— Bárbara, você poderia me fazer a gentileza de entregar esse livro para a Ayara? — Marcos disse, aproximando-se da minha mesa, enquanto eu guardava meu material, assim que a aula terminou.
Ele era um moreno de olhos verdes, que brilhavam como esmeraldas sob a luz do sol. Tinha um corpo atlético, resultado de horas de academia e natação. Usava uma camisa vermelha que realçava o seu tom de pele e contrastava com a calça jeans e a mochila que ele mantinha nas costas, suspensa por uma alça só. Filho de médicos renomados, Marcos era tímido e gentil, sempre disposto a ajudar os colegas. Ele estudava na mesma turma que nós, mas nunca se enturmou muito. Ele sempre foi interessado na minha amiga, mas ela nunca se importou. Ela achava que ele era muito certinho, muito quieto, muito sem graça. Mas eu sabia que ele tinha muito mais a oferecer do que ela imaginava.
— Claro — eu disse, pegando o livro. Era uma ficção científica. Um dos vários livros que minha amiga comprava e não lia e emprestava para os amigos.
— Você sabe se ela está bem? O pai dela veio buscá-la mais cedo. Espero que não tenha acontecido nada grave — ele perguntou preocupado.
Todos na faculdade pensavam que o Miguel era pai da Ayara e ela não negava. Abracei meus livros e coloquei a bolsa no ombro, me levantando da cadeira e olhando para ele.
— Sim. Eles tinham que resolver uns assuntos de família, nada sério.
— Ah, que bom. E, você sabe se ele conseguiu recuperar as notas? Parece que ela está com muita dificuldade, e seria muito chato se ela não conseguisse se formar. Eu até pensei em oferecer alguma ajuda, mas acho que ela não vai aceitar.
Não mesmo! Desde que o professor Miller passou a dar as aulas extras para a minha amiga, ela andava como uma locomotiva trabalhando intensamente á todo vapor.
— Bem... ela está se esforçando muito — disse, lembrando-me do empenho da minha amiga para passar na disciplina do professor Miller. — E eu espero que ela consiga recuperar as notas logo. Até amanhã, Marcos, e pode ficar tranquilo que eu vou entregar o livro para a minha amiga.
Mal terminei de falar e o Carlos Eduardo ou, mais conhecido como Cadu surgiu de algum canto da sala de aula. Ele era um garoto de estatura mediana, olhos azuis e cabelos loiros. Filho de uma família de empresários, ele também estudava economia para assumir futuramente uma rede de hospitais que o pai lhe deixara. Ele era um cara descolado, extrovertido e cheio de lábia, já tinha ficado com metade das garotas da turma e agora investia em mim. Ele e Marcos eram bons amigos e andavam sempre juntos. Ele vestia uma calça jeans com uma camiseta preta lisa e também levava a mochila nas costas. Apoiou o cotovelo no ombro de Marcos e abriu um sorriso charmoso e confiante.
— E aí, Bárbara! Como você está? — perguntou ele, aproximando-se de mim.
— Estou bem, Cadu — respondi, soltando um suspiro. Eu sabia que ele iria fazer mais uma de suas investidas.
— Então, já pensou se vai me dar uma chance ou vai continuar fazendo esse doce? — insistiu ele, piscando os olhos.
Ah, que saco!
Dei um passo à frente e olhei para ele com desprezo.
— Não vou entrar na sua lista de conquistas, então... tchau! E espero que você se contente com o meu 'não'! — disse, virando as costas. — Tchau, Marcos — acenei, ouvindo os risos deles.
Saí da faculdade enfrentando o mesmo fluxo de alunos de todos os dias. Cheguei ao meu carro, coloquei as minhas coisas no banco do passageiro e, depois de colocar o cinto de segurança e a chave na ignição, olhei para o livro da minha amiga. Pensei que talvez eu tivesse um motivo para visitá-la e, de quebra, ver o Miguel. Ainda me lembrava da conversa que tivemos. Foi tão esclarecedora, porque eu nunca tinha falado sobre como me sentia com ninguém antes, além da minha amiga. E o Miguel pareceu me entender, e isso significava muito para mim. Ele tinha um jeito gentil e atencioso, e seus olhos azuis transmitiam uma calma que aquietava tudo em mim. Eu sentia uma conexão especial com ele, algo que ia além da amizade.
Como planejado, mandei uma mensagem para a minha mãe dizendo que me atrasaria para o jantar e inventei uma desculpa qualquer. Dirigi até a casa da minha amiga, onde eu sabia que encontraria o Miguel. Estacionei o carro na entrada e desci dele carregando o livro que seria o meu pretexto para estar ali no meio da semana sem avisar. Observei que as luzes da casa estavam acesas e a porta da frente estava entreaberta. De lá de dentro vinha uma música que eu adorava: "Careless Whisper" de George Michael, um clássico dos anos 80, o tipo de música que o Miguel gostava de ouvir.
Apertei a campainha para anunciar a minha chegada, mas ninguém apareceu. Talvez a música estivesse alta demais. Então entrei na casa com passos cautelosos, chamando pela minha amiga. Atravessei a sala e me surpreendi quando olhei na direção da cozinha. Lá estava o Miguel, em pé ao lado do fogão. Ele usava um short comum e uma camiseta de algodão básica, com um pano de prato pendurado no ombro. Ele segurava uma espátula e cantarolava animado a letra da música. Em cima da pia havia vários legumes e alguns ingredientes para preparar uma refeição. E na mesa, sentada em uma cadeirinha, estava a Ana Clara. Ela usava um penteado de maria-chiquinha e um vestido rosa com desenhos e babados. Ela brincava com algumas panelinhas de plástico, imitando o pai. Era uma cena encantadora.
— Papai, eu posso colocar pimenta na minha comidinha? — perguntou ela, com uma vozinha doce.
— Claro, filha. Mas não exagere, senão vai ficar muito picante e vai arder a boca de suas bonecas — disse ele, sorrindo para ela.
Eu fiquei parada na porta, sem saber se interrompia aquele momento ou se voltava para o carro. Eu sentia uma mistura de emoções. Alegria por ver o Miguel tão feliz e carinhoso com a filha. Inveja por não ser eu a compartilhar aquele momento com ele. Curiosidade por saber o que ele estava cozinhando.
Pensei em dar um passo para trás e ir embora, mas ele se virou na minha direção cantando o refrão da música que dizia: "Eu nunca mais vou dançar de novo Pés culpados não têm ritmo Embora seja fácil fingir Eu sei que você não é uma tola."
Quando ele me viu, abriu um sorriso involuntário e puxou o pano de prato do ombro. Secou as mãos rapidamente e pegou o controle do som. Abaixou o volume da música.
— Bárbara? — ele disse, surpreso.
— O-oi, Miguel — eu gaguejei, sem jeito. — Desculpe entrar sem bater, é que a porta estava aberta e eu...
Ele se aproximou de mim, interrompendo a minha fala.
— Tudo bem, Bárbara, não se preocupe — me olhou com curiosidade. — O que te traz aqui?
— Eu vim trazer o livro da Ayara — eu disse, esticando o livro em sua direção. — Ela está?
Ele pegou o livro e olhou o título, fazendo uma cara de deboche misturada com surpresa.
— E desde quando ela lê livros? — brincou. — Ela saiu, foi para uma tal de reunião de estudos — ele explicou, colocando o livro em cima de um móvel. — Mas deve voltar logo.
Ele voltou a caminhar em direção ao fogão, onde havia uma panela com água fervendo. Eu o segui, curiosa.
Assim que Ana Clara me viu, ela abriu um sorriso e saiu da cadeirinha. Ela correu na minha direção, me abraçando.
— Bárbara, vem brincar de comidinha comigo! — me puxou em direção à ilha. Eu olhei as panelinhas cheias de água com arroz e alguns legumes crus que provavelmente o Miguel havia dado a ela para brincar. Eu sorri, achando-a uma graça.
Me agachei perto dela e fiz um ruído.
— Hum... pelo visto o jantar vai ser uma delícia — eu disse, elogiando a sua brincadeira.
Miguel me olhou, sorrindo.
— Ela disse que vai fazer comida para matar a fome de todas as crianças do mundo — falou, orgulhoso da inocência e bondade da filha.
Rimos juntos e eu olhei na direção do Miguel, que estava concentrado escorrendo o macarrão. Eu sabia que ele era um excelente cozinheiro, pois já havia provado algumas de suas receitas.
— Fazendo o jantar? — perguntei casualmente.
Ele me olhou rapidamente e depois voltou a se concentrar no macarrão.
— Sim. A Marta não se sentiu bem e eu dei folga para ela. Estou fazendo macarrão com molho de carne moída e queijo ralado. É o favorito da Ana Clara.
— Bem, considerando que você é o cozinheiro, imagino que vai ficar uma delícia — eu disse, elogiando-o.
Ele me olhou, abrindo um sorriso.
— Papai, ainda falta a sobremesa — Ana Clara lembrou.
— Sim, filha, mas temos que fazer uma coisa por vez, ou vamos nos atrapalhar — Miguel respondeu, com paciência.
— Bem... eu já vou indo — disse, virando meu corpo na direção da porta, pronta para partir. No entanto, Miguel segurou minha mão, sua pele quente enviando uma onda de eletricidade pelo meu corpo, me impedindo de dar o próximo passo.
— Bárbara, você por acaso não quer me ajudar a preparar o jantar? — ele me convidou com um olhar esperançoso, sua voz suave carregada de uma doçura inesperada. — Acho que seria bom ter mais ajuda além das bonecas da minha filha — brincou, um sorriso se formando nos lábios, e eu não pude evitar rir junto.
— É, você pode comer com a gente! — Ana Clara comentou, seus olhos brilhando de empolgação com a ideia, pulando levemente ao meu lado.
Senti meu coração se aquecer com o convite. O ambiente na casa de Miguel era tão acolhedor e convidativo, algo que eu não queria deixar para trás tão rapidamente. A ideia de compartilhar uma refeição com eles, de fazer parte daquele momento familiar, era irresistível.
— Tudo bem — eu concordei, sorrindo. Eu não queria perder a oportunidade de ficar mais tempo com ele.
Miguel foi até um gancho onde havia um avental e pegou um. Ele caminhou na minha direção e me entregou.
— Então? Vamos colocar a mão na massa? — ele disse, com um sorriso encantador.
Juntos começamos a preparar o jantar enquanto conversávamos sobre coisas triviais. O aroma do molho de tomate se espalhava pela cozinha, e eu me sentia cada vez mais atraída por Miguel, que mexia a panela com uma colher de pau. Ele provou um pouco do molho e sorriu satisfeito, depois pegou outra colherada e soprou delicadamente, aproximando-se de mim.
— Prova — ele disse com uma voz suave, quase um sussurro.
Abri a boca e ele colocou a colher nos meus lábios, fazendo-me sentir o sabor do molho. Ele se afastou um pouco, mas nossos olhares permaneceram fixos um no outro, cheios de perguntas e desejo reprimido. Eu senti meu coração acelerar e minhas bochechas corarem.
— Está uma delícia — eu disse, sem desviar os olhos dos seus. Eles eram azuis como o céu, tão bonitos, tão perfeitos... Ah, eu poderia passar a vida inteira só olhando para aqueles olhos. — Você cozinha com tanta facilidade — comentei, observando-o a facilidade com que ele tinha de cozinhar.
Ele sorriu, aquele sorriso que fazia meu coração acelerar.
— Eu tive que aprender rápido. Ser pai viúvo tem seus desafios — lançou um olhar amoroso para Ana Clara, que estava ocupada mexendo nas suas panelinhas em cima da mesa.
No mesmo instante, começou a tocar a música "How Deep Is Your Love", na voz de Michael Bublé e Kelly Rowland. Como se o universo estivesse conspirando para nos manter inspirados naquela noite.
— Aí eu amo essa música — disse com um tom apaixonado.
Ele largou a colher de pau em cima da pia e se aproximou mais de mim, estendendo a mão em um convite silencioso.
— Então... me concede essa dança, moça bonita? — pediu, com um sorriso sacana.
Eu não resisti e entreguei a mão a ele, sentindo uma onda de emoção me invadir.
— Mas é claro, Miguel, mas já vou logo avisando que não sou muito boa dançarina — eu respondi, retribuindo o sorriso.
I know your eyes in the morning sun
I feel you touch my hand in the pouring rain
And the moment that you wander far from me
I wanna feel you in my arms again
Ele me puxou para os seus braços com um movimento suave e seguro, envolvendo a minha cintura com uma das mãos enquanto a outra segurava a minha com firmeza. Sua pegada era ao mesmo tempo forte e carinhosa, transmitindo uma sensação de proteção e desejo. Lentamente, ele me conduziu pelo chão da cozinha, nossos passos sincronizados com o ritmo suave da música que tocava ao fundo. Ele cantava baixinho no meu ouvido, sua voz rouca e afinada enviando arrepios pelo meu corpo.
Eu me arrepiei toda, sentindo o calor do seu corpo, o aroma inebriante do seu perfume, a vibração da sua voz. Tudo nele era perfeito, um encaixe exato com cada parte de mim. Seus movimentos eram graciosos, como se estivéssemos dançando há anos, em uma harmonia natural que só um amor recíproco podia criar.
Apoiei a minha cabeça no seu peito, ouvindo o som rítmico do seu coração, que batia em uníssono com o meu. Deixei-me levar pela dança, pela música, pelo amor intenso que sentia por ele. A cozinha, antes um simples espaço doméstico, agora era um palco mágico onde nossos sentimentos se expressavam em cada passo, em cada suspiro.
Senti seus lábios roçarem a minha têmpora, um gesto de ternura que me fez fechar os olhos e me entregar ainda mais ao momento.
Quando a música acabou, permanecemos ainda abraçados, encarando um ao outro, como se disséssemos em silêncio que não queríamos que aquele momento acabasse. E, então, ele me surpreendeu, aproximando seus lábios do meu ouvido e me fazendo estremecer, e meu coração saltou como se estivesse gritando: "How Deep Is Your Love?"
— Bárbara eu pensei muito sobre a nossa conversa... — sua voz era grave, rouca, mas também cheia de carinho — Eu quero que saiba que pode contar comigo para o que precisar, sempre que quiser conversar e desabafar... eu sou um bom ouvinte.
Abri um sorriso bobo no rosto.
— Obrigada, Miguel — eu respondi, olhando nos seus olhos com carinho.
Ele se afastou um pouco, mas continuou segurando a minha mão.
— Vamos colocar a mesa? — Me puxou para a sala de jantar, onde já havia algumas louças e talheres para serem organizadas.
No mesmo instante, vimos quando Ayara subiu os degraus em direção ao segundo andar correndo, sem nos cumprimentar. Ela parecia nervosa, e eu me preocupei com ela. Me afastei um pouco de Miguel e olhei na sua direção, com uma expressão de preocupação.
— Será que ela está bem? — Perguntei, vendo que ele também notou que ela estava estranha.
— Eu vou ver — ele disse dando um passo, soltando a minha mão para ir atrás dela.
— Não! — O impedi segurando sua mão ainda mais firme. Sabia de tudo o que eu minha amiga andava fazendo nas últimas semanas, tinha certeza de que ela ia se sentir mais à vontade comigo do que com ele. — Você coloca a mesa e eu converso com ela. Já volto — eu disse, antes de subir as escadas.