo. Minha névoa de terror contaminando a espada branca de drakon, transfigurando-a em uma lâmina escura, minhas sombras que evaporavam dos meus poros circulando a espada.
— Se abaixa, Perseu!
Ele não perguntou o porquê. Apenas se agachou. Saltei por cima do meu namorado, acertando um golpe agressivo e violento na cabeça de um ogro muito tatuado com minha espada escura por minhas sombras. Perseu e eu ficamos lado a lado no portal, à espera do ataque seguinte. A veia ainda detinha os monstros, não se curando de imediato — talvez por minha causa, já que Tártaro olhava furioso em minha direção, mas sua atenção sempre voltava para Bob, que parecia extremamente furioso, sua luz prateada mais intensa contra o vermelho-sangue do Tártaro.
Uma mão encontrou a minha. Uma mão quente e que me trazia esperança. Uma mão que apertou meus dedos com carinho.
— Eu sinto muito, meu amor. — Murmurou Perseu, a voz bondosa no meio dos gritos de guerra dos monstros.
Nada iria ficar bem.
As Portas da Morte, nossa saída do mundo dos pesadelos, bem atrás de nós. Mas não podíamos passar por elas sem que alguém segurasse o botão do elevador por longe doze minutos. Se entrarmos e simplesmente deixarmos que as portas se fechem, acho que não seria nada saudável o resultado. Se nos afastarmos das portas, o elevador vai se fechar e iremos morrer aqui.
Como Sirius...
Minha garganta começou a fechar e retiro o toque reconfortante de Perseu de minha mão. Meu Sirius... minha estrela. Um soluço alto me escapou, lágrimas escorrendo por meu rosto enquanto uma dor aguda e avassaladora dominava meu corpo.
Não. Não posso me permitir cair em luto agora.
Mas meu choro ficava pior a cada segundo.
Forço-me a ficar calma, respirando com dificuldade e entrecortadas de lufadas de oxigênio, e me volto para Bob. Seus ataques começavam a ficar mais lentos, assim como a névoa que começou a retornar ao meu corpo, permitindo que a veia estourada dos rios no solo se fechasse. Tártaro parecia estar aprendendo a controlar seu novo corpo. Bob Pequeno choramingava alto, olhando ao redor como se procurasse por algo — seus olhinhos se cravando em meu corpo e seu lamento ficando pior. Bob Pequeno estava procurando por Sirius. Sua distração deixou que Tártaro o jogasse para o lado, fazendo Bob correr na direção do deus, gritando de ódio. Tártaro apenas arrancou a lança das mãos do titã, derrubando-o em uma fileira de telquines.
ENTREGUE-SE!, bradou Tártaro.
— Não. — Replicou Bob. — Você não é meu senhor.
Tártaro quebrou a lança de Bob em duas, fazendo o titã prateado uivar de dor. Bob Pequeno saiu em defesa de seu dono, rosnando para Tártaro e mostrando as presas. Bob tentou se levantar, mas aquele era o fim. Para todos nós. Os monstros se viraram para observarem, como se sentissem que seu mestre Tártaro. A morte de um titã era algo que merecia ser visto.
Me virei para Perseu, secando as lágrimas maçantes que corriam por meu rosto.
— Vamos ajudá-lo. — Afirmei.
Perseu pegou em minha mão gentilmente, e desta vez não o afastei.
— Juntos até o fim. — disse meu namorado, rouco. — Irei voltar para você no Mundo Inferior, Caterine... ou em qualquer lugar que viemos parar.
— Sempre irei voltar para você. — Falei, minha voz embargada.
Juntos, nos afastamos das Portas da Morte, nunca mais deixaríamos o Tártaro. Minha segunda promessa sendo quebrada — a primeira quando menti para Rachel, falando para a ruiva que não iria morrer na Batalha de Manhattan, mesmo achando isso. Agora, não irei tirar Perseu daqui.
Pelo menos morreríamos lutando.
Então, uma comoção tomou conta do exército. A distância escutei guinchos, gritos e um bum, bum persistente e rápido demais para ser apenas a pulsação do coração no solo. Era um som maior e corria com velocidade. Um nascido da terra girou no ar como se tivesse sido arremessado. Um jato de gás verde-claro caía em cima da horda monstruosa. Tudo em seu caminho se dissolvia, como se fosse ácido. Na outra extremidade do trecho do chão fervilhante e agora vazio, observei o motivo da comoção, incrédula e sem voz.
O drakon maeônio abriu a pele em torno do pescoço, sibilando. Seu hálito venenoso encheu o campo de batalha com o aroma de pinho e gengibre. Ele moveu o corpo de dezenas de metros, sacudiu a cauda verde pintalgada e varreu um batalhão de ogros. Havia um gigante de pele vermelha montada em suas costas, com flores trançadas no cabelo ruivo, um gibão de couro verde e uma lança de drakon na mão.
Damásen sorriu para minha cara perplexa.
— Caterine Chernyy sem palavras? Depois de ter me dado uma bronca, resolvi seguir seu conselho. Escolhi um novo destino para mim.
O que é isso?, rosnou o deus das profundezas. Por que veio, meu filho renegado?
Damásen me encarou com uma mensagem claro: Vão! Agora!
Ele se virou para Tártaro. O drakon maieônio bateu as patas no chão, rosnando.
— Pai, você não desejava um adversário mais à sua altura? — perguntou Damásen com calma. — Sou um dos gigantes que tanto se orgulha. Não queria que eu fosse mais beligerante? Talvez eu comece destruindo você!
E Damásen atacou.
O exército de monstros se fechou ao seu redor, mas o drakon destruía todo em seu caminho, agitando a cauda e lançando veneno enquanto Damásen atacava Tártaro, forçando o deus a recuar como um leão encurralado.
Bob se afastou da batalha cambaleante, com Bob Pequeno ao seu lado. Perseu e eu demos o máximo de cobertura que pudemos. Sombras das trevas e chamas azuis reluziam ao redor de Bob e seu gatinho, protegendo-os dos poucos monstros que conseguiam desviar das águas que Perseu explodiu as veias — alguns monstros foram vaporizados pela água do Estige. Outros levaram uma ducha do Cócito e desmoronara, chorando e depois se matando quando minha névoa preta tocou em suas peles. Outros foram banhados pelo Lete e, com os olhos vazios, ficaram observando ao redor, sem saberem onde estavam.
Bob foi mancando até as Portas. Icor dourado escorria de seus ferimentos em seu braço e peito. O uniforme de zelador estava em farrapos, sua postura curvada e retorcida, como se ao quebrar sua lança, Tártaro tivesse quebrado algo dentro dele. Apesar de tudo, Bob tinha os olhos prateados de Lua em satisfação, sorrindo.
Então, os olhos de Bob se apagaram, lágrimas de mercúrio escorrendo por seu rosto gentil.
— Sinto muito por Sirius, Munchkin. — disse-me o titã, gentil.
E me joguei contra ele. Bob passou os dedos com carinho em minhas costas enquanto comecei a chorar desesperadamente. Lentamente, o titã me afastou de nosso abraço, ainda com lágrimas brilhantes de mercúrio em seu rosto.
— Precisam ir. — Insistiu Bob. — Vou segurar o botão. Os destinos de vocês dois é retornar ao mundo mortal e pôr fim nessa loucura de Gaia.
— B-Bob... — Solucei, trêmula.
— Bob, não. — disse Perseu, os olhos verdes cristalinos suplicantes. — Ele vai destruí-lo para sempre. Sem volta. Sem regeneração.
Bob deu de ombros.
— Caterine disse que Tártaro não iria esquecer meu desafio. Talvez não me mate... Talvez isso me dê alguma vantagem para escapar. Mas vocês precisam ir agora: nós não podemos derrutá0lo. Só podemos ganhar tempo para vocês.
As Portas tentaram se fechar, mas o pé de Perseu estava no caminho.
— Doze minutos. — disse o titã. — É o tempo que posso dar para vocês.
Me joguei outra vez em cima de Bob, meus braços em volta de seu pescoço. Beijei seu rosto prateado, chorando baixinho. A barba por fazer de Bob me fez cócegas, cheirava a produtos de limpeza.
— Sinto m-muito, Lua. Me perdoe. — Murmurei, minha voz falha e chorosa. — Não q-queria que fosse assim. Queria te mostrar as estrelas na Rússia. A aurora boreal... minha casa. Achei que tudo iria ficar bem...
Bob esfregou meus cabelos com carinho. Um sorriso bondoso fez rugas surgirem em torno de seus olhos.
— Está tudo bem, Munchkin. — disse o titã, a voz embargada. — Sei que você não permitirá que se esqueçam de Bob ou Damásen... É uma pessoa boa. Merece o melhor, mesmo com o passado feio que te assombra. Você é a melhor dos Chernyy's, minha amiga Caterine. Mas pode me fazer um favor? Digam "Oi" ao sol e às estrelas por mim. E sejam fortes. Este não pode ser o último sacrifício que terão que fazer para deter Gaia.
Bob me empurrou com delicadeza.
— Não há mais tempo. Vá.
Soltei um soluço, minhas mãos trêmulas enquanto agarrei o braço de Perseu e o puxei para dentro do elevador. Tive um último vislumbre de Damásen partindo o peitoral de Tártaro em um ataque brutal. Do drakon maeiônio sacudindo um ogro. O deus das profundezas apontou para as Portas da Morte e gritou: Monstros, detenham-nos!
Bob Pequeno miou para mim e diminuiu seu tamanho por dez segundos, ficando no tamanho exato de Sirius, como se dissesse que lamentasse a morte do gato negro. Voltou a ser o gatinho tigre-dentes-de-sabre feroz e armou um bote, rosnando e pronto para lutar.
— Mantenham as portas fechadas do seu lado, minha querida amiga Munchkin. — disse ele. — Elas vão resistir à sua passagem. Segurem...
As portas deslizaram e fecharam.
Joguei todo o peso do meu corpo contra a porta esquerda para mantê-la fechada, assustada e ainda chorosa.
— Perseu, ajuda! — gritei, desesperada.
Perseu saiu de seu choque, fazendo o mesmo com o lado direito. Não tinha maçaneta e nem nada em que nos segurar. Conforme o elevador subia, as Portas sacudiam e tentavam abrir, ameaçando nos jogar no que houvesse entre a vida e a morte.
Meus ombros doíam. A música ambiente era um cu, me deixando puta em como aquela música sobre gostar de pinã coladas e ser pego pela chuva era uma bosta — não era de se espantar que os monstros quisessem carnificina no mundo mortal.
— Deixamos Bob e Damásen para trás. — disse Perseu, a voz rouca e embargada. — Eles vão morrer por nós, e simplesmente...
— Eu sei! — gritei descontrolada, meu corpo inteiro tremendo em lastima. — Porra, eu sei disso, Perseu...
Mesmo que estivesse ocupada em manter as portas fechadas ainda penso em como três segundos mudaram tudo. Três segundos foram necessários para Sirius morrer. Três segundos em que um gigante pacífico que sempre admirei aparecia, dando-nos a chance de viver. Mas a que custo? Nossas vidas valiam mais do que as de Bob? Damásen? Sirius...? Não merecemos viver mais do que eles. Não mereço isso.
— P-porra. — Falei entre soluços, desolada. — E-eles vão morrer. Bob e Damásen. Sirius...
As Portas começaram a se abrir, deixando um sopro de... ozônio? Enxofre? Perseu empurrou seu lado com toda a força, fechando a fresta. Os olhos esverdeados de oceanos queimavam em ira. Esperei que não fosse ódio de mim, mas se fosse...
— Vou matar Gaia. — Balbuciou Perseu, a voz retorcida em raiva. — Vou despedaçá-la com minhas próprias mãos.
Não o escutei. Sabia que Gaia não podia ser morta — foi o que Tártaro disse. Ninguém podia enfrentar tamanho poder. Como podemos derrotar Gaia? Me lembrei do último aviso de Bob. "Este não pode ser o último sacrifício que terão que fazer para deter Gaia".
E sei que Lua estava certo.
— Doze minutos. — Murmurei. — Doze minutos.
Rezei para meu pai. Rezei para Minerva e aos fantasmas de minha família — para meu primo James, pedindo força para aguentar essa dor que começava a me sufocar em meu peito. Perguntei-me o que iríamos encontrar quando chegarmos ao fim dessa viagem.
Caso meus amigos não estivessem lá, controlando o outro lado...
— Nós vamos conseguir, Caterine. — disse-me Perseu. — Temos que conseguir.
— Temos. — Sussurrei, culpada. — Por eles.
Mantivemos as portas fechadas enquanto o elevador continuava com a merda da música. Em algum lugar abaixo de nós, um titã e um gigante sacrificavam suas vidas para que pudermos fugir.
Os doze minutos mais longos da minha vida.
As Portas da Morte abriram com um sibilo suave. Fumaça preta começou a sair pela abertura e antes mesmo de tocar o chão, já estou me entregando para a inconsciência com Perseu agarrando minha mão em um aperto desesperado.
Meu último pensamento?
Nada estava bem.